Foi há 40 anos mas podia ter sido há 40 dias ou quatro meses porque as cinzas de Arthur Russell continuam espalhada por toda a parte. Por exemplo, na hipersensibilidade de James Blake, que o evocou ao nomear a editora 1-800-Dinosaur, ou no cristal de Mk.Gee, uma das raras excepçōes à hipernormalização do pós-pandemia.
O processo de feitura é necessário para compreender o concerto na Experimental Intermedia Foundation, dirigida por Phill Niblock, agora recuperado em Open Vocal Phrases, Where Songs Come in And Out & Sketches. Se há gravaçōes, sobretudo póstumas, que servem apenas para cumprir obrigaçōes editoriais ou vender flores à porta do cemitério, esta justifica-se, para além do privilégio de reencontrar Russell livre e intrépido, como sempre, como dantes, com o plantar da semente do clássico World of Echo de 1986.
O esqueleto frágil segue a voz tremulada, o violoncelo e alguns pedais usados para manipular o som. O minimalismo dilata uma alma profundamente solitária e desarmada que abala pela profundidade e transparência. Os nós de medo podem transmitir uma sensação de auto-destruição, quando o menir da angústia perverte a ruína. Tudo em Russell é de uma coragem tremenda manifestada no tom confessional, por exemplo, de Hiding Your Present From You.
A gravação sem edição posterior garante a autenticidade. Longe da claridade mas perto da pulsação, seduz-nos a fazer parte do seu íntimo. Russell emanava a não-pertença, ao mover-se com naturalidade entre a depravação do circuito nocturno do disco e a vanguarda da música contemporânea. Mundos culturalmente unidos pela linha da frente da geografia novaiorquina mas esteticamente observados com uma distância psicológica que nunca comungou.
Em Open Vocal Phrases, Where Songs Come in And Out & Sketches, a faceta lúdica, alicerçada na repetição de estruturas e na expressão hedonista, extingue-se. Escuta-se um Arthur Russell circundado por espessas camadas de silêncio. Por vezes, parece estar em circuito fechado, trancado no quarto a que chamou de palco, mas o magnetismo é tão intenso que a privacidade nunca perde a intencionalidade de se permutar.
Arthur Russell não se esconde, pelo contrário faz das cançōes o salto de fé. Apenas não se deixa entrever para além da reserva. O salto no tempo até hoje conserva o poder de dissipar uma certa civilização artificial, sem se posicionar como rajada ou antagonismo. As feridas são exibidas numa escultura corpórea em que se expōe para desabrigar o medo. Num tempo pródigo em assassinar a beleza, a autenticidade de Open Vocal Phrases, Where Songs Come in And Out & Sketches resguarda uma comoção dissolvida no desespero.
Rainy Miller - Joseph, What Have You Done?
Se quase toda a criação é herdeira da solidão, então Rainy Miller é um escultor do refúgio. Escutamos uma voz inquieta, em constante perseguição de respostas para as incertezas, materializado mutaçōes plásticas e esculturas sonoras etéreas. Habita-o um sorriso triste, um desencanto à prova de descrença, traduzido num lamento poético livre a bailar em cançōes desinteressadas de fronteiras. Das mesmas casas ocupadas por Coby Sey, John Glacier, Tirzah, Voice Actor e Mica Levi, a nova clandestinidade inglesa assenta bem a Rainy Miller. Concerto esta quinta-feira, dia 8, na ZDB com as redoma na primeira parte.
André 3000 - 7 Piano Sketches
Na grande reviravolta de New Blue Sun, André 3000 não se apresentava como harpista apesar de ser a lenha com que fez fogo. Em 7 Piano Sketches, inibe-se de se titular pianista. Pelo contrário, o projecto é apresentado como “o pior álbum de rap de sempre” por não conter versos. Sete esquissos para piano matam o tédio e servem o diagnóstico de um músico em estado avançado de metamorfose. Provavelmente, ainda o vamos ver mais vezes a fazer o pino.
