Foto: Instagram de Madonna
Um sir de 80 anos com cintura de vespa e calças justas a correr o palco de costa a costa como um louco. Uma mulher de 65 anos em pose dominatrix entre bailarinos musculados com menos roupa do que pele. Uma banda de sexagenários a inaugurar a mais cara sala de sempre, o Sphere, em Las Vegas, com um ecrã LED equivalente a oito campos de futebol, 50 milhōes de luzes e áudio de última geração. A esperança de vida chegou à pop e ainda estamos a tentar perceber como lidar com ela.
Na história de menos de um século de música popular, é a primeira vez que figuras a entrar na reforma, ou em idade de escrita do testamento, comunicam com os netos como fenómeno de massas, com toda a perplexidade e fascínio que isso possa causar. E sobretudo numa era em que os debates exteriores à política e ao futebol nascem, vivem e morrem nas redes sociais, ou seja são movidos pela paixão, é importante tentar compreender o que está para além de 280 caracteres. Temas complexos que são sobre nós, e não só sobre eu avulsos, não se arrumam em tweets impulsivos, escritos sob o calor do momento. Merecem ser dissecados em multicamadas, pelo menos para reflexão, discussão e evolução.
Nas últimas semanas, o idadismo entrou para o glossário colectivo, como em anos recentes vimos chegar expressōes como “empoderamento”, “não-binário” ou “transgénero”, e amplificar outras como “inclusão”. Não é por acaso. Para a sociedade, são temas novos que respondem a questōes actuais, como o corpo, a sexualidade e a afirmação de identidades não-descodificadas ou reprimidas até aqui. Tal como é ver ícones transpor a barreira dos 60 e pertencer a lugares historicamente restritos à juventude. A chegada do saudável álbum novo dos Rolling Stones, Hackney Diamonds, as duas noites de Madonna na Altice Arena, e o espectáculo pioneiro dos U2 na sala de Los Angeles estimularam o debate que não vai ser transmitido na televisão, e já pouco espaço encontra nos jornais.
No fervor da troca de ideias, urge distinguir dois conceitos: idadismo e passagem do tempo. Idadismo é o preconceito com base na idade. A passagem do tempo é compreendermos que não somos sempre os mesmos, nem o nosso contexto é estanque. O idadismo nasce de fora para dentro. A passagem do tempo parte de dentro para fora. Idadismo é rejeição, passagem do tempo é compreensão. A confusão é grande, a diferença substancial.
Idadismo seria recusar Madonna, os Stones ou os U2 pela cédula de nascimento. Passagem do tempo é a avaliação dos limites de cada um. E desse ponto de vista, os Stones resolveram melhor os seus problemas, precisamente por olharem primeiro para quem são e só depois para o que ainda se espera deles, enquanto Madonna e os U2 continuam reféns do julgamento público, da percepção mediática e da competição com aqueles que um dia viram nascer, e em alguns casos apadrinharam.
No caso de Madonna, talvez o caso mais estimulante de tratar por tudo o que envolve o seu palácio (como a imagem e o ser mulher), os erros têm sido evidentes na escolha de guarda-roupa musical desproporcional às suas medidas (Benny Benassi, Martin Solveig, Diplo), aceitando restos de colecção (Timbaland), ou insistindo no papel de ginasta acrobata quando o corpo pede para ser instrutora (como no espectáculo de Coimbra de 2012, precedido por um outro já bastante fraco no Parque da Bela Vista quatro anos antes).
Madonna nunca aceitou até aqui a constatação de que só se tem vinte anos uma vez, nem lidou bem com a chegada de figuras como Beyoncé ou Lady Gaga, capazes de roubar atenção e questionar o seu postulado. Antes de ser um escrutínio público, essa é uma leitura pessoal e subjectiva. A trajectória desde o álbum Hard Candy, de 2008, indica uma negação da realidade. E, não por acaso, esses quinze anos coincidem com a chegada de Lady Gaga, a afirmação de Beyoncé como o maior símbolo pop deste século e uma profunda reforma pop permitida pelos sistemas digitais.
Não estive na Altice Arena mas a avaliar pelos muitos vídeos da Celebration Tour e pela descrição de história de vida, unânime entre a imprensa publicada, Madonna entendeu por fim a necessidade de se reposicionar. Que nem sequer é um degrau acima das contemporâneas. É apenas estar à altura da sua história e relevância para continuar a derrubar barreiras através da cultura pop. Como o estigma da idade. Observar uma lutadora apenas pelo estatuto alcançado no passado seria negar-lhe a hipótese de continuar a superar obstáculos e continuar a escrever a história em branco da música popular.
No exame à consciência popular, há outras nuances. A objectificação da mulher, através de ideais de perfeição e não envelhecimento, tanto é um desejo incontrolável da própria como uma obsessão do público, sobretudo aquele que a viu desvirginar preces que, ou não deu pelo tempo passar, ou não se viu ao espelho. Mas é justo reconhecer uma relação desigual entre a legítima vontade própria de se vestir como bem decide e a necessidade machista de alimentar fantasias adolescentes. Madonna é vítima da sua ousadia e pioneirismo no despir de véus associados à imagem de uma “mulher de uma certa idade”.
Por outro lado, figuras desmarcadas da cultura rock’n’roll, como Bob Dylan ou Nick Cave - eis alguém que com grande inteligência e transparência se apartou das correntes eléctricas - ou das grandes quimeras pop, como Sade, escolheram, à sua maneira, e pelas suas vias, abrigar-se desta chuva ácida. Dylan e Cave, como Chico Buarque ou Sérgio Godinho, agindo como romancistas da canção. Sade (ou Kate Bush) enquanto figuras invisíveis e enigmáticas, sem agendas a cumprir a não ser as próprias.
Esta não é uma reflexão sobre a passagem de Madonna por Lisboa, o primeiro álbum dos Stones em 18 anos ou pela eterna ambição dos U2 em tocar o céu. É antes sobre o efeito-espelho da cultura pop, a necessidade de a observar para além de leituras impulsivas ou fanáticas, e o reconhecimento de que as dores de crescimento dos grandes vultos pop se prolongam agora muito para além da idade da inocência. É um espectáculo inédito. Ler o guião com as personagens em acção torna mais difícil compreender as mudanças de papel mas é por esse o processo de transformação que nos traz longa vida e novos desafios até mais tarde que estamos a passar.