Duas entrevistas aqui publicadas esta semana, ao fabuloso pianista brasileiro Amaro Freitas e à dupla João Pedro Fonseca e Inês Carincur, do colectivo ZABRA, a propósito da instalação Limbic Landmarks, integrada no Sónar Lisboa, trazem a natureza para o centro da discussão. Os ângulos são diferentes. O músico mergulhou na beleza verdejante da Amazónia - em apenas um ano, o governo de Lula da Silva restituiu a paz perdida durante o pesadelo Jair Bolsonaro, conta - para se integrar na comunidade Sateré Mawé (código ancestral que se traduz por “água ou rio”), escutar os rios e os peixes, e receber a sabedoria ancestral dos indígenas. Já os artistas transdisciplinares propōe quebrar barreiras entre o humano, o natural e o digital no ecossistema da Estufa Fria.
João Pedro Fonseca afirma que ”a nossa maior potência está na tecnologia e naquilo que ela pode oferecer” enquanto Amaro Freitas alerta para a distracção “com as tecnologias” e defende que “toda a gente deveria ter contacto com os povos ancestrais”. A ordem vem do progresso ou do regresso? Podem parecer perspectivas contrárias e até conflituosas. Não são. Ambas propōe uma evolução do antropocentrismo, baseado na coexistência do homem com a natureza e não da dissociação. O reconhecimento de que somos todos natureza é um avanço necessário para restituir um humanismo rasurado pelos ciclos capitalistas de consumo e produção. E que, na ideologia progressista do conceptualista, tem na tecnologia uma terceira dimensão de um ecossistema comum.
É irónico que estas propostas de reformulação do modo de vida ocorram na sagração da primavera, estreada com a notícia de que no outono do Rio de Janeiro, a onda de calor atingiu a sensação térmica de 62,3ºC. Talvez seja o planeta a apanhar-nos pelo clima e a obrigar-nos a parar sem resistência possível, imobilizando-nos e aos aparelhos que são a nossa extensão física como o telemóvel e o computador. Será que os negacionistas conseguiram pôr os pés na areia? A vingança serve-se a ferver. Basta estar atento aos alertas constantes dos cientistas e das organizaçōes ambientais para perceber que não se trata de um acontecimento aleatório ou isolado. Vagas de calor, temperaturas extremas, cheias e tempestades vão banalizar-se. A natureza é hostil e reage a séculos de destruição.
Tal como precavia Amaro Freitas na conversa, “há zonas que vão ficar inundadas, há países que vão ficar sem água e sem alimento. Como natureza que também somos, devíamos aprender mais com ela”. Não é por falta de alertas mas parece que temos de cair para ganharmos consciência da altura do precipício. Nos últimos anos, assistiu-se a uma insurgência de causas na cultura popular: o feminismo, a identidade de género, o combate ao racismo e à xenofobia. No passado, lutas como o Movimento pelos direitos civis dos negros caracterizavam-se pela mobilização colectiva. Os combates do século digital tendem a partir de uma lógica inversa, ou seja do indivíduo para o todo.
Isso tem gerado fracturas em lutas que necessitam de coesão para não confundir causa e consequência. As desigualdades socioeconómicas são o princípio das disparidades. Talvez por ser um problema transversal e, por isso, historicamente mais próximo das lutas universais do Séc. XX, o meio ambiente suscite uma inércia maior. Na música popular, o tema existe há décadas em cançōes como Mercy Mercy Me (The Ecology) de Marvin Gaye (1971), A Hard Rain’s A-Gonna Fall de Bob Dylan (1962), Nothing But Flowers dos Talking Heads (1988), e na devastadora Earth Song, de Michael Jackson (1995). Em 1969, o Woodstock defendia, entre outros ideais, o ambiente. Acontecimentos como o Live Aid (1985), e em particular o Earth Day e o Global Citizen, chamaram a atenção para as alteraçōes climáticas e o efeito da subida das temperaturas.
Nos anos do poptivismo, essa pulsão tanto chegou através de actrizes principais como dos seus mentores. Billie Eilish, Dua Lipa ou Lorde alertaram para o problema e defenderam a importância de questōes como a sustentabilidade. Eilish, por exemplo, deu o nome a um modelo integralmente vegano, com mais de 20% de material reciclado, dos clássicos Nike Air Jordan. Lorde integrou essa tensão no guião conceptual de Solar Power. Bandas como os Pearl Jam apoiaram organizaçōes sem fins colectivos, promoveram acçōes climáticas e esforçaram-se por reduzir a pegada ambiental. Os Coldplay seguiram este bom exemplo de forma palpável na digressão que levou mais de 200 mil espectadores a Coimbra. Figuras mais próximas da idissiosincrasia filosófica como Brian Eno e Björk têm abordado o problema ambiental dentro do espaço criativo.
Independentemente de esse debate ter direcçōes criativas ou discursivas, parece resultar de gestos individuais mais do que de uma cintura colectiva. Talvez isso esteja a mudar à força. Talvez as catástrofes funcionem como um acordar estremunhado. Amaro Freitas e a ZABRA são apenas duas faces de uma mesma ansiedade. Defender os ecossistemas não é apenas lutar pela natureza. É nutrir um humanismo mais saudável, equilibrado e harmonioso, e, no limite, alimentar a democracia com diálogo. Como defendia João Pedro Fonseca, “a dessincronização da natureza é uma dessincronização de nós mesmos”. Talvez tenhamos chegado a um estado metamórfico em que o simples escutar do melro a cantar é um gesto político de pausa e compreensão.