Mike El Nite, João Não e Lil’Noon conhecem o segurança pela alcunha e contornam a fila. Não pagam à porta. Ao chegar à boîte, pedem um Dirty Martini. Como manda a tradição, o cocktail serve-se com uma azeitona espetada no palito. Está aberto o baile de Dance, Romance!, o bromance escorregadio do trio de ataque à profundidade, iniciado no Maus Hábitos, ainda só com os dois primeiros no papel de anfitriōes dos velhos românticos da canção ligeira portuguesa.
O conceito original das noites portuenses glorificava a dessacralização de cantores como Marante ou José Malhoa, a descoberta de José Pinhal e do submundo da cultura de cassetes de feira, chanceladas por editoras do norte, em que a música soava a uma importação do italo disco de estação de serviço. A explosão, típica de uma cultura de classe que adora reciclar o lixo, e converter pechisbeque do OLX em fios de ouro, não pode ser dissociada da afirmação de personas digitais de coreto como David Bruno, e do capanga António Bandeiras, de Pedro Mafama, Conan Osiris, e do próprio Mike El Nite - OG do trap português, filho do popular Quinzinho Portugal, que não só nunca negou o afecto pela identidade portuguesa como em Dr. Bayard ou em Santa Maria (samplada de Eu Sei Tu És do colectivo tecnobrega), como atingiu o zénite da metamorfose no delicioso Palavras Cruzadas, a meias com db, em que o melhor dos dois mundos se entrelaçou.
O som deste cristal é como o vidro da Marinha Grande. Não se quebra com facilidade. Reflecte identidade portuguesa e saber transmitido por antepassados, mas o álbum não se limita a emular o passado menosprezado transformado em ouro de quilate das televendas. A predominância da kizomba e o carinho pelo r&b de cantores como Usher ou por singles como Turn Me On de Kevin Lyttle fazem de Dance, Romance! um guia nocturno de romantismo de Honda Civic. Mike El Nite, João Não e Lil’Noon são os neon-românticos e formam um triângulo de discoteca de subúrbio, r&b curvilíneo e pop electrónica desgostosa.
Dance, Romance! nasce sob o brilho cintilante de bolas de cristal na balada kizomba lo-fi de Bar Dançante. A menina continua a dançar na deslumbrante Óleo na Pista. Mike El Nite candidata-se ao grande prémios em versos nível Verstappen como “tu tás a tipo o Ayrton/a fazer cenas - o rapper e o cantor romântico fundem-se num só piloto.
A kizomba atravessa a brilhante Truque de Magia, V.I.P. e A Cabine. Sem maioria absoluta. Dance, Romance! é um bom partido mas longe de ser um voto único. Bate por três coraçōes e tem mil corpos para amar. Em Liga Pra Mim, a produção devolve o Timbaland das assistências para Nelly Furtado e Justin Timberlake. No porta-luvas, há um CD da Rádio Orbital a atear a Sexta-Feira à Noite e de repente estamos a caminho do McDrive de Corroios às 4 da manhã. Uma impressão digital que a remistura de boys band do milénio em Tem O Teu Nome não nega.
Quem precisa de ourivesarias quando tem anéis de ouro como Espelho? Synthwave oitentista reflectida no espelho por Giorgio Moroder e The Weeknd, refrão pop sem um pingo de vergonha e um solo de saxofone a escorrer um saboroso fio de azeite no final de boca. Os Tais também se descobrem no futurismo utópico de Blade Runner e da banda sonora de Drive. E quando se despedem à Human League na deliciosa Dias Inúteis a caução está paga. O que tem aroma de perfume barato é fragrância de luxo.
Dance Romance pode ser visto como álbum visual completo através do link
Álbuns das últimas semanas
Alabaster DePlume - A Blade Because A Blade Is Whole
A facada definitiva de Alabaster DePlume. Tragicomédia, filosofia existencialista, sátira e fragilidade coexistem com um rasgo jazzístico muito próprio e resguardado de catalogaçōes. Improviso e poesia fluem num mesmo fluxo de liberdade e descarga em A Blade Because A Blade Is Whole.
