Cada primavera tem o seu paladino indie, chame-se ele Twin Shadow, Mac DeMarco ou Car Seat Headrest. Quando Will Toledo entrou em peão no escorregadio Making a Door Less Open (2020), um tal de Mark Jacob Lenderman ainda trazia no palato o sabor dos gelados vendidos de mão para mão para poder pagar as cordas da guitarra.
Reduzido às iniciais, o nome de MJ Lenderman estava plasmado em créditos desde 2018 quando foi baterista de Indigo Souza em I Love My Mom e Any Shape You Take. Antes, já conhecera Karly Hartzman (com quem gravara o EP Him em 2017), tendo passado a ocupar-se das peles do Wednesday. Quando o COVID parou todas as máquinas, era com a banda que se encontrava em digressão.
Lenderman estava envolvido com a cena musical de Asheville, na Carolina do Norte, desde os 18 anos. As garagens e os estúdios tinham vencido após três semestres na Faculdade. É aí que conhece Hartzman e Colin Miller, com quem divide a feitura de Him. Oito cançōes originais e uma versão de Boys de Jason Molina anunciam vontades.
Em 2019, Lenderman multiplica-se e faz-se homem dos sete instrumentos na estreia homónima em longa duração. Um álbum formativo de cançōes grandes e algumas grandes cançōes, assombrada pela tragicomédia de David Berman (Silver Jews, Purple Mountains), um dos seus autores morais, e do repetente Jason Molina. Lenderman vive bem na linha ténue entre o absoluto fracasso e a glória do mundo. As cançōes correm como longas travessias por auto-estradas sem vivalma. Abastecem em áreas de serviço não-identificadas por GPS nos confins da planície.
MJ Lenderman é demasiado puro para camuflar as debilidades técnicas. A voz parece gravada atrás de uma cortina chuveiro, ou de uma chamada transcontinental, mas a história do rock está repleta de duques do precariado. Que importam as limitaçōes quando se tem o coração nas mãos como em Heartbreak Blues ou na estupenda Left Your Smile? Quando o ouvimos exclamar I’m On Top of the World, podemos confiar em cada sílaba. Uma mansão em Calabasas não está ao alcance dos prostrados. Quase ninguém repara, mas é uma estreia notável. A fortuna dos perdedores, podemos afirmá-lo agora que estas reediçōes desencarceram um passado sem distância para se autopsiar nostálgico.
A condenação ao silêncio é pior do que o fracasso. A pré-história de Lenderman só está pela frente porque a neblina levantou partir de Boat Songs (2022), mas ainda antes, há um belíssimo Ghost of Your Guitar Solo. 25 minutos de americana desalmada, desta vez obedientes a um método consciente e colectivo de trabalho.
As cançōes nasceram em sessōes improvisada de Lenderman com os companheiros de quarto, e rascunhos como I Ate Too Much At The Fair e Someone Get The Grill Out Of The Rain revelam uma descontracção ausente do primeiro tomo. Se MJ Lenderman se resignava um fastio solitário, Ghost of Your Guitar Solo impōe-se brevidade no processo e no efeito. Talvez por isso, soe a uma banda country com a pressa do punk, sem tempo a perder com maquilhagem de estúdio. A baqueta a cair no final de Another Place ficou na gravação. Algum problema?
Lenderman não se alonga sobre os grandes dramas da humanidade nem descreve os tectos de ouro do Vaticano. Tira notas do dia-a-dia em guardanapos de restaurante. Ficciona e surrealiza. Em Gentleman Jack, imagina-se um dia ser o dono do mundo, cobiça o lugar de Jack Nicholson no tribunal (o célebre combate com Tom Cruise em Uma Questão de Honra), mas por enquanto basta-lhe uma cama de rede para relaxar os músculos. Em Someone Get The Grill Out Of The Rain, dá com um homem de ressaca “a afogar-se em sofrimento” que precisa de tirar o seu grelhador da chuva antes que este enferruje.
Autobiográfico, trivial ou absurdo, eis MJ Lenderman a justificar o alvoroço com a inabilidade para ser perfeito. Não é líquido que a aclamação de Manning Fireworks mereça fidelidade mais alta do que a retroactividade em baixa resolução dos episódios inaugurais deste conto de fadas.
