Nem parece que tudo começou há ano e meio. E não começou. Em setembro de 2022, Ana Lua Caiano pasmava com o EP Cheguei Tarde a Ontem. Seis vinhetas de música rústica de cidade reverberavam anos de formação em cursos, aprendizagem em bandas e de pesquisa silenciosa quando o bicho andou por aí e a pandemia trancou todas as portas.
No primeiro EP e no sucessor Se Dançar é Só Depois, impressionava a sincronia entre artesanato digital e poesia. Vou Ficar Neste Quadrado, o álbum inaugural, não perdeu a memória dos campos mas é emulsão de cientista. Desse tempo em que Ana Lua Caiano estudou Criação Musical na ETIC e Design de Comunicação em Belas Artes, ficou o barro agora trabalhado como matéria-prima de um futuro presente com legítimas aspiraçōes de saltar este rectângulo sem perder a geometria.
Autónoma no processo, orientada nos círculos e decidida nas resoluçōes, eis os verdes anos de Ana Lua Caiano. Em disco, em palco e fora dele.
A tua autonomia nasceu por necessidade e vontade? É uma consequência da pandemia?
Sempre fui muito independente a fazer música, mesmo quando tinha bandas. As cançōes eram todas minhas portanto já passava pela fase de criar em solidão. Já tinha alguma disciplina de trabalhar sozinha. Depois, foi um pouco o reflexo da pandemia. De repente, não podia tocar com ninguém e numa banda estávamos habituados a trabalhar em conjunto. Como esse processo já não era possível, procurei formas de fazer música sozinha. Até aí, compunha com partituras ou com as bandas. A vontade de sobrepor vários elementos já existia mas faltavam-me as ferramentas. Na pandemia, descobri a produção musical e os programas. Comecei a trabalhar com o Garage Band e o Audition de forma autodidacta.
Tiraste vários cursos, de música e não só. Nessa processo de procura e encontro, o assumir da Ana Lua Caiano é o caos a encontrar a sua ordem?
Sempre soube do que gostava, e até o ter estudado jazz me ensinou. Gosto de ouvir jazz mas não queria continuar por ali. Foi mais uma questão de aprender teoria e métodos de composição. Sempre tive vontade de fazer música, não relacionada com um estilo específico. Na Faculdade de Belas Artes, estudei Design de Comunicação e sempre que era possível misturava música mais ambiental com um livro. Arranjava sempre forma de compor e encontrar a minha linguagem. Na pandemia, passei por um período difícil mas também de silêncio. Tive tempo para poder explorar o que já tinha a borbulhar.
A relação com a tradição musical soa muito natural. Sempre fez parte de ti?
Sim, mesmo com os Vertigem (banda anterior) já era um bocadinho assim. Ainda chegámos a editar um EP em que as cançōes estão muito ligadas à tradição. Desde que comecei a compor e descobri o que gostava que estive conectada com a música tradicional. Ouvi muitos cantautores e muita música tradicional portanto quando comecei a compor, essas influências apareceram naturalmente. Nunca pensei: “quero compor uma música tradicional”. Surgiu.
Nos dois EP, o processo parece vir da palavra enquanto no álbum já se ouve uma cientista à procura do som. O método de construção mudou?
A palavra sempre foi o último elemento, curiosamente, a entrar. Tenho muita dificuldade em partir de um texto. Às vezes, posso ter ideia de um tema de que quero falar mas todas as cançōes partem de uma melodia. Depois há palavras que surgem e quero explorar mas sinto que no álbum há muito mais ritmos e camadas. A palavra acaba por não ser tão salientada até porque nos EP o som era mais despido. Gostei muito de experimentar esse lado de cientista no laboratório. Sim, foi um bocadinho diferente embora o ponto de partida seja parecido.
Passaste muito tempo fechada no teu quadrado a ensaiar hipóteses?
Sim, passei algum tempo a trabalhar no álbum. Não consigo acabar uma canção do início até ao final num mês. Elas acabam por ser sempre mais antigas do que parecem. Foi uma exploração do que já tinha. Passei por várias fases e mutaçōes. Dediquei bastante tempo a esse lado exploratório porque gosto muito. O álbum foi mais difícil de fazer porque tem mais cançōes. Foi um trabalho muito metódico e minucioso de ouvir, cortar, editar e adicionar.
Haver tantas mulheres dotadas dessa autonomia a fazer música, independentemente de a ferramenta ser a guitarra ou um sintetizador, é inspirador para uma mulher de vinte e poucos anos começar?