Clipping - Dead Channel Sky
Enquanto lunáticos como Musk querem ser literais e marcianos, os Clipping ficcionam a sua própria distopia, justificada por romances cyberpunk como o clássico Neuromancer. O que Daveed Diggs e William Hutson fazem é recriar uma narrativa cyberap a partir dos efeitos destrutivos do capitalismo e dos destroços das guerras. Enquanto a generalidade olha para o seu umbigo, os Clipping vêem-se através do telescópio. Dead Channel Sky soa a uma viagem constante entre a violência do real e a utopias de hackers, raves de hip-hop e corpos transhumanos por inventar. Político, demente e sobretudo livre para se expressar para além das pré-definiçōes.
Lady Gaga - Mayhem
Para que fique escrito, o melhor álbum de Lady Gaga desde o díptico The Fame/The Fame Monster. De então para cá, foi uma desgraça. A tragédia americana precedido por um assalto a Vogue de Madonna em Born This Way, o medíocre Joanne, o simulacro de Bon Jovi na banda sonora de A Star Is Born e o nulo Chromatica só foram atenuados por alguns excertos de Artpop. Mayhem não é a invenção de Edison mas até na pop laboratorial se pode marca pela diferença. É um álbum de fórmulas pop cientificamente comprovadas, mas, ainda assim, de enlace entre intemporalidade, galvanização e auto-controlo, estúdio e humanidade. Quando a bomba rebenta, Lady Gaga encosta-se a Charli XCX mas é bom lembrar que o maximalismo já tem anos no roupeiro pessoal. Aquele lado B de Taylor Swift em How Bad Do U Want Me é que se dispensava, mas a citação de Fame, de David Bowie, em Killah fica-lhe a matar. Como ser diferentona sem sair do quadrado? Fica a lição para Chappell Roan.
Throwing Muses - Moonlight Concessions
A pulsão de Kristin Hersh ainda tem sangue roqueiro mas Moonlight Concessions poupa-se a mergulhar na rebentação. A predominância acústica e a permanência do violoncelista atribuem aos Throwing Muses actuais outras propriedades emocionais. A tensão não se diluiu, apenas perdeu a pressa. Em peças como Theremini reina um certo exoterismo, enquanto Libretto, Drugstore Drastic e You’re Clouds podiam ter saído da pena ventosa de PJ Harvey. Bela surpresa.
DJ Narciso - Diferenciado
Por necessidade de continuar a avançar no terreno, ou mero desejo de confronto da repetição, os álbuns da Príncipe têm vindo a mudar de assunto. Diferenciado, o primeiro longo de DJ Narciso, da mesma RS Produçōes de Nuno Beats, DJ Lima, DJ Nulo e Farucox, não o esconde. Se o tarraxo não é morto, é, no mínimo, envenenado por graves a romper do centro da terra como o de Jogo, sons alienígenas como os de 30 Paus e fracturas expostas no ritmo como a de Underground dos Loucos. No acto contínuo da história da editora, DJ Narciso escreve a sua sem dar o legado por adquirido.
Lord Finesse - The SP 1200 Project: Sounds & Frequencies in Technicolor
Manual de bem produzir boom-bap. The SP 1200 Project: Sounds & Frequencies in Technicolor não precisa de versos, flow, ou vozes cantadas no refrão. Despeja instrumentais riquíssimos que de tão valiosos se tornam autónomos. Podemos ficcionar alguns dos grandes (Kool Keith, KRS One, Q-Tip ou Phife Dawg) a brincar neste jardim, mas a colecção desenhada para gente como Big L e Grand Puba é tão saborosa que dá gosto provar a base da pizza sem outros ingredientes.
