O contexto do título é perverso. Um dos maiores empresários aconselhava um investidor de outro sector a apostar no negócio da água e comprar o máximo possível de acçōes. Motivo: “a água vai faltar”. E comparava essa ordem de necessidade ao investimento em tecnologia desde a década de 90. “Adivinhar o futuro é a maior lição que aprendi”, constatava o receptor do conselho sobre a capacidade de alguém ter uma bola de cristal geradora de milhōes em pouco anos. É um facto: a água já está a faltar e vai secar aqueles que são historicamente as primeiras vítimas. Um em cada três africanos é afetado pela escassez de água. De acordo com o relatório de 2022 da OMS/UNICEF, 411 milhões de pessoas em África ainda não têm acesso a serviços básicos de água potável, 779 milhões não têm acesso a serviços básicos de saneamento, e 839 milhões não têm acesso à higiene básica.
O problema está a subir no terreno e regiōes como o Algarve já estão a racionar a água. Não restam dúvidas, pois, que o esgotamento do mais precioso de todos os bens vai ser grande uma oportunidade de negócio e que os recursos hídricos se aprestam para ser o petróleo do futuro. A capacidade do ser humano em capitalizar sobre o sofrimento das populaçōes martirizadas pelos efeitos do capitalismo descontrolado é de loucos, não é? Talvez a beleza da afirmação seja a de conter em si cinismo e autenticidade. “O futuro é a água” tem diversas camadas de leitura mas todas elas vertem sobre os mesmos conceitos: necessidade, autenticidade, frescura e escassez. Não será isso que todos os dias procuramos no teatro das operaçōes?
“No futuro”, continuava o agente em questão, “as pessoas vão querer valorizar o autêntico e verdadeiro”. O argumento pode parecer simplório mas é pertinente. Com adventos como a pós-verdade e a disseminação de ferramentas como a inteligência artificial que permitem fazer (quase) tudo e pōe em causa as fronteiras entre criação e emulação, testando os limites da humanidade e o seu papel em relação aos sistemas tecnológicos, a inversão desses processos será mais valorizada. É da condição humana, aliás, reagir a tudo o que satura e estrangula, propondo alternativas e contraditórios, mas aquilo que se tem verificado na evolução da história da música popular desde os anos 50 é a fuga para frente aliar-se à tecnologia para achar novas soluçōes.
Na forma (a invenção do LP como suporte de armazenamento de mais música, permitindo não só direccionar o processo criativo para o álbum como para a conceptualização de uma obra, o CD e o streaming), no conteúdo (sintetizadores, caixas de ritmos, softwares, auto-tune ou talkbox), e na sua interseccionalidade, a evolução histórica da pop é indissociável do progresso tecnológico mas a desconfiança no futuro e o medo de que o avanço se transforme num retrocesso irreversível, pode corrigir a trajectória da mudança e devolvê-la à procedência. À água, fonte de vida no seu estado mais puro, transparente e salinizado, capaz de dissolver impurezas. Ao corpo no seu estado líquido essencial e primitivo, sem corantes ou poluentes a intoxicá-lo.
Nos anos 90, a explosão de bandas como os Nirvana e respectivo turbilhão de Seattle, e de todo o arrastão eléctrico americano, como Red Hot Chili Peppers, Metallica ou Faith No More, foi tratada como um movimento reaccionário à plasticidade dos anos 80 dos néons e dos sintetizadores, vistos como uma década superficial e suprimida de carne. A polaridade é redutora para ambas. Generalizar uma década, ou outro período temporal qualquer, é renunciar aos motivos por que algum acontecimento se sucede e ainda que se possa encontrar um relação de causa-efeito entre alguma pop flácida de 80 e as paredes de Marshall JCM 900 dos 90, quando muito esse ricochete foi estético.
O futurismo regressivo é, antes de mais, uma contracção ética, e, como tal, de origem humana. Ou não fosse a dificuldade em destrinçar o tangível do artificial uma equação de múltiplas incógnitas, pelo menos no trabalho de estúdio, que nem sempre o palco resolve. Até porque algumas produçōes inesquecíveis deste século, como a digressão Alive, a derradeira dos Daft Punk, com aterragem no Sudoeste num noite quente de agosto de 2007, ou o teatro de todas as insinuaçōes dos The Knife (Paredes de Coura, 2013), interrogavam as fronteiras entre o humano e o digital. Factores que em conjunto com digital são três dimensōes da vida que não precisam de se anular. São parte do mesmo cosmos e, como tal, coexistentes embora imperfeitos na relação.
A inteligência artificial pode tornar as réplicas e emulaçōes tão perfeitas que a distinção se arrisca a ser um trabalho inglório de detective. Tentar derrotá-la seria como querer mudar a direcção do vento com as mãos. Mas até nisso, a água enquanto representação do genuíno pode ser importante para interpretar linguagens e descodificar processos, embora não tenhamos dúvidas de que será um exercício cada vez mais complexo e errático. E isso leva-nos de novo à definição da água enquanto recurso valioso e bem escasso. Quanto mais difícil é distinguir um autêntico do forjado, maior a cotação do que é verdadeiro, legítimo e comprovado - é também uma questão de confiança ou falta dela, como a destrinça entre outro e pechisbeque.
Desde a década de 80, e sobretudo neste século com a democratização tecnológica, que a neofilia se alimenta de inventos. Poderá ser o futuro ser devolução em vez de revolução? Talvez seja abusivo mas a sincronia entre valorização e resistência é uma inevitabilidade histórica que fenómenos como o vinil ou as máquinas analógicas, enquanto contraditório da desmaterialização, demonstram num passado recente. Em bom rigor, não faltam casos recentes em que o rio corre para a fonte. Pense-se n’A Garota Não não apenas pelos motivos políticos mas pelo discurso fidedigno e de valorização da palavra vivida. Ou nos Big Thief enquanto zona franca da canção eléctrica e livre. Ou em Amaro Freitas a encharcar a auto-determinação do jazz com os ritos da Amazónia. Não faltam exemplos, mas ainda não representam os 70% de água no corpo nem em volume, nem em valorização, porque o autêntico é desconfortável e imperfeito. Apesar de ser vital.