Em 2009, ano do prescindível Til the Casket Drops, em parte por ser o primeiro álbum dos Clipse sem exclusividade dos Neptunes na produção, as prioridades de Malice mudaram. Abandonou a disciplina das ruas e seguiu o caminho da fé. Quinze anos de blasfémia pereciam perante a rendição a Deus de Gene Elliott Thornton Jr., agora No Malice, de código sem guerra nem crueldade, por cansaço das divergências internas, do tirocínio do rap, e por devoção convicta a Cristo.
O eclipse da dupla foi o gatilho para Pusha T se legitimar a solo. Sem surpresa. Em 2010, assinou pela G.O.O.D. Music, no zénite de Kanye West, com quem se entendeu como cacau para chocolate. My Name Is My Name (2013), Daytona (2018) e It's Almost Dry (2022) estão no quadro de honra do século digital do rap. Sinal da confiança mútua, West nomeou Pusha T presidente da companhia em 2015. A relação só se desintegrou em 2022, quando os comentários racistas e anti-semíticos foram a gota de água, apesar da admiração mútua. O problema de Kanye nunca foi a insanidade mas o desequilíbrio emocional que o fez canalizar nas direcçōes erradas, e testar os limites do respeito e lealdade do co-piloto. “Sinto falta da amizade com o Pusha T”, reconheceu Kanye no x em maio após ouvir Ace Trumpets. “Fizemos música incrível”, concordou Pusha, lateralizando a questão emocional. “Não quero saber. Está tudo bem”, afirmou em longa entrevista à Complex.
The world is about to feel
Something that they've never felt beforePharrell Williams em Grindin’ dos Clipse
If you know, you know. Entretanto, Pusha encestou triplos limpos com os melhores nos ringues mais respeitados. Runaway, Mercy e New God com Kanye West, Nosetalgia com Kendrick Lamar, Mr Me Too com Pharrell nos Clipse, Tyler The Creator em Trouble On My Mind, Future (e Pharrell) em Move That Dope e Jay-Z em Drug Dealers Anonymous. A lista é extensa e em nenhuma delas Pusha é relegado a figurante. Porque ele é um dos MVP do jogo e Let God Sort Em Out está aí para confirmar que se os Clipse sentiram falta de estar juntos, nós também sentimos falta do desplante e do veneno de cobra.
Nunca deixou de se praticar rap perigoso, feroz e consciente mas ninguém faz como eles. Pusha T e No Malice voltaram com a gana de quem ainda não está pronto para se recostar nas piscinas da Virginia e a sapiência de quem sabe que um dia o sol se deitará poente. Há ímpeto e ponderação na caneta de dois animais famintos, pugilistas das rimas em período de reconciliação apertada e sincronia refinada, sem concessōes à dissimulação. Só a verdade importa no pecado e na contradição, mas a forma de grafar duas autobiografias faz toda a diferença e os Clipse são mestres na arte de passar a língua pela tinta e cuspir, em glossário de freestyle.
T e Malice são os mesmos mas estão diferentes. Quem imaginaria ouvi-los a penar pelas mortes da mãe e do pai, respectivamente, salvos por um batalhão coral (Kanye West encharcava-se na potência emocional da espiritualidade) e por um Jesus redentor chamado John Legend. Birds Don’t Sing prepara-nos para a inevitável passagem do tempo. 16 anos de caminhos separados e adrenalinas díspares mas um mesmo chamamento do hip-hop como mestre de escolas e pedra filosofal.
A reminiscência é automática em So Be It (com bala de prata disparada a Travis Scott), Ace Trumpets e M.T.B.T.T.F. - os Clipse na sua melhor versão a desferir rimas como socos no estômago no ringue da literalidade impiedosa e dos eufemismos contundentes.
Um bom álbum da irmandade tinha de ser apimentado pela polémica. A dupla desvinculou-se da influente Def Jam, por se recusar a censurar a participação de Kendrick Lamar, com quem Drake, um dos abonos da editora, se envolveu na maior guerra civil do rap americano desde os dias de fogo cruzado entre Tupac e Biggie. A liberdade de escolha dos Clipse e de Pusha T a solo custou um número não revelado na ordem dos sete digítos, mas valeu a pena só por Chains & Whips - herança genética avisada, balas sobre Calabasas e três sacanas sem lei. Kendrick é imparável mas Pusha e Malice jogam na mesma equipa.
Tyler The Creator veste o colete de vilão com classe numa P.O.V. de exame à consciência para Malice. “Came back for the money, that’s the devil in me”, confessa em tom de auto-censura. A marca de água de Prince do R&B de The Dream em All Things Considered não o absolve da acusação de crimes sexuais hediondos mas tem mãos de ourives. Em F.I.C.O., a triangulação entre os Clipse, Pharrell e Stove God Cooks tange a perfeição. Só a chamada com Nas via WhatsApp na canção titular tem falhas na comunicação.