MJ Lenderman é uma das coqueluches do cartaz de Paredes de Coura. MJ Lenderman (2019), Ghost of Your Guitar Solo (2021) e Boat Songs (2022) acabam de ser reeditados
Álbuns das últimas semanas
Black Country, New Road - Forever Howlong
Em quatro anos, a vida dos Black Country, New Road é um carrossel. Em 2021, For the First Time trepa pelas paredes para destruir convençōes de género. Livre como uma pena mas pesado como cobre, afirma-se como um dos álbuns de rock essenciais da década (do século?). Quando sai, já os BCNR estão noutra. A quatro dias do parto de Ants From Up There, o vocalista e guitarrista Isaac Wood anuncia a saída. A banda não cede à perda e prossegue a marcha à frente. Em 2023, Live at Bush Hall é um atípico álbum ao vivo, engendrado como laboratório de futuro ao invés de sumariar o passado recente. Um olhar retroactivo confirma as suspeitas. Foi o embrião de uma nova banda. Comparar estes BCNR com os anteriores é como viver no campo ou na cidade. Nem tudo se transformou, é um facto. O barroquismo e a folk progressiva herdada de bandas como Curved Air e Gentle Giant resiste à metamorfose mas enquanto em Ants From Up There se ouviam mil explosōes por minuto, Forever Howlong contém a catarse e faz psicanálise com as plantas. A bonança de Joni Mitchell, o onirismo de Joanna Newsom e a desconformidade de Fiona Apple moram neste jardim. O tempo dirá se é tempo de primavera ou de mudança de estação.
Eiko Ishibashi - Antigone
Há uma linha imaginária a unir Luminescent Creatures de Ichiko Aoba, Every Video Without Your Face, Every Sound Without Your Name, de Lucy Liyou e Antigone de Eiko Ishibashi, que tem o Japão como epicentro. Em todos, o silêncio ocupa um espaço imenso. Aliás, Antigone comunga das dores da perda de Lucy Liyou. No caso, a morte do pai de Eiko Ishibashi, embora esta cançōes não gritem por salvação nem colham revolta. Encara o fim em paz e acatam a perda com naturalidade. Uma leveza que não se confunde com ligeireza. Depois das imagens sonoras em movimento de Drive My Car e Evil Does Not Exist, Ishibashi insiste em ser brilhante. Quem viu Os Dias Perfeitos já adivinha este filme mas é a história que importa. O final é apenas uma obrigação formal.
redoma - Santos da Minha Mente
Após um promissor EP, a estreia em longa-duração de Carolina Viana e Joana Rodrigues sai da redoma a respirar a atmosfera pesada dos tempos. Falha o chão do Porto, a capital da sua desesperança, e falham as utopias que mantêm a crença na transformação acesa, mas Santos da Minha Mente não desaponta nem está refém da neblina nortenha. Voa nas asas de uma inquietude transmitida pela narração desanimada de malva, pelas formas fora dos eixos de Joana Rodrigues, e pelo elo prosaico entre ambas. Apesar do desconforto latente, um disco que abriga de tempestades.
Jasmim - Dias em Branco
Em tempos de cólera, fome e feridas em carne viva, um disco romântico apartado de lutas e inimigo da hostilidade, embora não alienado do real porque a liberdade é política e o amor é confrontacional do ódio e da cultura divisiva. A paridade com a pacatez de Luís Severo e a naturalidade de Tim Bernardes subtrai alguma singularidade mas não a intenção. Tudo em Jasmim é lírico e apaziguador dos mísseis. Cançōes que convidam a parar para existir mas não a desistir de pensar. E À Tua Vontade já é um dos rubis de 2025.
Destroyer - Dan's Boogie
Dan Bejar está há catorze álbuns a curar o romantismo com jorros de pop literata e em Dan's Boogie, algo barroca, em que não se coíbe do auto-referencialismo, de se imiscuir em personagens e torturar-se com com prazer sádico. Ou seja, Bejar a ser galante e suicidário para o bem e para o melhor.
