Chappell Roan venceu o BBC Sound of 2025. Diferente de outras estátuas, não se trata bem de um prémio, como os Grammy, os Brit Awards ou os MTV Awards. É um reconhecimento do canal público britânico, votado por mais de 180 profissionais da indústria - entre os quais, estavam este ano Dua Lipa, Elton John, Jorja Smith ou Sam Smith - que, ao contrário dos galardōes, tem como premissa a presciência e não um balanço temporal. Para se ter uma ideia, o BBC Sound Poll está para a música popular como o Golden Boy para o futebol. Há um lado profético no voto, de atirar o barro à parede para ver se cola.
Portanto, a aposta da BBC para 2025 estreou-se em álbum em 2023 com o aclamado em 2024 The Rise and Fall of a Midwest Princess. Não se trata de um acontecimento segredado em nichos, com a potência necessária para furar círculos e transversalizar-se. O “feminómeno” do ano passado deu-lhe o estatuto de nova coqueluche da pop graças a singles como Good Luck Babe (o elfo de Kate Bush entra num bar onde toca uma banda de tributo aos Fleetwood Mac) e Pink Pony Club (Florence + The Machine em molde synth pop pré-programado), um Tiny Desk descomunal (11 milhōes de visualizaçōes), ser o acontecimento de Coachella, e um posicionamento individual de confrontação - lésbica educada numa família católica, assumidamente queer, bipolar, diagnosticada com depressão agressiva, e sem tento na língua.
Para efeitos de ubiquidade pop, Chappell Roan já é um pacote completo. Faz algum sentido ainda vaticiná-la como esperança? O problema da escolha não é dela, nem está na contradição entre o discurso confrontacional e um modelo de congelado pop, incapaz de surpreender ou provocar, em que, paradoxalmente, o efeito eucaliptal da representatividade suga quaisquer hipóteses de risco e subversão. The Rise and Fall of a Midwest Princess vive de pretéritos vividos em diferido sem plantar qualquer semente de futuro. É pop de scroll instantâneo e pensos rápidos, com uma aparência mais excêntrica. Nada de novo, e bastante menos corajoso do que a Lady Gaga que rebentou a bomba com The Fame.
A libertinagem de Chappell Roan é vista como antídoto do conservadorismo quando a sua música personifica falta de ousadia e liberdade. Observá-la como renovadora é como achar-se que Kamala Harris é uma reformista só porque é negra, mas estas reacçōes não surpreendem numa sociedade viciada em respostas imediatas e convenientes. A responsabilidade da eleição não lhe pertence, claro, mas denuncia um esquecimento do espaço laboratorial de ensaio do futuro, quer nas grandes condutas, quer no abastecimento da música popular. Se recorrermos à dialéctica extensiva de termos como “potencial” e “iminência”, entre os nomeados do BBC Sound Pool deste ano só Mk.Gee, Doechii e, com alguma boa vontade, os Kneecap, encaixavam na intenção do voto. E mesmo assim, longe de ser oráculos.
Depois de ter adivinhado o futuro com Adele (2008), e até 50 Cent (2003), nos melhores tempos da revolução digital o BBC Sound of conseguiu ver para além do momento Michael Kiwanuka (2012), Haim (2013) e Sam Smith (2014), e apesar de ter projectado Jessie J sobre James Blake em 2011, ainda deixou nomes como Frank Ocean, A$ap Rocky, Sampha, FKA Twings, Jungle, The Weeknd, Lianne La Havas, Dua Lipa e Anderson.Paak no banco, algures durante este período. Como se vê, o problema nunca foi esteve na escolha de personagens pop e na sua natural massificação.
Alguns destes suspeitos passaram pelo tubo de ensaio e se não reinventaram a arquitectura, pelo menos questionaram-na. A música mais excitante é e será sempre aquela que nunca foi feita e ouvida. O dever da arte é despistar as prediçōes e confrontar-nos com o imprevisível, mas a inundação de tutoriais, a tentação de decalcar modelos disponíveis para consulta e réplica nas diferentes tecnologias de produção, regurgita o processo técnico-criativo. A adição a reacçōes imediatas mata a paciência necessária para experimentar, falhar e persistir, correndo o risco de essa luz nunca chegar. E os hábitos culturais viciam-se em digestōes rápidas e funcionalismos.
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O futuro não tem manual e é por isso que é futuro, por não estar escrito. Não traz segurança nem certezas. Não se emite como certificados de aforro nem garante juros a prazo. O mais provável é nunca chegar a acontecer. Hoje, existem menos condiçōes para inventar o dia claro. Todos os dias são carregadas cem mil novas cançōes para o Spotify. A música compete por atenção com influenciadores e canais de Twitch. A arena política afunila-se entre a destruição e a defesa da democracia. Estamos a lutar pela sobrevivência sem nos questionarmos. Que projecto colectivo há para a sociedade?
Ainda haverá espaço para o futurismo no pensamento, debate e criação? O futuro deve andar por aí à solta no novo Brasil, na Jamaica do colectivo (já extinto) Equiknoxx, em migraçōes afro-europeias ou euroafricanas - em mestiçagens de cabeça fresca e despidas de vícios, mas, pelo menos, o ideal desapareceu. No pós-pandemia deixou de ser tema e mesmo nas escolhas de de final de ano, o que se nota é uma rendição cada vez maior aos efeitos da algoritmificação ou à efervescência reactiva do momento político. Sem outro assunto.
No princípio do século, os instrumentais produzidos no atelier dos Neptures contaminavam a cultura popular da MTV sem soar a nada que se tivesse ouvido antes. Aquelas formas pulsantes, instintivas e sexualizadas eram tão inovadoras como Prince e Michael Jackson. Enquanto isso, Timbaland encharcava as técnicas de produção em percussōes orientais e metais das marching bands de Nova Orleães. Faltavam palavras para catalogar Mrs. Jackson dos Outkast, e nem por isso deixou de ser um clássico indestrutível à passagem do tempo. MIA redesenhou as fronteiras da vanguarda a partir das suas raízes tâmil. LCD Soundsystem e Daft Punk remexiam no disco, projectando uma tradição culturalmente impulsionadora para além dos limites físicos. Kanye West moldou um som novo ao importar a tecnologia europeia para a produção americana. Não há nada que se assemelhe no figurino actual. Falta um som de 2025 ao BBC Sound of 2025. Quem se atreve a tentar descobrir o código da Caixa de Pandora?
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