É muito inspirador. Há muitos anos, lembro-me de ver um vídeo da Meta, ainda como Mariana Bragada, a tocar sozinha, que me deu muita força. Quando não há muitos exemplos, é mais fácil reveres-te em alguém que seja, de alguma forma, parecida. Mulher e mais nova. Estão a aparecer imensas mulheres a compor: a Rita Vian, A Sul, a Silly ou a Bia Maria. Sinto que há vinte anos não havia assim tantas mulheres. No outro dia, estava a recomendar pessoas a um bar e, de repente, só tinha dito nomes de mulheres. Ainda existe uma desigualdade, segundo os números da SPA de 2019. Há muito mais homens mas há é bom perceber que há tantas mulheres a aparecer e, por haver mais, hão-de aparecer mais.
Há muitos anos, lembro-me de ver um vídeo da Meta, ainda como Mariana Bragada, a tocar sozinha, que me deu muita força. Quando não há muitos exemplos, é mais fácil reveres-te em alguém que seja, de alguma forma, parecida. Mulher e mais nova. Estão a aparecer imensas mulheres a compor: a Rita Vian, A Sul, a Silly ou a Bia Maria. Sinto que há vinte anos não havia assim tantas mulheres.
O Vou Ficar Neste Quadrado é um álbum curto. Tem ritmo de cidade, quase como um breviário. Foi pensado dessa forma?
Não foi pensado. Gosto que as cançōes digam o necessário e se o resto não fizer sentido, corto. O Zeca Afonso tem cançōes curtas. O Foge Foge Bandido (Manel Cruz) tem um álbum com 80 músicas mas muitas são ideias e apontamentos. É engraçado uma canção não pedir mais nada. Vi uma curta-metragem do Almodóvar (A Voz Humana) e ele dizia em entrevista que às vezes uma ideia não pede um filme de hora e meia. Basta uma curta de vinte minutos. É um bocadinho essa a minha perspectiva. Ir ao encontro das ideias. Cada canção pede o seu tempo.
O título pode ter várias leituras. Já contaste que se refere a uma teoria situacionista em que a rotina de cada pessoa acaba por formar um quadrado. Também pode remeter para uma época em que as conexōes nos deixaram mais isolados?
Sim, na cidade é um pouco assim. Há muita gente por metro quadrado mas cada pessoa tem o seu percurso e não há muitos cruzamentos. Podemos estar juntos no café e nunca mais vamos ver essa pessoa. Na aldeia, as pessoas falam todas. Os caminhos cruzam-se e juntam-se. Estar no seu quadrado é estar numa bolha. A canção é sobre isso, a rotina.
Apesar da relação com a memória, a música produzida por ti não se inscreve num género. Parte de uma ideia de identidade cultural.
Sim, por vezes existe uma tentativa de me colocar num quadrado (ri-se) mas as influências são muito diversificadas. Sinto que as cançōes podem ter direcçōes muito diferentes e portanto existe uma multiplicidade de géneros a influenciar-me. Além destes grandes eixos citados, gosto de hip-hop, de rock, e de várias outras coisas. Um grande caldeirão.
De poesia e artes visuais, também.
Sim, o estudo de Design de Comunicação pode parecer que não tem nada a ver mas foi um curso engraçado porque tínhamos liberdade para fazer instalaçōes, desde que depois houvesse um cartaz ou uma brochura, relacionada com comunicação. Também por causa disso, interessei-me pelo vídeo. Foram anos de exploração que depois continuaram no COVID. Também gosto muito de ler e ver cinema.
O imaginário visual e até o vestuário são importantes para te compreender.
Sim, os brincos até sou eu que faço. É uma óptima maneira de complementar as cançōes. Há o caso do Deixem o Morto Morrer em que já me perguntaram várias vezes se é uma canção feminista. Inicialmente, não era essa a intenção, mas como no vídeo decidimos ter só mulheres por questōes visuais, acrescenta outra camada. De repente, a canção ganha outras leituras. É bom quando os vídeos fazem esse efeito. Nunca tinha pensado na questão feminista antes do vídeo. A canção até já estava feita há uns meses e era sobre o luto e a superação. Queria fazer uma canção sobre morte mas como não era só triste, havia necessidade de uma reviravolta.
Escutar os outros, sobretudo nesta fase, faz parte da auto-descoberta?
Sim, muitas vezes até me fazem perguntas em penso que nunca tinha pensado naquela interpretação. Por muito que tenha pensado no significado - e até nem gosto de ser completamente aberta -, acabo por redescobrir a canção. Acho que vou tentar explorar ainda mais essa ambiguidade.
Como surgiu a [editora] Glitterbeat?
No ano passado, dei alguns concertos lá fora a partir de setembro. Fui a feiras internacionais e festivais da indústria, onde está muita gente do meio. Conheceram-me num concerto e voltaram a ouvir-me no Trans Musicales em dezembro. Na altura, havia a dúvida se o tempo seria suficiente para editarem este álbum porque eu queria sair já. Foi tudo muito rápido, mas identifiquei-me quer com os artistas do catálogo, quer com a diversidade. Fazia sentido ter uma editora lá fora, no centro da Europa.
