Foto de uma “fã” de 64 anos num concerto de 50 Cent (via BBC/X)
A política debate-se. Com pluralidade, opiniōes contrárias, moderadas ou incendiárias. O futebol discute-se. Com racionalidade, paixão, análise ao detalhe e rigor. Nem sempre com verdade, é certo. Muitas vezes com segundas e terceiras intençōes, mas é aí que importa a credibilidade de quem faz opinião. E, em ambos os casos, sem medo dos maiores partidos, clubes, eleitores, apoiantes, sócios ou adeptos. O Presidente da República é questionado, o Primeiro-Ministro é questionado, o treinador do Benfica é questionado, até o Presidente do FC Porto já é questionado. Porque não haveriam de ser?
Então porque é que em relação à música popular estamos a percorrer o caminho inverso, quando o escrutínio é incomparavelmente inferior? É o que dá vontade de perguntar perante a grelha de verdades únicas e reflexos emocionais, que oferecem como via única a hipótese de nos comportarmos como seguidores acéfalos da realidade, sem pensamento crítico ou possibilidade de desvio da norma. Ainda para mais, quando se tratam de assuntos complexos, com camadas interseccionais, em alguns casos sem histórico de debate até aqui. A questão nem é de dimensão mediática, é de liberdade de expressão.
Vem isto a propósito das reacçōes ao artigo Idadismo e Passagem do Tempo, publicado aqui na semana passada, e a um comentário que o precedeu no Facebook da Mesa de Mistura. Antes das leituras, os factos. Nenhum deles é sobre Madonna, ou o(s) concerto(s) na Altice Arena. Nem sobre o ambicioso espectáculo dos U2 ou o recente álbum dos Rolling Stones. Nem o Facebook vai ficar azul nem nenhuma declaração vai desautorizar o Meta. Leiam tudo até ao fim antes de acreditar em tudo o que lêem.
Unem esses acontecimentos para lançar ideias não-impositiva sobre algo novo - a chegada de três ícones da pop (aos quais podíamos juntar Bruce Springsteen ou os Pink Floyd/Roger Waters) a um espaço do tempo até agora restrito à juventude. Que é antes de mais um elogio à capacidade de correr a maratona do tempo com relevância, sem deixar de reparar o quäo difíceis têm sido as etapas mais recentes, sobretudo para U2 e Madonna. E não por acaso, entre os comentários alguém reparava no olímpico esquecimento dos últimos álbuns de Madonna (Hard Candy, MDNA, Rebel Heart e Madame X) na revisitação da “história de vida”da Celebration Tour - ora aí está uma excelente forma de se ser construtivo nas caixas dos leitores. A escolha do alinhamento não foi de certo inocente.
Isto significa que Madonna soube ler os sinais da passagem do tempo (circunstância) para combater o idadismo (preconceito), como aliás sintetiza o excelente artigo de Tiago Fortuna no Expresso. “Madonna é uma figura central no idadismo contemporâneo: é vítima da sociedade e de si própria. Da fragilidade que o tempo impõe ao corpo e como precisamos de aceitar a vulnerabilidade”, escreve com paixão e capacidade de análise. E se essa era a conclusão unânime das diferentes reportagens publicadas no dia seguinte, mais evidente ficou depois de ver vídeos curtos no Instagram e longos no YouTube. Se é a mesma coisa que sentir o espectáculo na cara? Não, nem era esse o propósito, mas para a distinção entre os dois conceitos, o propósito da conversa, serviu de prova verificada sobre as impressōes iniciais.
Seria facílimo olhar Madonna apenas pelo seu estatuto e memória, observá-la como abstracção, ou fixar-me na problemática de género que, tal como acontece em relação ao idadismo, diz muito sobre nós e não só sobre o sujeito mediatizado. Madonna é isso tudo, mas é muito mais e, prova da sua grandeza, continua a suscitar confrontos apaixonados que por vezes transbordam. E aí é fácil morrer na praia, queimado por interpretaçōes enviesadamente apressadas.
Quem dá o corpo, tem de aceitar as balas mas há que distinguir o calibre. Opiniōes construtivas são como charcos no deserto. As discordâncias legítimas, mas convém ler primeiro antes de premir o gatilho. Nada de novo, bem sei. Hoje a mim, ontem a milhares, amanhã sabe-se lá. Mais do que a informação, hoje importa controlar a percepção. Quem se apressou a atacar por ter percepcionado uma opinião diferente nem chegou ao fim para concluir que Madonna até saía elogiada.
“Não estive na Altice Arena mas a avaliar pelos muitos vídeos da Celebration Tour e pela descrição de história de vida, unânime entre a imprensa publicada, Madonna entendeu por fim a necessidade de se reposicionar. Que nem sequer é um degrau acima das contemporâneas. É apenas estar à altura da sua história e relevância actual para continuar a derrubar barreiras através da cultura pop. Como o estigma da idade”. Mais claro penso que não poderia ser.
No campo da opinião, quanto mais aberto é o arco mais as pessoas procuram visōes coincidentes para se sentirem legitimadas na sua. Dessa forma, nunca lidam com o contraditório ou com pontos de vista interrogatórios. E assim se destrói o debate, gerando polarizaçōes, radicalismos e intolerâncias. A exclusividade entre o eu e o mim destrói o que pode ser construtivo para o todo.
Antes de escrever, sou leitor, ouvinte e espectador. Dá-me tanto gozo descortinar o invisível através do conhecimento superior de outros, como identificar pontos de vista coincidentes, ou questionar-me perante boas argumentaçōes contrárias à minha. Estarmos enganados pode ser saudável. Não deve haver acto de humildade maior do que mudar de opinião, mas quando não se aceitam sequer outras hipóteses de pensamento, somos como animais numa jaula.
Há não muitos anos, alguém por quem nutro admiração profissional e estima pessoal, dizia-me, a propósito de algumas experiências como DJ, que discordava daqueles que tentavam agradar à maioria da pista, subestimando os 40 ou 50 que dançavam desalmadamente. “São tão importantes como os outros”, reconhecia, “só que são menos”. E no caso das redes sociais, menos ruídosos ou participativos. Por isso, quero acreditar que no alcance inesperado de ambas as publicaçōes, muitos dos que subscreveram a newsletter do Substack, ou deixaram a sua impressão digital, compreendem o que foi escrito.
No domingo à noite, após ter saboreado o episódio final de Euphoria até à última linha dos créditos, e enquanto seguia desapaixonadamente o derby, com o Palácio de S. Bento no canto do olho, ganhei fôlego para continuar a ler os comentários, depois de ter parado quando as reacçōes descambaram para os ataques e insultos. Não tomo como pessoais as agressōes verbais, ainda para mais quando uma parcela generosa chega do Brasil. Incomoda-me sobretudo a indisponibilidade para lidar com o outro.
Quem conhece o jornalismo por dentro, sabe que um desmentido publicado em rodapé é um pingo de chuva ao pé do aguaceiro de uma manchete. Que, neste caso, é só o desabafo resignado de alguém consciente da importância maior de outros problemas como guerras, genocídios, o avanço do autoritarismo, a hipótese de um governo coligado à extrema da direita, ou uma catástrofe climática global. Mas a forma infantil como estes debates, ainda por cima transcendentes da cultura pop, são travados mostra apenas o óbvio: é que precisamos de falar sobre eles sob pena de não aprendermos nada.
Boa análise. As pessoas levam-se demasiado a sério. Falta empatia e tranquilidade. E parcimónia na leitura das opiniões.