Eli Keszler - Eli Keszler
O ciclo estrutural de Eli Keszler parte do desmanche para depois esculpir texturas irregulares. Que neste álbum homónimo fotografado em tons de sépia e grão toma forma familiar ao trip-hop menos citado pelos livros, à quase esquecida torch song e a pequenos excertos vocais organizados por forma a evitar um efeito repetitivo. A percussão é a argamassa de um álbum que se liberta do isolamento com o encanto de serpentes de Sofie Royer e o saxofone venenoso de Sam Gendel. Na fértil imaginação de Keszler, há personagens e uma cenografia própria de David Lynch.
Bill Orcutt Guitar Quartet - HausLive 4
O ataque de Bill Orcutt às seis cordas é tempestuoso. Blues solitários em turbilhão permanente, provocadores estados de tensão arterial, catarse e confronto pacífico. Parece saído de um sonho mas foi bem real o encontro em HausLive4 entre Orcutt, Wendy Eisenberg, Ava Mendonza e Shane Parish.
Light-Space Modulator - The Rising Wave
Há quem se separe à nascença e há quem aproxime contrários, comungando vontades onde os comuns só vêm divergência. Marlene Ribeiro e Shackleton nem sequer precisam de unir esforços. Chega-lhes a naturalidade do casamento entre uma voz anti-mísseis e um especialista em texturas rugosas, percussōes ásperas e multi-camadas de psicadelismo atmosférico. The Rising Wave tem um princípio de intenção, um meio transcrito para o processo de ligação entre opostos e um desenlance em que a transmissão de fantasia tem nas superfícies enigmáticas moldados pelo produtor um respaldo para a infinitude.
Loscil - Lake Fire
A linguagem de Loscil não se enquadra na arquitectura paisagística passiva. As atmosferas contêm tensōes, imagens e reflexos. Contam uma história sem precisar de texto para se expressar. Em Lake Fire, a electricidade não é estática. Move-se entre geografias emocionais chamuscadas pelas labaredas, quando circulava pelas montanhas do Canadá. O fogo não é somente metáfora visual, queimu mesmo Lake Fire tanto arde por dentro como se evacua da área incendiada. E o resto é cinza.
Guilherme Basta - Arrasto
Inês Apenas? João Só? Guilherme Basta! Na arte de andar para trás para seguir em frente, o forte deste mini-álbum está na curadoria dos samples. O ouvido aguçado para os velhos 45 rotaçōes de funk, soul e MPB tem nível de alquimista (sim, é uma referência a Alchemist) e serve um flow apressado de cidadão citadino e sequioso. Neste prato, há um comensal insaciável. Arrasto escapa aos brandos costumes do hip-hop radiofónico actual e marca uma posição pela diferença. Uma aragem na mesmice.
Achados do Record Store Day
Talking Heads - Live On Tour
Public Image Ltd - Public Image
Pharoah Sanders - Izipho Zam (My Gifts)
Bill Evans - Further Ahead: Live in Finland 1964-1969
Miles Davis Quintet - At The Kurhaus
Kenny Dorham - Blue Bossa in the Bronx: Live from the Blue Morocco
Freddie Hubbard - On Fire: Live from the Blue Morocco
Gerry Mulligan and Thelonious Monk - Mulligan Meets Monk
Depois de o mencionares há umas semanas, fui explorar e não desiludiu. Muito muito bom. Quanto às recomendações que fizeste aqui, é adicionar à lista e ir ouvindo, mas fiquei com curiosidade para ouvir o Eli Keszler!
Desconhecia até o algoritmo me trazer naquelas edições “personalizadas” e tinha esta adicionada para aprofundar o nome. Mas reconheço que ando por outros hemisférios.
https://open.spotify.com/track/3yOLfMOsF2s8fTEan7SRMq?si=haDQBllpTha2j1XsfCueTA