Já olhas para a música como um modo de vida?
Neste momento, é. Gostava que continuasse a ser. Sei a minha vida daqui a um ano mas depois não sei o que pode acontecer. Essa parte é um bocadinho assustadora por isso gosto de pensar assim. Neste momento, tenho uma adaptação quase diária porque todas as semanas são diferentes. Esta semana tenho quatro concertos e vou estar fora no fim de semana. Nunca é igual.
Consegues explicar como tudo aconteceu tão depressa? Só passou um ano e meio desde o Cheguei Tarde a Ontem.
Há uns tempos, alguém me dizia: “estivemos aqui há ano e meio”. Não tinha noção de ter passado tão pouco tempo porque já estava a trabalhar nas cançōes antes. Como têm sido anos muito intensos, passaram muito depressa.
Além de referências naturais como o José Afonso ou d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, descobriste outras pessoas a operar de forma semelhante? Recordo-me de teres incluído a Marina Herlop numa playlist de escolhas.
Sim, foram descobertas posteriores. Quando comecei, era muito influenciada pelo Zeca Afonso, Gaiteiros de Lisboa, Portishead e Björk. Foram as minhas bases. Depois, comecei a encontrar outras pessoas que já faziam essa mistura com o tradicional. É uma descoberta diária. No caso da Marina Herlop, é muito bom perceber o que se pode fazer com a música tradicional espanhola que tem características muito específicas. É muito interessante compreender a tradição de outros países e perceber como se relaciona com a modernidade.
Sentes que há uma corrente global de releitura das tradiçōes a unir as diversidades?
Sim, sinto que há mais abertura. Há pouco falava sobre isso. Não vivi na época do CD, quando não havia as plataformas digitais de hoje. Sinto que nessa altura, como os CD eram caros, comprava-se aquilo que já se conhecia e gostava. As plataformas digitais têm problemas como a distribuição dos direitos mas uma das vantagens é que te permite conhecer um artista e, de repente, já estás a conhecer outro. E outro. Muitos deles são “pequenos”. Não são os Radiohead. Há trinta anos, se calhar não teria conhecido a Marina Herlop. O acesso traz mais liberdade para ouvir.
Notas uma mudança para melhor na relação com a música portuguesa?
Sim, principalmente com o fado havia um preconceito com a música tradicional e agora é muito bom ver a Ana Moura e o Expresso Transatlântico a pegar em elementos de fado e “destruir”. Há uns anos, talvez não fosse possível esta abertura. Aprendi adufe com o Sebastião Antunes dos Gaiteiros de Lisboa (e Quadrilha) na Voz do Operário. Ele dá aulas de música tradicional da Beira Alta e da Beira Baixa e lembro-me de ter dito que “a música tradicional está sempre a evoluir” porque antes de a música ter sido gravada, sofreu imensas transformaçōes ao longo dos séculos. É normal que continue a sofrer mutaçōes. É uma evolução natural. Claro que é bom haver multiplicidade. Gosto imenso dos Criatura que trabalham com músicas tradicionais mas a tradição é um corpo em movimento.
Sentes-te parte de um todo?
Sim, sinto-me parte de um todo. Cada um tem a sua identidade mas é um movimento que gosto de ouvir e conhecer. Também sou ouvinte e gosto muito de descobrir esse olhar sobre a música tradicional. Haver tantas vozes e formas de observar a tradição é muito interessante.
É através da identidade que se pode sair deste rectângulo?
Sim. Também é interessante haver diversidade. O Legendary Tigerman, por exemplo, esteve muito ligado à tradição americana. Agora, voltou-se para os sintetizadores mas também é uma abordagem possível. No meu caso, tem-me ajudado a ir lá para fora. Tem-me aberto portas em festivais de músicas do mundo em que as pessoas estão sempre muito abertas a ouvir música diferente. Como aqui em Sines ou no MED (Loulé). Também aproveito para conhecer música e as respectivas culturas. Esses festivais, em particular, têm um público muito atento e disponível para a descoberta. A vontade de descobrirem música portuguesa tem sido boa para mim.
Ana Lua Caiano apresenta Vou Ficar Neste Quadrado esta quinta-feira no B.Leza com sala esgotada. Também com casa cheia, actua sábado e domingo no Auditório de Espinho com o Projecto Benjamim. A 24 de abril, será uma das convidadas de Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves dos Clã no espectáculo A Luta Contínua no CCB. Estará em festivais como o Primavera Sound, Bons Sons e Kalorama.