Quem é Tomé Silva? Eis uma questão em sérios riscos de ver o prazo de validade expirado em breve. Produtor do notável Suspiro de Maria Reis, o baterista e explorador sonoro almadense integra o primeiro combo montado por Panda Bear para partilhar as cançōes na estrada. A objectividade pop de Sinister Grift assim o impōe.
Esta quinta-feira no Capitólio e sexta no Theatro Circo, Tomé Silva lá estará atrás das peles, integrado na mesma banda que Maria Reis, o baixista Tim Koh (ex-Ariel Pink’s Haunted Graffiti) e, claro, Noah Lennox, mas se este é o cume natural de 23 primaveras, seria injusto reduzi-lo ao papel de “músico de suporte”, até porque a bateria é um instrumento desobrigado, capaz de assumir outros encargos além da natural pulsão rítmica.
Tomé Silva iniciou-se no metal, dedicou-se a produzir electrónica “tipo Aphex Twin”, escreve cançōes para voz e guitarra, exorciza as baquetas num Drumcore em que trata a bateria “como um exercício meditativo e menos como um exercício técnico”, e vampiriza a “memória emocional” na exploração assumida “de memória, nostalgia e afeto” do circuito pastoral de Quando Voltar ao Chão. Em cada palmo destas terras, o ofício principal é ser enquanto faz. Apesar de ser tímido, sabe muito bem o que está a dizer. É melhor reformular a pergunta. Até onde pode ir Tomé Silva?
Comecemos pelo fim. Chegas ao Panda Bear através da Maria Reis?
Ya, ele foi ao concerto de lançamento do Suspiro. Eu toco no trio dela. Já o tinha conhecido porque quando acabámos o álbum, fomos ao estúdio dele ouvir numas colunas ATC de trinta mil euros. Depois do concerto, alguém me disse que ele andava à procura de um baterista. Tinha que ser uma pessoa que vivesse em Portugal e ele estava em pânico para arranjar pessoas para tocar. Mesmo antes de alguma vez ter tocado com ele, mandou-me mensagem a convidar para fazer a digressão. Ainda nem tínhamos tocado juntos, e já estava a fazer o visto de trabalho. Foi fixe acreditar em mim dessa forma, também porque ele é bué amigo da Maria e sabe que se eu toco com ela, também pode confiar em mim.
A Maria também está integrada na digressão do Sinister Grift.
Sim, a Maria entrou porque a Rivka (Spirit of the Beehive), que toca sampler, nem sempre pode fazer os concertos por causa da banda dela. A Maria toca teclado. Quando a Rivka não está, a Maria toca teclado e sampler.
O Noah convidou-te por não te ver só como “baterista” com pulsão rítmica?
Quero acreditar que sim. Ele sabe que eu gravei o disco da Maria e faço música. Ele confia bué em toda a gente da banda. Tocamos arranjos de bateria, baixo e guitarra em cançōes que eram electrónicas à base de sampler. Chego ao ensaio, faço um arranjo e ele curte.
Há liberdade para improvisarem?
Depende. Nas cançōes do álbum novo, as baterias são todas acústicas e foram gravadas por ele. Toco o que lá está. Até há uma joke que é: “não faço fills nenhuns de bateria. Toco os ritmos sem fills”. No YouTube há um comentário sobre isso. Quando toco um fill no concerto, toda a gente repara. É ‘ganda cena. Nas cançōes mais antigas, tenho mais liberdade.
Sentes-te como o aluno que entra na Faculdade e é convidado para trabalhar com o professor?
É um privilégio, mas eu nunca ouvi muito nem Panda Bear, nem Animal Collective antes de começar a trabalhar com ele. Aí é que ouvi mais e percebi que é bué bom. Animal Collective é das bandas grandes de indie com melhores cançōes, mas só comecei a perceber isso depois de trabalhar com o Noah. Já sabia quem ele era, e que era muito respeitado em Lisboa, mas não era mega-fã. Isso até ajuda no trabalho. Deixa-te numa posição de igualdade.
Olhas para ele como uma pessoa e não como um herói.
