I Agora?
Primeiro de uma série de ensaios sobre os efeitos da Inteligência Artificial na música
2025 vai ser o ano da explosão da Inteligência Artificial como objecto prático e inquestionável. Claro que veremos as pessoas exigir mais controlo sobre o seu uso e transparência nos resultados. Assistiremos a manifestaçōes permanentes de relutância, medo e negação, mas já se percebeu que querer interromper a marcha tecnológica é como parar o vento com as mãos. A ideia de uma inteligência que nos ultrapasse pode ser fascinante, se atendermos à incapacidade de os humanos aprenderem com a sua própria história, e perversa se o conhecimento for usado para potenciar a malevolência. Para já, o que sabemos é que ainda é só o começo, apesar de a IA já ser aplicada em carros autónomos e reconhecimento facial, para citar casos práticos.
O algoritmo de recomendaçōes do Instagram, x, Facebook, Spotify, Netflix ou Max; a publicidade na Internet; editores online, tais como os sites de jornais e empresas de media, e motores de busca como o Google; todos são baseados em IA. Enquanto a primeira página da versão impressa do New York Times é a mesma para todos os leitores, a primeira página da versão online é diferente para cada utilizador. O problema está na opacidade. Muitas empresas não querem revelar os detalhes dos seus algoritmos por estes serem dopados com fábricas de trolls, notícias falsas e formas encapotadas de propaganda.
Para já, é melhor habituarmo-nos à ideia de que a IA não vai acabar com o mundo como o conhecemos mas vai mudar a Internet como a concebemos. É a única grande probabilidade porque tudo o resto é cepticismo e incerteza. A própria definição de Inteligência Artificial é dúbia. Nem sequer os investigadores têm uma definição exacta. O termo está a ser constantemente redefinido, à medida que evolui vertiginosamente. A ficção científica tem alguma responsabilidade em criar uma fantasia temerosa ao imaginar seres pós-humanos com intençōes sinistras, quando estes são metáforas da incapacidade humana e substitutos de grupos reprimidos da sociedade.
Um estudo da Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores (CISAC), representante de mais de cinco milhões de criadores em todo o mundo, antecipa perdas de 22 mil milhões de euros em cinco anos nos sectores da música e do audiovisual. Já as receitas com conteúdos gerados por IA podem crescer “de três mil milhões de euros para 64 mil milhões de euros". Porém, o aumento pode não reverter para artistas “humanos”, uma vez que o desenvolvimento da IA generativa não tem sido acompanhado de regulação.
O que fica na zona cinzenta entre quebras assustadoras para indústrias obrigadas a reinventar-se no século digital, e uma nova ordem de criaturas silenciosas e anónimas? Enquanto pensamos devagar, a IA age depressa. Sabemos que a fome não se alimenta de ética. Que teoria sem prática é como um motor sem óleo. E que a regulação chega a Santa Apolónia quando o Alfa Pendular já parou na Estação de Campanhã. Como resolver o problema da amoralidade de artistas anónimos?
A madrugada da revolução digital foi sangrenta para uma indústria da música que preferiu atacar a Internet como um inimigo, em vez de se aliar às suas propriedades e à transformação operada desde os anos 90, quando pouco se via para além dessa bruma de fascínio pelo mundo novo e medo que ele traísse o admirável desconhecido. A história é conhecida e pode ser revista em documentários como Downloaded - A saga do Napster. Os servidores de MP3 piratearam a música até então disponível em suportes físicos como o CD e os novos melómanos deixaram de gastar a mesada em álbuns. Seguiram-se despedimentos, fechos de departamentos e lojas, multinacionais em pranto, independentes asfixiadas na sobrevivência, debates, artigos e processos em tribunal como o dos Metallica contra o Napster.
No diagnóstico da transformação digital, a cura possível para o problema da desmaterialização do objecto tardou mas, ainda assim, as plataformas de streaming encontraram um modelo imperfeito mas suficientemente credível para suscitar confiar na sua previsibilidade. Apesar de a indústria se ter deixado manietar por oligarquias como o Spotify e das redes sociais, que apesar da saturação colectiva, viciam como uma droga, e induzem uma sensação de aprisionamento como uma dependência, o que esteve em causa nunca foi a autoralidade.
A robotização vai atacar o último reduto da criação. Não se trata apenas da replicar a cognição humana e assistir em processos como a composição, mistura, masterização e produção mas da incubação de uma nova classe de criadores musicais de conteúdos sem rosto nem cheiro. Que a recente invasão silente de zombies em playlists temáticas (piano, jazz, downtempo), ignorando alguns dos principais protagonistas, já é um sinal dos próximos tempos. A singularidade do processo estará defendida perante a quantificação do resultado? Pode a blockchain proteger o direito legítimo de autor? Estaremos aptos a distinguir o autêntico do artificial? O valor emocional terá potência para objectar a impessoalidade? Seremos potenciais deepfakes de nós mesmos? Quanto tempo levará até reconhecermos o futuro na água? Se a IA ganhar inteligência física, de que forma irá afectar a experiência tangível de um concerto? Ou de um Boiler Room? São muitas questōes, provavelmente respondidas em pouco tempo.
Quanto mais veloz é a mudança, menor a capacidade de reacção. E o culto do indivíduo não ajuda a resolver uma transição que, como todas as outras, tem efeitos colectivos transversais. Nunca o sabor do futuro foi tão agridoce. Se por um lado, se desenvolvem tecnologias fascinantes capazes de descodificar os sons emitidos por animais, e a inteligência artificial pode ser o médico de família do futuro, capaz de detectar cancros com uma precisão impressionante, a sensação de que o conhecimento pode deixar de nos pertencer é perturbadora. É a percepção de resolução de problemas que faz os sistemas inquestionáveis. O controlo cognitivo começa onde termina o irrefutável. O terreno deixa de ser tecnológico e passa a ser político. E é aí que se vai decidir se a cultura democrática na música popular está em risco.
Belas reflexões sobre o estado da arte da inteligência artificial e as suas implicações no futuro. Vão mudar muitas coisas. Trabalho na área da pós produção áudio e temos sentido mudanças graduais no nossos software e fluxos de trabalho. Mais virão, breve e seguramente. Tal como o título, também me pergunto, i agora.