Pharrell Williams é mais do que um produtor, na ausência de Chad Hugo, a outra metade dos Neptunes com quem se desentendeu. Desempenha um papel honorário de terceiro elemento, na direcção criativa do álbum e na participação vocal em quatro cançōes. Estamos na côrte do hip-hop mas Pusha T e No Malice só precisavam de si mesmos para se reconstituirem imperiais no resgate dos sinais vitais. Os Clipse regressam ao púlpito em grande forma. Sólidos e cirúrgicos. Francos e encriptados. São clássicos dos tempos modernos desinteressados da dormência nostálgica. Seria muito mais cómodo reviver a história, é muito mais electrizante julgar a imperfeição para desaprender e reescrever os versículos do pecado, culpa e redenção.
Álbuns
Ben LaMar Gay - Yowzers
Da International Anthem com carimbo. A excelência é correspondida nas vinhetas afroespirituais de blues e gospel exploradas sem limites estilísticos por Ben LaMar Gay. Os motivos melódicos atravessam uma história moldada pela linguagem. A intuição conduz Yowzers mas o caos organiza a relação entre as peças. Na ordem anárquica há um fio condutor de libertação, espontaneidade e autonomia que só os mais prendados sabem como ordenar sem se perderem no labirinto.
Open Mike Eagle - Neighborhood Gods Unlimited
No carrossel de Neighborhood Gods Unlimited, rodam todos os papéis de Open Mike Eagle: apresentador, actor e guionista, além de rapper periférico. Ofícios unidos por fios de imaginação que inspiraram o álbum a ser pensado como um mosaico televisivo, com genérico e publicidade encenada. Se há arena musical em que é possível um jogo de cintura tão ágil é a do hip-hop e Open Mike Eagle não enjeita o grande papel da carreira através de uma história conceptualizada no próprio bloco de notas.
Fuubutsushi - Columbia Deluxe
Columbia Deluxe germina a partir do silêncio e nunca deixa de respeitar o espaço entre cada nota. A cumplicidade entre Patrick Shiroishi, Chris Jusell, Matthew Sage e Chaz Prymek obedece a um diálogo comunal entre as quatro individualidades, centrado na escuta não-invasiva da privacidade de cada um. A gravação ao vivo soa, ainda assim, a uma casa partilhada de raízes filosóficas e noçōes éticas sobre a sagração da arte e o património espiritual da música. As fundaçōes de Columbia Deluxe têm séculos de estudo mas a preservação da prática é tão imperiosa para defender a criação enquanto refluxo de dentro para fora, protegido de invasōes bárbaras.
Gonçalo Prazeres - Atomic
A descontração e o descomplexo moldam Atomic, voo livre do saxofonista Gonçalo Prazeres, nome firme do jazz com laços no rock espanta-espíritos dos Club Makumba, com Tó Trips, João Doce e Gonçalo Leonardo. A corrente eléctrica é uma atracção natural num objecto de diferentes estados, desde a literalidade de Salganhada à contenção de Atmosfera, as boas maneiras de Garatuja, o livre-arbítrio de Beeblebrox e ao final de temporada de L.A. Chet, com Tó Trips. Em todas elas, a liberdade é uma ordem cumprida.
António Feiteira - Performing the Heimlich on an Ouroboros
Um ruído granulado atravessa e intoxica o EP de estreia do percussionista portuense António Feiteira (membro de Farpas e dos Amuleto Apotropaico). Os motivos de Performing the Heimlich on an Ouroboros reconhecem-se nos detalhes. Uma atmosfera falsamente monótona é corrompida por ruídos perceptíveis e pontos invisíveis de corrente. Nas três peças, os circuitos de repetição guiam a um estado de micro-transe mental. Não somos os mesmos na travessia pacífica entre as primeiros notas de Ghost Hiss, Resonant Hip e o final da fundista Killswitch Counterpoint.
Brylho - Brylho (reedição)
Em 1983, os cariocas Brylho apanhavam ondas de calor de diferentes latitudes. No êxito de época Noite de Prazer, rolava um blues transpirado de “B. B. King sem parar”. Herdeira do movimento Black Rio, de Tim Maia e Cassiano, o single do filho único da banda responde a Give Me The Night de George Benson, com frases cantadas de guitarra, e serve o turno da noite de um horário completo condensado em pouco mais de meia-hora. Na deliciosa Cheque Sem Fundos, a influência funk-rap dos Tom Tom Club é latente. O romance com a vanguarda novaiorquina viaja em primeira classe no punk-funk à Bush Tetras de Cento e Setenta Um. Agitação política, sexo e filosofia num bacanal na mesma carruagem. Pantomina é new wave à Pretenders com saxofone encantador de serpentes enquanto a inaugural Destrava Maria decalca Master Blaster de Stevie Wonder. O clima tropical do reggae mexe com a temperatura corporal mas é o funk o grande chapéu de chuva de absolvição do vaivém de coincidências suspeitas. Brylho, suor e fantasia.