Claro, ele é a pessoa mais normal que conheço. E faz boa música. Tal como a Maria, que é a pessoa mais normal que conheço e faz boa música. Não é preciso ser-se um Deus.
Falando de ti, estás a explorar muitas hipóteses ao mesmo tempo?
Sim.
Para te encontrares no caos?
Sim, há bué cenas que quero fazer musicalmente. Fiz o Quando Voltar ao Chão, que era uma estética em que já estava a trabalhar há algum tempo. Deixei isso para trás e agora estou a fazer outra coisa. Paralelamente, faço cançōes para guitarra e voz. Fazia electrónica de dança mas agora não tenho feito.
Tipo Aphex Twin?
Tipo Aphex Twin, ya, e mesmo de club. Nunca muito regular porque eu não gosto de 4x4. Também porque passo som, embora agora não o faça tanto. Isso foi uma cena, ‘tá feita e agora não me interessa voltar aí. Agora, estou a pegar em samples de drumlines americanas e a fazer bué cenas com isso.
De jazz?
Não, de marching bands das universidades. Bué gente com bombos e tarolas, pegar nisso isoladamente e trabalhar som sobre isso. Estou a preparar o meu live, que vai ser isso tocado por mim. Só eu.
O Drumcore é um rascunho desse processo?
O Drumcore só tem samples. Agora, estou a tentar eu fazer as minhas próprias cenas. Estou em várias frentes mas não estou a tentar encontrar a minha cena. A minha cena é bué cenas. Não tenho um objectivo final. Estou só a fazer o que curto. Não há um caminho linear, faço o que me apetecer.
Descreveste-o “como um exercício meditativo e menos como um exercício técnico”. A bateria pode ter outras funçōes além de ser um instrumento rítmico?
Ya. O Drumcore é um caso isolado do papel da bateria porque aquilo são demonstraçōes de destreza técnica pura. O quão bem conseguem vinte pessoas tocar em simultâneo, parecendo que é só uma, os ritmos mais complexos imagináveis. Só que o resultado disso são ritmos não-lineares que acabam por ter um groove muito particular. A ideia é descontextualizar os bateristas a tocar num estádio, ou assim, e pegar apenas no som disso. A bateria numa canção tem um papel rítmico. As cançōes podem ganhar muito com isso. No Drumcore é só o ritmo. Como é que o ritmo pode ter uma emoção?
Uma vida própria?
Ya, ya. Os ambientes acompanham o ritmo e não o inverso.
Contavas-me antes da entrevista que começaste muito cedo a tentar entender o fenómeno do som e estudaste bastante.
Sim, o som interessava-me. O Sérgio [Milhano, do estúdio Ponto Zurca, onde Tomé Silva chegou a ser assistente] falou-me do PTM da ESMAE. Candidatei-me e frequentei durante quatro anos. O curso é fixe, muito variado e com imensas vertentes. É muito fixe para se perceber o que não se quer fazer. Percebi rapidamente o que gosto e o que não gosto. Do que gosto mais é da parte de produção musical e gravação. A composição sempre esteve comigo.
Já consegues fazer vida da música e ser autossuficiente?
Neste momento, sim. Vamos estar dois anos com o Panda Bear. Depois logo se vê.
O que é que estás a tirar desta experiência?
Como navegar socialmente numa digressão, porque é muita gente no autocarro. Estou a conhecer pessoas novas todos os dias. E ter cuidado com a saúde, que é bué importante. Na primeira, em Portugal, na Península Ibérica e na Europa, apanhei pneumonia. Tivemos que cancelar o último concerto. Na última digressão [EUA], só pensava em música quando estava no palco. No resto do tempo, só penso que não posso apanhar frio, tenho que beber chá e comer gengibre. E gerir as relaçōes porque passamos muito tempo com as mesmas pessoas. Convém que a onda seja boa.
É curioso mencionares essas preocupaçōes sobre o lado invisível da cultura rock’n’roll, sobretudo quando se é tão novo.
Também não as tinha. É uma situação excepcional estar num sítio tão distante a tocar todos os dias. Tive que passar a ter cuidados com essas questōes.
