Foto: Camille Blake/Waking Life
A engenharia financeira de um festival pode ser mais complexa do que o mero deve e haver entre custo e retorno de bilheteira. Se houver patrocinadores ou marcas envolvidas, investimento público, ou cordōes umbilicais com festivais internacionais (Primavera Sound, Kalorama, Sónar, Rolling Loud), as contas ganham outras variáveis. Continuam a ser números mas essas células indispensáveis ao balanço final fazem com que “a selecção natural do mercado” salte da conta bancária para o Excel.
De acordo com a imprensa, 1,1 milhōes de pessoas estiveram nos “grandes festivais de verão”. O cálculo é incorrecto porque se tratam sim de 1,1 milhōes de entradas - um passe geral de três dias corresponde a uma pessoa, quando, nos números habitualmente divulgados essa pessoa conta como três, se for os três dias. Ainda assim, os números impressionam, se considerarmos que é cerca de um décimo da população, mas não surpreendem. Os festivais normalizaram-se como hábito cultural, segmentaram-se em tipologias e democratizaram-se em faixas etárias. Não tanto em camadas sociais, porque a subida generalizada de preços e o aumento dos custos de produção inflacionou o preço dos bilhetes. Nem Portugal, um dos países com preços mais baixos a nível europeu, escapou ao acréscimo geral, explicado antes de mais pela pausa involuntária da indústria do espectáculo durante a pandemia, e agravada pelas consequências da guerra na Ucrânia.
Cada caso é um caso, e cada festival tem a sua circunstância. Quebras ligeiras de bilheteira em festivais como Paredes de Coura ou Kalorama podem justificar-se com a presença de nomes de menor cartaz. Já a contabilidade aquém das expectativas do Primavera Sound é mais difícil de explicar quando se tem Kendrick Lamar, Rosalía, Blur, New Order ou Fred Again, mas pode ser fundamentada, sem grandes certezas, por uma aposta demasiado ambiciosa em quatro dias, pelo menor acerto nas segundas linhas num festival em que grandes, médios e pequenos se servem mutuamente, ou pelo mau tempo. Quanto à curva descendente de público no Sudoeste, com programaçōes a falar para os coraçōes de TikTokers, pode ser sintomática da profunda transformação de hábitos sociais de uma geração mais interessada em ter muitos contactos do que em ter muito contacto. E isso pode ser uma pista para um futuro diferente, que obrigará a repensar a experiência de concerto e festival. Será?
Múltiplas hipóteses entre uma certeza: a perda de compra influenciou decisōes, e dificilmente pode ser mitigada pela chegada de novas comunidades com bolsos mais fundos, além de alguns milhares de turistas que procuram Portugal como destino balnear, instigados pela música e outras actividades estivais.
Esta é a realidade dos grandes festivais, produzidos por organizaçōes com anos de actividades, patrocinadores principais e outros apoios privados e/ou públicos, com cartazes internacionais e máquinas ferozes de comunicação. Mas está longe de ser a única.
Foto: NOS Alive
Há um mês, a organização do Waking Life assumia ter uma dívida acumulada de 662 mil euros, desde a edição inaugural em 2017, dos quais 400 mil euros resultam de prejuízo só este ano, e justificava com um aumento exponencial nos custos com pessoal e de produção. O Waking Life é um festival de raízes electrónicas que se realiza no Crato, entre a floresta e o lago, com fortes preocupaçōes ambientais e vivenciais - desligar é o botão. Este ano, estiveram no Alentejo profundo gente como James Holden, William Basinski, Skee Mask, DJ Marcelle, Space Afrika, Mala, Margaret Dygas e Tsuzing.
A multiplicação de festivais pelo país é tudo menos um milagre e resulta da fome do público e da vontade de comer dos agentes envolvidos. Se a estes factores, juntarmos o interesse comercial de marcas, ou de marketing do sector institucional - por exemplo, de autarquias que encontram nesta relação um escape para a incapacidade de comunicar quer com os futuros eleitores, quer com a população geral, e também de passar uma imagem menos cinzenta -, temos a sobremesa servida. Esse fenómeno tem gerado um outro: o da especialização.
Entāo na cultura electrónica, género que se divide em múltiplas disciplinas e que, ao longo dos últimos anos, tem passado por um processo de democratização com algumas semelhanças com o do hip-hop, é um banquete (Boom, Sónar, NeoPop, Elétrico, Jardim Sonoro, Moga, Semibreve), mas as contas de quem organiza podem ser bem menos festivas do que as memórias de quem vive. E se o Waking Life foi transparente em relação às contas, assumindo o risco de não sobreviver à tempestade, outros tantos haverá, dos mais variados géneros e culturas, em que a ressaca é uma dor de cabeça e deixa em causa a próxima vez.
É o caso do recém-nascido Luna Fest, um festival nostálgico da história subversiva do rock, ou seja do punk, com nomes de peso como John Cale, Buzzcocks, A Certain Ratio, The Damned, Gang of Four, The Undertones e The Only Ones, além dos Devo que cancelaram. O recinto da Praça da Canção, em Coimbra, tinha capacidade para 7500 pessoas diárias, ao longo de cinco dias, mas o cálculo final dos cinco dias, não chegou ao dobro (14 mil), de acordo com o Ipsilon. “Aquém das expectativas”, reconhece a organização.
E agora? Há uma “dívida para gerir”. Há um apelo à autarquia. E há a garantia de uma segunda ediçāo em setembro do próximo ano, apenas com três dias. “Uma tarefa hérculea”, é reconhecido nas redes sociais do Luna Fest. Talvez tenha havido demasiado romantismo. Talvez Coimbra seja uma “capital do rock” demasiado pequena para tanta ambição. Talvez o golpe algorítmico de vista tenha criado uma ilusão irreal de público para a história de uma subversão demasiado distante de 2023.
E, por outro lado, o também revivalista Vilar de Mouros recebeu 70 mil entradas, distribuídas por quatro dias, mas essa é uma outra história e um outro tempo revisitado. Mais próximo de quem já cresceu com a cultura de festivais, e tem vontade e disponibilidade, para regressar onde foi feliz. Nem todos os ovos pertencem ao mesmo cesto, mas vale a pena perguntar e insistir, sobretudo num cenário de rendas e prestaçōes a subir para quase todos: há espaço para tantos festivais? E não haverá também desgaste de um modelo padronizado, mesmo entre aqueles que desejam romper com os formatos massificados?