Mizik Maladi: Disques Debs International Vol. 3
O mergulho de cabeça no arquivo da editora Disques Debs permite aceder a um espólio de música vibrante das Caraíbas. Escutam-se os ritmos suados, as secçōes rítmicas sincopadas e a atracção é imediata. Pérolas como Dou Se Vou Ki Siwo, Si On Jou e Mizik Maladi colam-se ao corpo e não saem com facilidade. Mizik Maladi: Disques Debs International Vol. 3 não é só um rolo em Polaroid da produção musical da ilha do Pacífico. Pressente a rebentação global de bandas como os Kassav, nos anos 80, e a diáspora da kizomba.
Gastr Del Sol - Camoufleur (reedição)
Depois da excelente retrospectiva We Have Dozens of Titles, do ano passado, a campanha de recapitulação dos Gastr Del Sol continua com Camoufleur (1998). No derradeiro álbum com Jim O'Rourke, cada canção vale por si. O shuffle jazzístico de The Seasons Reverse não pede marimbas, mas a formalidade é cortada por um inesperado sabor tropical sabotador do que é sério e permitido. O todo tem partes bastantes diferentes, erguidas sobre poli-camadas de folk, jazz e vanguarda, mas impera o auto-controlo e o desafio à concentração. O sol não o queimou, aliás já não encontram praias selvagens no mapa como esta.
Oren Ambarchi & Eric Thielemans - Kind Regards
A segunda mão da sociedade criativa de Oren Ambarchi e Eric Thielemans convoca a gravação de uma sessão em Poitiers, em novembro de 2023. Enquanto refinam o improviso durante a negociação entre persistência rítmica e frequência hipnóticas, há uma massa sonora feita de texturas e camadas a crescer nas cavidades sonoras.
Patrick Shiroishi & Piotr Kurek - Greyhound Days
Como um espelho mútuo, Patrick Shiroishi e Piotr Kurek falam o mesmo vocabulário com instrumentos distintos: o saxofone e o teclado. O diálogo é simples, feito de pequenas provocaçōes e reacçōes sem cadeia. O vazio pode preencher um espaço imenso. Em Greyhound Days, há dois músicos sem medo da solidão. Nem precisam, a confiança mútua basta-lhes.
Upsammy - Open Catalyst
O tempo veloz de Open Catalyst nem sempre é direccionado para a sacralidade da pista. O drum'n'bass insinuado por Upsammy defende-se da funcionalidade com uma intuição exploratória, definidos pela pulsão dinâmica da percussão e por uma paleta cromática delicada, que aponta à restituição de crenças sem necessitar do hedonismo colectivo para saltar na fé. Corpo e mente numa só cápsula.
Gonçalo - Podia Ser Melhor
…mas não era a mesma coisa, previne o texto de apresentação da Discos Extendes. Gonçalo, também conhecido como Terzi para as pistas de techno, entrega-se à produção em dois actos. Se Estamos na Pistas segue os cânones no house, Bem Disposto atira-se para fora de pé com o linguajar de hip-hop em banho de ácidos a notas de jazz a bater certo na calculadora: acid jazz. Livre, espontâneo e desembaraçado de preocupaçōes técnicas.
Twistedfreak - Música para Dormir Vol. 5
Três peças de José Silva, membro de Conferência Inferno e Ilusão Gótica, vivem dentro do sono. A primeira adormece os anjos, a segunda passa pelas brasas e a terceira atravessa a fase REM. Música para sonhar acordado e despertar da suspensão.
Ainda não ouvi o novo álbum do Alabaster por andar a divagar por nomes antigos que tinha em cassete, por exemplo Holger Czukay. E reparo como este ambiente texturado meio gótico e afins anda a regressar. Ouvi outro nome Circuit des Yeux com o Tiago Castro e o Ricardo Mariano. (Para escrever isto tive que me socorrer de notas. Sou péssima em registar estes nomes)