Lana Gasparotti: "A forma como exploro o jazz acaba ser uma fusão de vários géneros"
Os primeiros acordes de Dimensions, peça homónima do álbum de estreia de Lana Gasparotti, são elucidativos. A pianista gosta de sintetizadores analógicos e passou muitas horas a viajar nos sentidos enquanto ouvia Jamiroquai.
Não é referência única Dimensions é declarativo da hiperdimensionalidade do processo da luso-croata. Lana Gasparotti estudou piano clássico e licenciou-se em piano jazz mas o jazz que traz na impressão digital é líquido e sobretudo livre para dialogar com o hip-hop, o funk e o drum’n’bass.
Esta noite, o álbum é apresentado na primeira parte do passeio pela memória de Moon Safari dos Air no Ageas Cool Jazz no Hipódromo Manuel Possolo. Rumo à lua a olhar para as estrelas no lugar à janela.
Estudaste piano jazz, mas o jazz que está no Dimensions está muito para além da técnica e dos livros. Exploraste o jazz a partir da definição primordial de liberdade e mistura?
Apesar de ter tirado uma licenciatura em piano jazz e música moderna, percebi que para ser uma pianista de jazz - no sentido mais tradicional do jazz/bebop/swing - teria de escolher uma vida muito dedicada ao estudo para conseguir alcançar aquele nível de exigência técnica e de mestria do instrumento e, mesmo fazendo essa escolha e querendo aceitar esse caminho, nada me garantia que conseguia perfurar no meio, apenas ser mais uma pianista (incrível) no meio de uma competição muito exigente de outros pianistas de jazz.
Preferi então escolher um caminho diferente, porque apesar de eu adorar jazz, no fundo o que eu adoro é a música em si. O que retiro daqui, para além dos conhecimentos teóricos e práticos do jazz, é este conceito de improvisação, que para mim representa liberdade, a liberdade de criar algo sem regras ou imposições e também a vontade de querer fundir isto com outros géneros e criar algo que sentisse que fosse meu, num sentido mais autêntico.
É por isso que o álbum se chama Dimensions?
Em parte, sim, por explorar várias dimensões da música com ambientes que vão desde o acid jazz, hip-hop/groove e liquid drum and bass. Mas explora também as minhas diversas dimensões, pois acaba por ser uma viagem introspetiva, por usar vários samples pessoais e autobiográficos, como por exemplo o sample dos meus gatinhos no tema Dimensions e o clip que encontrei meu com 6 anos em que digo “Podemos comprar uma Barbie por 200 escudos”, que utilizei no tema Goji.
Recorres a diferentes matérias-primas desde a eletrónica ao hip-hop. Todas elas de alguma forma linguagens físicas. É música que vem do corpo?
Gosto de pensar na música como forma de expressão, ligado ao movimento e ao sentir, mas também a um ponto de vista mais intelectual, ligado à sinestesia, através dos vários caminhos da harmonia, no tipo de “cor” que pretendo explorar.
Os ventos que chegam do novo jazz londrino e das suas múltiplas ligaçōes, quer à atualidade, quer ao acid jazz dos anos 90, estimularam-te?
Sem dúvida que são uma inspiração para mim artistas como Jamiroquai, Prodigy , LTJ Bukem e Nubiyan Twist.
Nesse movimento, há mulheres-instrumentistas como a Nubya Garcia e a Emma-Jean Thackray a romper com a tradição das mulheres-intérpretes. É um incentivo?
Tendo em conta toda a história e tudo o que foi feito para podermos chegar aqui, é muito positivo atualmente haver esse espaço. A música faz parte de mim desde sempre e expressar-me através dela é uma necessidade muito grande e essa necessidade é o que se sobrepõe sempre. Sou muito grata por viver numa altura em que há realmente uma abertura e um espaço para mim enquanto mulher-música-produtora-intérprete poder criar e ser ouvida.
Sou muito grata por viver numa altura em que há realmente uma abertura e um espaço para mim enquanto mulher-música-produtora-intérprete poder criar e ser ouvida.
