Fotos: Carlos Martins/Bons Sons
Na pacata Cem Soldos, há sempre vida. No fim de semana anterior à excursão habitual da imprensa, a requalificação do Largo do Rossio foi celebrada. A aldeia de 700 habitantes juntou-se para uma grande festa. Houve danças e cantorias da população. O “novo largo de sempre” está agora mais amplo e livre para mostrar as fachadas. Sofreu melhorias infraestruturais, como saneamento básico e drenagem das águas, pavimentação de vias, áreas de lazer e iluminação para ser “devolvido às pessoas”. Palavra de Miguel Atalaia, diretor artístico e Cem Soldense.
A obra deixou o festival em espera no ano de 2023 depois de em 2014 ter evoluído para um ritmo anual, também possível pela avalanche de música portuguesa ao longo da última década, e apenas interrompido em 2020 e 2021 pela pandemia. Reconstituir a história é reconhecer a visão presciente do Bons Sons. Em 2006, um cardápio de música portuguesa numa aldeia desconhecida era um golpe de loucura. O país desconfiava da sua música e os músicos desconfiavam do seu país. 18 anos, ou seja uma maioridade depois, tudo mudou, e é muito provável que uma parte dos novos voluntários ainda não tivesse nascido quando o Bons Sons floresceu.
Em 2018, Slow J provocou uma enchente absoluta no festival, numa noite partilhada com Salvador Sobral, Selma Uamusse e Xinobi como DJ, e obrigou a organização a reduzir a lotação para o ano seguinte, preservando o bem-estar e a personalidade de um festival que, além da geografia destacada, de ser possível graças à sua comunidade, e de nunca ter tido um patrocinador oficial, nunca se assemelhou aos demais. É um ângulo possível de observação do crescimento do festival, entre tantos outros. Nunca se produziu tanta música em Portugal, nem tão diversa. Mais do que géneros, importa falar de identidades e pluralidades.
Os 700 voluntários da organização e montagem são as pessoas de Cem Soldos. “Mais do que um festival, uma aldeia em manifesto” é o lema. A participação activa da comunidade implica lidar com a diferença. Este “não é um lugar onde as pessoas são todas iguais nem onde se pensa de uma só forma”, reconhece o texto de apresentação do programa. “Acreditamos no contrário”, reforça Miguel Atalaia na conversa com os jornalistas e parceiros. A multiplicidade enriquece o todo e faz do Bons Sons um festival saudavelmente pouco hierárquico. Todos dão um pouco de si, sem barreiras geracionais ou paternalismos. No cartaz, todos têm o mesmo corpo de letra.
Em 2024, imagina-se, o grande problema do construir um alinhamento não é de escassez mas de abundância. Os quatro dias de programação - cinco se incluirmos a recepção ao campista com os Hause Plants e o DJ set das Hermanas Sisters a 7 de agosto - abrangem uma grande extensão da costa. Nomes instituídos como o de Legendary Tigerman contrastam com a pop inclusiva de Cláudia Pascoal, a afirmação de Ana Lua Caiano, a frescura de Femme Falafel e o corridinho de protesto dos Cara De Espelho. Um inesperado Valete - ou não tanto se nos recordarmos de Dino D’Santiago ou Slow J em anos anteriores - surge no mesmo Palco António Variaçōes dos Club Makumba, Máquina e Rocky Marsiano. Também vão andar pela aldeia a cerca de dez minutos do centro de Tomar Gisela João, os Estilhaços de Adolfo Luxúria Canibal e António Rafael (Mão Morta), o Expresso Transatlântico, Rafael Toral e a reanimada Teresa Salgueiro - que repertório apresentará é uma boa dúvida para alimentar a curiosidade. Há quem venha do Festival da Canção como Edmundo Inácio e há quem tenha passado pelo Festival como Silk Nobre.
O Bons Pessoas é feito de pessoas para pessoas e de música com gente dentro, mas a diversidade está para além dos bombos e tambores, analógicos ou electrónicos. “A aldeia vai crescendo com o festival e o festival vai crescendo com a aldeia”, explicou Miguel Atalaia. Além da remodelação do recinto, é estreado o Palco ao Adro com os espectáculos KdeiraZ, de Natália Mendonça, elaborado com a participação activa de crianças, e Krump Session de Dougie Knight, ambos produzidos pela Materiais Diversos. A estes somam-se o Coro das Mulheres da Fábrica e a Fanfarra Káustica. A habitual cúmplice A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, de Tiago Pereira, ganha também um palco próprio com concertos de Diana Combo, Ambria Ardena, Fala Povo Fala e o Coro da Cura.
Diana Combo por Carlos Martins
A interdisciplinaridade é festejada no espectáculo Quis Saber Quem Sou, de Pedro Penim, produzido pelo Teatro Nacional D. Maria II. “Um concerto teatral que revisita as cançōes da revolução, as palavras de ordem e as cantigas que são armas”, enuncia o programa. No Palco Aguardela, todas as DJ são mulheres: Sheri Vari, o colectivo Mão na Anca, Maria Callapez e Surma.
Para “celebrar o presente e uma ideia de futuro”, vincou Miguel Atalaia, nasceu o projecto Ao Largo. Foram plantadas mais de cinquenta árvores e construído um canteiro de grande dimensōes. “Lugares de estar” para que o amor de verão do Bons Sons continue a ser um cuidar para a vida e a preservação de uma aldeia que nem nos lembramos de ser o recinto de um festival.
O Bons Sons acontece em Cem Soldos, Tomar, de 8 a 11 de agosto