Lana Gasparotti
Esta crónica podia ser datada de 8 de março mas, como se depreende das palavras de um ex-Primeiro-Ministro, ultrapassa o circunstancialismo temporal. A defesa da “família tradicional” por Pedro Passos Coelho é, antes de mais, um ataque à liberdade mas serve também de lubrificante de ilaçōes óbvias, por vezes camufladas. Ainda vivemos numa sociedade machista e mais conservadora do que o nosso algoritmo transparece; a emancipação feminina abala torres de marfim com alicerces seculares de estaticismo. Por isso, que melhor mês do que abril para varrer o cotão acumulado debaixo dos tapetes? Era suposto terem ficado em casa mas entretanto e sobretudo, elas movem-se.
Em 2018, um estudo encomendado pela Fender revelava que no universo de novos guitarristas, metade já eram mulheres. Em nome de todas as Angel Olsen, Weyes Blood, Adrianne Lenker, Courtney Barnett, Cassandra Jenkins e Lucy Dacus, não custa crer nestes números. A matemática transcende o domínio do instrumento. Muitas destas mulheres não são apenas guitarristas de pleno direito como qualquer homem. Escrevem cançōes e servem-se das seis cordas para vesti-las como bem imaginaram. Tomam as rédeas do processo criativo. São donas do seu discurso. Afirmam independência.
Pode dizer-se que a zona franca das escritoras de cançōes, na linhagem clássica de Joni Mitchell ou Lucinda Williams, ou, no caso do piano, de Nina Simone, já é um progresso em relação ao lugar comum da mulher-intérprete - legítimo em caso de escolha, mas tantas vezes imposto por uma cultura machista e exploratória -, restrito à respiração vocal e pouco disponível para aceitar narrativas na primeira pessoa, potenciais causadoras de desconforto. Escrita em 1975, The Pill de Loretta Lynn podia ser uma resposta ao anacronismo de Passos Coelho e de todas as lebres críticas de conquistas pacificadas na sociedade, como o direito ao aborto ou de a família ser aquela que escolhemos.
“All these years I've stayed at home/While you had all your fun/And every year that's gone by/Another baby's come/There's a gonna be some changes made/Right here on nursery hill/You've set this chicken your last time/'Cause now I've got the pill”, profetizava. A controvérsia deu-lhe um dos maiores êxitos da carreira, apesar da editora a ter guardado em cativeiro durante três anos, com medo da reacção, da recusa de 60 rádios em tocá-la e da resposta encolerada de sectores conservadores americanos. Aos 30 anos, Loretta Lynn já tinha seis filhos, quatro dos quais dados à luz com menos de 20. A pílula contraceptiva foi um alívio para o corpo e um marco para a evoluçāo de uma cultura conservadora como é a do country.
A memória é importante para compreendermos o arco do tempo, para o bem e para o mal. E se por um lado assistimos diária e contagiosamente a uma tentativa de ressuscitar esqueletos que se julgavam mortos e enterrados - afinal, estavam só a hibernados no armário -, por outro o espaço da música popular nunca esteve tão preenchido por mulheres. E nem é preciso fazer videochamadas para Londres, Nova Iorque ou Los Angeles para tirar as devidas conclusōes. Basta reavivar as últimas estaçōes para reparar na catadupa de protagonistas que estão a reformular a música portuguesa não apenas com a sua presença mas sobretudo com a soma da sua fragilidade forte.
Facto novo e sintomático: além das cantoras e instrumentistas, há uma vaga de produtoras a reservar cadeiras nas filas da frente. “Acho que está a mudar e há uma diferença gigante. Agora, há muito mais mulheres produtoras. É um fenómeno, estão cada vez a aparecer mais. Inclusivé em Portugal”, notava Evaya em entrevista à Mesa de Mistura. “Estão a aparecer imensas mulheres a compor: a Rita Vian, A Sul, a Silly ou a Bia Maria. Sinto que há vinte anos não havia assim tantas mulheres. No outro dia, estava a recomendar pessoas a um bar e, de repente, só tinha dito nomes de mulheres”, contava Ana Lua Caiano também em conversa com a Mesa de Mistura, advertindo porém, para a persistência de uma desigualdade.
Ana Lua Caiano está certa quanto à mudança. Excepção ao fado, habitualmente representado por mulheres - a começar pelo busto de Amália Rodrigues - o discurso feminino tinha pouco volume e peso até há poucos anos. Sempre que uma mulher despontava, gerava-se um misto de espanto, admiração, inveja e resistência. Olha-se para 2024 e só nos primeiros três meses e meio, já chegaram álbuns estupendos de Evaya, Emmy Curl, Ana Lua Caiano, Lana Gasparotti, Silly e Carolina Miragaia, todos eles com mão feminina na produção, além de outros como o magnífico Metade-Metade de Aldina Duarte, o romântico A Few Dates of Love de Leonor Baldaque, o sonhador Acaso de Dela Marmy, o poético Luas de Joana Alegre ou o atrevido Vergonha na Cara de Joana Espadinha.
Um banquete assim dava para anos de abastecimento. Agora, é a renda de um trimestre. E os sinais não são de abrandamento mas mesmo que se tratasse de uma colheita sazonal, a questão transcende a arimética. É mulher a apoderar-se de um bastião, sem necessidade de requerimento, e a contar a sua versão da história. A figura da produtora é simbólica não apenas pela conexão tecnológica, por defeito personificada no masculino, como por ser um posto de comando desencadeador de todo o processo. Produzir implica conhecimentos técnicos e habilidades criativas. Tanta autonomia e desejo próprio incomoda os puritanos mas, já que não estão familiarizados, basta retirar uma sílaba às mulheres reprodutoras para admitir a existência de uma classe transitiva: as produtoras. Donas do corpo e da vontade. Se apagarmos a televisão, até conseguimos ver as estrelas a brilhar.