Unknown Mortal Orchestra - IC-02 Bogotá
Não precisamos da voz de Ruban Nielson para imaginar o assobio a atrair a primavera. Apesar de integralmente instrumental, IC-02 Bogotá não é atalho ou estrada secundária. As cançōes transmitem fruição, sensação térmica e a auto-determinação de esgotar argumentos, em 1 ou 14 minutos. Testemunha auditiva de sessōes na Colômbia com o teclista Christian Li, o álbum documenta uma relação vivida com tempo, espaço e clima. E se só agora chegaram a estas paragens, a reedição de II é cábula preciosa na reconstituição da história.
James Elkington - Pastel de Nada
O trocadilho açucarado não tem explicação. Desconhecem-se os motivos por que James Elkington brincou com a doçaria portuguesa. Não há vestígios de outra portugalidade no álbum. Nem se esperem grandes respostas de Pastel de Nada, a não ser paisagens pastorais e sensaçōes abstractas a ressoar de uma técnica exímia, descendente de mestres como John Fahey e contemporâneos como Steve Gunn. Elkington louva esse património com uma pitada de canela.
Makaya McCraven - In The Moment (IA11 Edition) (reedição)
O álbum que soltou Makaya McCraven da bateria para a construção de uma dialéctica própria. Em 2015, In The Moment já enunciava as capacidades que o projectaram para a linha da frente da modernidade jazzística. Disciplina, rigor e elasticidade conciliadas com solidez nas baquetas e nobreza estética. Bem acompanhado, claro está, por músicos da craveira de Jeff Parker (guitarra) e Joshua Abrams (contrabaixo). Sem actuar como um ortodoxo, McCraven parte de âncoras firmes. No caso de In The Moment, o processo primordial do improviso que definiu o método de trabalho reproduzido em álbuns posteriores como o superior Universal Beings.
Logic1000 - DJ Kicks
A chamada de atenção para o DJ Kicks de Logic 1000 não se deve tanto às escolhas de Samantha Poulter - muito downtempo, indícios de trip-hop, pop avariada como a das Smerz e Saya Gray, new age (Oklou) ou ambiental (Astrid Sonne) - mas ao sinal transmitido de dentro da cultura electrónica de que desacelerar funciona e faz falta. O bem maior de uma curadoria dirigida a fins domésticos e outros espaços públicos ou privados que não a funcionalidade das pistas.
Dustin Wong - Gloria
Pode parecer matéria delirante ou imperceptível à consciência racional mas Dustin Wong metamorfoseia factos e acontecimentos. Gloria é literal nessa transmutação ao homenagear Gloria Violet Lee Wong, que o deixou em janeiro de 2024 com 96 anos. Dessa despesa emocional, nasce um outro corpo. Celular e meticuloso, feito com experiências de looping, fragmentos sonoros, frases de new age e manipulaçōes próximos da música concreta.
DJ Python - I was put on this earth EP
Convite irresistível a guardar o telemóvel no bolso e apreciar o tempo a passar, DJ Python revisita esferas angelicais de algum ambientalismo de meados dos anos 90 (a colecção Virtual Dreams II, Ambient Explorations in the House & Techno Age, Japan 1993-1999 da Music From Memory é um óptimo manual de consulta). Paciente e sereno, I was put on this earth EP contraria funcionalidades do tempo lento e usa a placidez para explorar os interstícios entre a matriz deep e as propriedades curativas de ritmos latinos, que não esgotam arenas, experimentados por Nicolas Jaar e Nicola Cruz. Besos Robados testemunha por este romance, personificado na sensualidade de Isabella Lovestory. Em Dai Buki, Jawnino arranca-nos para o hemisfério de King Krule, mas atenção ao crescendo final de Elio's Lived Behind My House, em que todas as pontas se unem.
Mura e Keso - Camadas
A coalisão entre o cuspo de Mura e a massa fermentada de Keso faz estragos. Em pouco mais de dez minutos, o alinhamento Norte-Sul produz barras de fino recorte, comparaçōes pertinentes com Halloween e lençóis instrumentais aveludados da escola dos 90, com toques de Alchemist.