Soaram as campainhas. Uma série de tweets de James Blake sobre a monetização, ou falta dela, no TikTok, acordaram para a vida muitos dos que até agora seguiram as cartilhas do streaming e das redes sociais sem se interrogarem. “Lembram-se quando a versão de Godspeed ficou viral? Nem eu, nem o Frank [Ocean] recebemos um cêntimo por causa do ‘som original’ nos vídeos”, revelou. “A maioria das pessoas nem sabia que era eu porque o meu nome não estava lá”, queixou-se.
Blake refere-se a uma versão de 2020 para o original de Frank Ocean, do álbum Blonde, editado quatro anos antes, que ajudou a produzir. Os números são elucidativos para um vídeo publicado como resolução pessoal de 2020. O que não deixa de ser irónico para o caso, e para uma pergunta isolada entre as 14,8 mil: “porque é que este vídeo não é viral?”. Por acaso até foi, mas o retorno gerado de 1,5 milhōes de coraçōes nem para nem um café dá.
Nos comentários, lê-se que se abriu uma Caixa de Pandora. Ela já está aberta há muito e vazia no fundo. A grande diferença é que Blake é uma figura com projecção e crédito capaz de chamar a atenção para o elefante na sala. Ao expor o caso, de carteira vazia apesar das centenas de milhares de partilhas, exteriorizou uma nova dimensão do problema: também nomes instituídos, que vivem na orla do grande público, estão a sentir o problema da não-monetização. Até agora, o circuito de festivais e concertos tem sido a tesouraria mas com os custos de sobrevivência na estrada a subir devido aos efeitos de guerra na Ucrânia e as editoras a exigir uma fatia cada vez maior do bolo, as fontes de rendimento dos músicos estão a baixar. E a alarmar.
“Os serviços de streaming não pagam de forma justa, as editoras querem uma fatia maior que antes, e só esperam que te tornes viral. O TikTok não paga de forma justa, e as digressões estão cada vez mais caras”, queixou-se. É provável que o problema de Blake não seja pagar a renda mas o sentir-se espoliado. O mensageiro deu força à mensagem mas a mensagem é maior que o mensageiro e confessa um cansaço das regras do jogo. O limite está a chegar. “Pode parecer que estou a ser egocêntrico, mas estou a falar de algo que afecta artistas de todo o mundo”, diz com razão.
O tema da monetização já foi e continua a ser discutido até à exaustão mas até agora nunca se sentiu uma resistência do sector capaz de abalar as estruturas comandantes da indústria digital. Blake descreve com exactidão o cansaço do modelo - “continuo a ler coisas como 'se tens a sorte de te tornares viral, usa isso para lucrares de outras formas” - para chegar a uma conclusão natural - “os músicos deviam poder gerar lucro através da sua música" - e uma ilação óbvia: “querem boa música ou querem aquilo por que pagaram?”. Há muito tempo que “a lavagem cerebral funcionou, agora as pessoas pensam que a música é de borla”.
Na verdade, iniciativas bem-sucedidas como as Bandcamp Fridays surgem de uma reacção a esse sintoma colectivo, porque o acesso à música é livre mas há a consciência, pelo menos entre a comunidade melómana, que se toda a gente pensar dessa forma a música poderá nunca desaparecer mas terá mais dificuldades em alimentar um sector profissionalizado e funcionar como uma hipótese de vida. Há, apesar de tudo, alguns sinais de um lento despertar. A multinacional Universal removeu o seu catálogo de cançōes de Taylor Swift, The Weeknd ou Drake do TikTok por não aceitar os termos propostos do acordo. Será uma travagem a fundo ou o princípio de um choque em cadeia?
Blake também antecipa a trovoada: “agora que é mais económico produzir música barata e sintética para colocar nas plataformas todas as semanas, de forma a capitalizar com a forma como o modelo funciona, irão ver o modelo a preparar-vos para aceitar música feita com recurso a Inteligência Artificial, que não irá pagar nada aos músicos”. Todos os lamentos de alguém que escreve, compōe, canta e produz para fins próprios e para terceiros, são sobre um mal-estar agravado que quem observa a interdependência entre a música popular e os serviços digitais há muito diagnosticou. A tecnologia é um aliado quando não asfixia o pescoço. De outra forma, a máquina passa a dominar o humano.
Os músicos estão a perder a batalha do algoritmo e a tendência é para piorar. As redes sociais são os Friends That Break You Heart porque, através da notoriedade necessária para sobreviver, iludem questōes mais profundas como um modelo de negócio imperfeito e desfavorável que só tem piorado à medida que os músicos se vêem entre a espada das plataformas e a parede da sobrevivência. Como se fosse esse o único ar respirável. Pode parecer que Blake está a contestar a indústria musical e a intersectorialidade com o mundo tecnológico, mas não. Está a evidenciar as falhas de um modelo capitalista em que os lucros das maiores empresas batem recordes e um salário já não chega para pagar uma casa digna.
Como a reflexão se dissolveu na emocionalidade, e as questōes mais complexas são atiradas para debaixo do tapete do individualismo, porque a música pode ser geradora de grande visibilidade, tem de ser um notável a chamar os bombeiros. E, no entanto, o fogo já lavra há anos. A única diferença é que a falta de corredores numa rede social mais recente fez subir a intensidade da chama. O sistema está feito para que os músicos sejam, antes de mais, criadores de conteúdos. Já não se trata de usar as redes como veículo mas de condicionar todo o processo aos modelos de funcionamento de cada uma delas. No caso do TikTok, vídeos rápidos, engraçados, de aparência aleatória, capazes de responder ao défice colectivo de atenção e à profusão de informação incapaz de assimilar pelo cérebro humano.
Quanto mais os músicos resistirem a esta tentação e se comportarem como criadores musicais, melhor estarão a defender o seu ofício. Pode ser que o livro de reclamaçōes de James Blake traga consequências mas convém que aqueles que agora se solidarizam com a sua objecção não se fiquem pelos coraçōes. Agora pensem.