É difícil imaginar Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel numa banda indie devota de David Bowie, mas a pré-história na qual também participou Alex Gopher foi feita entre guitarras e pedais. Os Orange eram defensivos e reverentes, contavam à Muzik em 1998, mas serviram como primeira oficina de mímica de duas personalidades muito distintas. O impulsivo Godin e o racional Dunckel.
Ambos se sentiam atraídos pela música. Os pais boémios de Godin estimulavam o filho enquanto o bom aluno Dunckel frequentava o Conservatório de Paris. Como em tantos outros casos, a história podia ter tido um rumo muito diferente. Godin estudava Arquitectura na Escola Superior de Versailles e Dunckel era aluno de Matemática. Em teoria, disciplinas apartadas mas fulcrais para compreender o desenho vectorial dos Air.
Ainda antes de Moon Safari, construíram reputação considerável no meio especializado a assinar remisturas para gente grande como os Depeche Mode. O EP Premiers Symptômes, de 1997, relacionava a espacialidade de Jean Michel Jarre e Vangelis com o psicadelismo dos Pink Floyd, e preparava para a grande expedição - Les professionnels seria usada como base do futuro clássico All I Need. Gravado no apartamento de Godin, o cartão de visita termina com o sublime Le soleil est près de moi. A melhor canção dos Air para o senhorio foi um pesadelo para os vizinhos devido ao som quente do Fender Rhodes a trespassar as paredes. Já lá estava tudo, só faltava o chocolate à bola de gelado.
Quase vinte anos depois dos primeiros passos do astronauta Neil Armstrong na lua, Moon Safari seria o Apollo 11 de Godin e Dunckel. Quando o álbum de estreia caiu do céu em 1998, a França era um parque de príncipes. A selecção de Zidade seria campeã meses depois em casa e a frente electrónica parisiense de Versalhes era a crème de la crème. Daft Punk, Étienne de Crécy, Motorbass, Cassius, Laurent Garnier, St. Germain e até Bob Sinclar faziam dos Campos Elísios a avenida onde a Europa gostaria de arrendar um estúdio. Se os Daft Punk eram o foguetão, os Air eram a nave mas Moon Safari podia não ter sido mais do que um Superdiscount - o álbum precedente de Homework dos Daft Punk - ou um You, My Baby & I, de Alex Gopher, para citar dois casos de importância dentro do movimento sem o suplantarem. Por vezes, é necessário rebentar diques para que outros possam atravessar a corrente e chegar à outra margem.
Apesar de se inserirem nesse movimento, Dunckel haveria de confessar ao Guardian que os Air eram pobres e estavam dependentes do êxito de Moon Safari para sobreviver. “Foi um tempo incrível com aqueles clubes todos a abrir mas não ia a todas as festas. Passava o tempo em casa com a minha mulher a cuidar do nosso filho Solal”.
A dimensão lúdica, humorada e eurovisiva catapultou os Air para o planeta pop graças a singles como os deliciosos Sexy Boy e Kelly Watch The Stars, e a desmaquilhada All I Need. São cançōes de uma beleza desarmante, trabalhadas como uma peça arquitectónica, às quais o perfeccionismo não roubou espontaneidade nem despretensão. Quando Godin saiu do estúdio em Londres com Sexy Boy feita, Godin desconfiou que a sua vida iria mudar. Estava certo.
Sexy Boy, por exemplo, inverte o ângulo habitual de observação do homem sobre a mulher. Em 1998, Godin contava à Muzik que a ideia surgiu quando estavam a ver um desfile masculino com o som no mínimo. E com duas palavras apenas e um vocoder à Bowie/Roxy Music, os Daft Punk arrancavam um clássico vanguardista como os Kraftwerk e kitsch como Burt Bacharach.
Ainda no final dos anos 90, Sexy Boy foi projectado em festas gay como um inesperado hino da comunidade LGBTQIA+, representativo da quebra de estigmas da heteronormatividade. Para os Air, é uma radiografia do erotismo do álbum. “Sexy Girl teria sido um desastre”, defendia Godin ao Guardian. “A canção é sobre quem queríamos ser. Não éramos bonitos em novos. Os nossos amigos sempre tiveram mais sucesso com as raparigas”.
Já a Kelly de Kelly Watch The Stars é dedicada a Kelly Garrett de Os Anjos de Charlie. “Estávamos a comer no McDonalds um dia e o JB perguntou-me: ‘quem é a mulher mais bonita do planeta? Para mim, é Jaclyn Smith, a Kelly dos Os Anjos de Charlie’”, respondeu. Curioso como num clássico de baixas rotaçōes, foi a celeridade de Kelly Watch The Stars e Sexy Boy a potenciar a descolagem. Se All I Need era folk desossada, Kelly Watch The Stars podia muito bem ter saído da mesma cepa de Don’t You Want Me Baby dos Human League.
A Catedral de Notre-Dâme do álbum continua a ser, porém, o primeiro pedaço de céu. La Femme De L’Argent é pilotada pelas teclas do Fender Rhodes, na melhor tradição jazzística, mas nunca chega a explodir e esse é o seu prazer orgástico. A perdição no espaço sideral é uma travessia no limiar do climax. Moon Safari é um planeta mais extenso mas os singles alinham os diferentes astros de melodismo galáctico, vocoders, sintetizadores analógicos, Moogs, cordas e um toque de ironia francesa - Serge Gainsbourg apanhado pelo clima.
Se Moon Safari atravessou a curva do tempo, deve-se ao equilíbrio. Pop e experimentalismo. Calor humano e precisão maquinal. Analógico e digital. Espontaneidade e rigor. Dia e noite. Terrestre e espacial. Uma importante peça de época de final dos anos 90, pensada para o habitat natural do estúdio, resistiu na memória colectiva e ganhou direito a percorrer um caminho das estrelas que pára no Cool Jazz esta terça-feira no Hipódromo Manuel Possolo em Cascais.
A pop robotizada de Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel não tinha o palco como destino mas o chamamento popular obrigou-os a mudar de rota. 25 anos depois, Moon Safari é futurismo em retrospectiva. Em palco, estarão assistidos pelos sintetizadores e terão um baterista a acompanhá-los numa espécie de nave de luzes. No centro de gravidade dos Air, a pulsão sempre foi humana. Depois de um fim de semana de travão à extrema-direita e na noite em que a França joga a meia-final do Euro com a Espanha, haverá melhor momento para celebrar liberdade e igualdade em fraternidade?
Moon Safari foi reeditado com extras em 2008 e mereceu uma extensa reedição comemorativa do 25º aniversário onde se podem ouvir uma irreconhecível Sexy Boy e uma versão punk entre os Sonic Youth e os Stereolab de Kelly Watch The Stars, gravada na BBC.
O álbum é revisitado esta terça-feira no Cool Jazz, em Cascais, com primeira parte de Lana Gasparotti e DJ set do jornalista da Visão (e catedrático em Gainsbourg) Pedro Dias de Almeida