Digressōes longas e extenuantes, em que todos os dias se muda de cidade e país, com uma exigência física e emocional permanente, pedem que os músicos vistam o equipamento de atletas de alta competição?
Não faço isto há muito tempo, e também não sou um atleta de alta competição, por isso não consigo fazer a comparação, mas para a minha experiência é a exigência mais comparável a alta competição que já fiz. Tocar todos os dias é diferente de fazer um gig. Por exemplo, o montar e afinar a bateria e tentar que soe sempre igual. Em digressōes enormes, tens técnicos de backline que fazem isso por ti. Nós não temos. Eu monto e afino a minha própria bateria, e gosto de o fazer. Não costumo aquecer antes de tocar com o Panda, porque não é muito exigente a nível técnico e físico, mas com a Maria aqueço sempre porque é mais puxado. Os cuidados de saúde diferenciam, porque estamos ensaiados e sabemos tocar as cançōes. Temos que pensar para lá disso. Como é que nos vamos manter bem física e mentalmente durante a digressão.
Têm algum apoio nesse sentido?
É do it yourself. Cada um trata de si. O tour manager só trata da logística.
Imagino que tenhas crescido num ambiente individual. Como é trabalhar com pessoas diferentes e em papéis distintos?
Curto bué trabalhar sozinho porque posso fazer o que quiser sem ter que dar satisfaçōes a ninguém. Trabalhar com outros também é bué fixe mas têm que ser pessoas em quem confies. Se for o caso pessoas, essas pessoas têm ideias boas que complementam as tuas. É um cliché. Tocar bateria em bandas é um bocadinho diferente porque o meu papel é de baterista a suportar a canção. A ideia é não estragar e fazé-la ainda melhor. Por isso é que curto tocar bateria em bandas, porque estou cá atrás.
É verdade que chegaste à Maria Reis porque gravaste um vídeo a tocar bateria na Odeio-te?
Ya, ya.
Preconceito meu mas associo esses videos à cultura de imitaçōes dos concursos e de YouTube.
Completamente. Já tínhamos amigos em comum porque eu ia ao estúdio da Cafetra, quando estávamos a misturar o álbum de Farpas (Miguel Abras). Eu co-produzi e ia lá muito. Curiosamente, a Maria é das únicas pessoas da Cafetra com quem nunca tinha contactado. Nesse vídeo, não estou a tocar a parte original. Improviso por cima. Gravei o vídeo para ela ver. A Maria nem tinha Instagram na altura mas alguém lhe mandou. Drum covers é bué da lame mas às vezes pode ser fixe. Acho que nesse caso, foi.
Sentes algum tipo de pressão de pertencer a uma tribo?
Gosto de estar em contacto com as pessoas que tocam na mesma cidade que eu mas estar numa cena musical específica de um género, isso não. O meu único pensamento é fazer uma coisa que eu curta e seja boa. Há a cena do underground lisboeta que eu curto bué, e da qual acho que faço porte e conheço as pessoas, mas não penso nisso quando estou a trabalhar.
Revês-te nas palavras da Nadja Lennox (filha de Noah) na Anywhere But Here, em que exalta o ser boa pessoa.
Isso é o mais importante, muito mais do que fazer música. Devemos ter isso presente. Vivemos em sociedade e é muito importante sermos pessoas decentes com consideração pelos outros.
Almada teve alguma importância no que és?
Acho que não. Tive uma banda na adolescência. Almada tem a cena do Margem Sul Hardcore e do hip-hop. A influência foi mais pessoal, na base do ‘eu curto bué este sítio’ e é nostálgico para mim. Não sei se teve alguma influência no que faço.
Nem o contexto sociopolítico?
Não, porque eu faria isto se estivesse noutro sítio qualquer. Gosto de pensar sobre nostalgia. Sou tímido e introvertido, e sê-lo ia noutro sítio qualquer. Por acaso, fui assim em Almada mas não sei se teria sido diferente noutro sítio. Adoro Almada mas acho que não teve influência.
A cultura de Internet propicia o lugar-não-lugar.
Não tinha pensado nisso, mas a cultura de Internet influenciou-me muito mais do que a cidade de onde sou. Sou dessa geração e não há nada a fazer.