Em Portugal, há cada vez mais mulheres na música, em diferentes espectros e com diferentes papéis, desde a interpretação à composição e produção. Notas uma evolução? No jazz, essa transformação também é palpável ou o dique demora mais tempo a rebentar?
Sim, no jazz e também no novo jazz, não-jazz. Temos artistas incríveis em Portugal como a Femme Falafel, Emmy Curl, Samalandra, Evaya, Margarida Campelo, entre tantas outras. Como dizia há pouco, há uma viragem no mundo e os olhos estão mais atentos, acaba por ser muito benéfico.
A Lana Gasparotti do Dimensions muda de pele quando entra em modo Pedro Mafama ou a diferença está apenas nas coreografias?
Apesar de ser eu própria em que tudo o que faço, existe uma diferença, a nível de responsabilidade, entre ser intérprete, seja no projeto de Pedro Mafama ou da Femme Falafel (projeto que também integro), e ser band leader no meu projeto autoral.
Vais abrir para os Air. Tens relação com a música deles e em particular com o Moon Safari?
SIM. Air são sem dúvida uma banda de referência para mim, especialmente o álbum Moon Safari. A minha mãe comprou o disco quando saiu e eu ouvia-o muito em miúda. Quando comecei a tocar piano, lembro-me de diferenciar o “estudar piano”, ou seja, tocar os temas do clássico e o “brincar ao piano”, em que ouvia outros temas e tentava reproduzi-los “de ouvido”. O Moon Safari foi um dos discos que ouvi de início ao fim e que tentei reproduzir tudo, desde as melodias, às harmonias e aos solos. Ajudou-me muito a desenvolver o meu ouvido e também o meu gosto pela eletrónica e os ambientes mais “dreamy” que os Air representam.
Na música dos Air, há uma simbiose muito forte entre o analógico e o digital. Na relação entre ferramenta e processo, essa é também a tua exploração?
Sim, no processo hardware e software. Ou seja, a nível dos diferentes teclados que eu uso e depois do processo de síntese, edição e construção do próprio som, em que procuro explorar sons únicos. Em Dimensions, existem solos de piano que para chegar àquele som foram precisos três ou quatro teclados diferentes para chegar a esse resultado sonoro.
Fala-se muito numa música pós-género que em vez de partir uma estética fechada num quadrado, espelha a transcendência de fronteiras e identidade feita a partir da soma de muitas partes. Revês-te nessa (in)definição?
Matemática e equações nunca foram o meu forte (risos). Sim, por exemplo a forma como eu exploro o jazz, apesar de o ter como base acaba ser uma fusão de vários géneros que o transforma na minha sonoridade. Não se pode designar apenas como jazz ou apenas como drum and bass, é uma “alquimia” de géneros.
Com que formação te apresentas ao vivo?
Somos um power trio. Eu nos teclados, synths e voz, o Pedro Barroso no baixo elétrico e o Sebastião Bergmann na bateria.
Além do Pedro Mafama e da Femme Falafel, fazes parte de mais alguma formação?
Tenho vários projetos no algarve de diferentes géneros como Plasticine que é dentro do jazz fusion, PANDA Collective uma fusão entre o hip-hop/rap e o jazz, e Versátil Ensemble que é um projeto de música clássica e contemporânea para crianças, entre outros convites que vão surgindo.
O desdobramento em diferentes bandas e papéis é também uma forma de sobrevivência?
No mundo da música (especialmente em Portugal) tudo é uma forma de sobrevivência, se estivermos a pensar do ponto de vista que este é o meu trabalho e a minha forma de rendimento para poder ser independente financeiramente. No entanto, esse desdobramento em diferentes bandas e papéis acontece, essencialmente, porque eu gosto de música no seu todo e tenho interesse e curiosidade em querer saber mais, explorar outras sonoridades e adquirir novas skills pianísticas. Por isso é que aceito tocar e experimentar com vários projetos, pois acabo sempre por aprender algo de novo e ter a oportunidade de explorar algo diferente.