Há álbuns que vêm na altura certa, e há outros que nos escapam, apenas para regressarem depois com um peso ainda maior. Em 2019, o díptico Two Hands e U.F.O.F., dos Big Thief, chegava, em duas mãos, no tempo certo como promessa de um futuro divergente do jogo de aparências e duradouro, quando o progresso tecnológico que reformara a cultura popular dava sinais de desgaste e, sobretudo, perdia a capacidade de se reflectir em evolução civilizacional.
Os Big Thief atraíam para um magnetismo metafísico e sustinham a sua própria mitologia - livre, franca, límpida. Vieram Dragon New Warm Mountain I Believe in You, da banda, e os solistas Songs e Bright Future, de Adrianne Lenker, Two Saviors e Haunted Mountain, de Buck Meek, A New Found Relaxation e Blood Karaoke, de James Krivchenia, sem que o rio secasse. A água persistiu em dilatar-se até se cercar de mar sem a espera da corrente.
Mas ainda antes de a maré encher, eles já lá estavam - vulneráveis, desarmados e afectivamente portentosos. A reedição de Capacity pela 4AD é a senha para desarmar a falsa pré-concepção de que o dia só nascera após a madrugada.
Se Masterpiece já apontava caminhos, Capacity cimentou a identidade dos Big Thief. É um álbum feito de silêncios tão importantes quanto o tecido aveludado que o protege e envolve, de espaços onde a voz de Lenker se insinua com uma fragilidade desarmante. Mythological Beauty abre um rasgão no tempo, transportando-nos para a infância de Adrianne, entre feridas e memórias, com um detalhe quase cinematográfico. Em Shark Smile, a banda faz o country soar simultaneamente nostálgico e fresco, enquanto Mary se ergue como um sussurro de beleza transcendental, um fluxo de consciência que parece desafiar qualquer limite físico.
E há uma privacidade desfeita com naturalidade, sem motivos de intrusão, com factos e nomeaçōes (Lenker traça-se em personagens como Evelyn, Andrew, Mary e Haley). As histórias jorram como catarse mansa de hostilidade apaziguada. O processo foi doloroso mas as cançōes superam o trauma. E o peso sai do corpo sem que a memória esqueça o atropelo e a convalescença. As cicatrizes saram o tumulto e a luz cessa a contrição da violéncia.
Há uma sensação de proximidade inescapável em Capacity. Escutando-o agora, com a bagagem dos discos que vieram depois, percebe-se que a grandiosidade silenciosa dos Big Thief é inata. As guitarras de Buck Meek entrelaçam-se como folhas ao vento, a secção rítmica de Max Oleartchik e James Krivchenia é telepática, mas nunca intrusiva. E no centro de tudo está Adrianne Lenker, uma alquimista que transforma cicatrizes em libertação e fantasmas em tapeçaria.
Se há disco que merecia ser descoberto em contramão, é este. Capacity não é apenas um capítulo na história dos Big Thief – é uma peça central. Uma confissão, um sussurro e, para quem chega tarde, um guia espiritual.
Big Thief - Capacity (4AD/Popstock)
Recomendaçōes não-algorítmicas
Gisela João - Inquieta
Se há força que nunca faltou a Gisela João foi a de embalar as palavras e os poetas com o abalo da comoção. Sem deixar o fado que tem na voz casa, vira-se para o silêncio aflito do cancioneiro português de combate, da Inquietação de José Mário Branco, a uma selecção cuidada do repertório de José Afonso, à madrugada de E Depois do Adeus, ou ainda ao olhar feminino de Capicua para Que Força é Essa de Sérgio Godinho - um blues a rodar como sirene. Não é boato. Inquieta só podia ser um disco intensamente político em que Gisela João se apropria de ordens rompidas para tirar do peito o grande brado da liberdade.
Squid - Cowards
Não aquece em panela de pressão, não explode como um vulcão nem fala da luta pela sobrevivência apesar de tratar da saúde a assassinos, cabinais e sociopatas. Pelo contrário, Cowards arrefece os ânimos do pós-punk combativo e poupa na electricidade. O segredo mal guardado da queda pelo pós-rock vem à tona, com uma deriva kraut em Showtime!. Os Squid entregam-se ao existencialismo e ao vaudeville como uma banda crescida a remanescer além da espuma do momento. Um bom disco para enviar a horizontalidade do pós-punk, de que nunca foram reféns, para o banco de suplentes.
FACS - Wish Defense
A política, e ausência de respostas de outras latitudes sonoras, reacendeu o pós-punk mas chegámos a um momento da retroactividade em que simulacros dos Idles, como os Ditz, se sucedem a revivalismos do eixo cinzento de Manchester ou, na sua versão relógio digital, da Nova Iorque fora de horas dos LCD Soundsystem como o assalto à mão desarmada dos The Dare. A resistência sustenta o que falta em frescura mas o prato está a ficar requentado. Não é o caso de Wish Defense - secção rítmica possante, nervo criterioso e ataque à profundidade com uma gravidade existencialista interpretada no teatro das operações. O álbum final dos FACS é o último a ser tratado na clínica sonora de Steve Albini. Nota-se.
Vashti Bunyan - Lookaftering – Expanded Edition
Em 2005, Lookaftering foi apenas o segundo álbum de Vashti Bunyan. Um sonho realizado depois de ser redescoberta nos primórdios da Internet, em fóruns onde se perguntava por ela. Vinte e cinco anos depois de Just Another Diamond Day ter decepcionado a indústria que vira nela a próxima Marianne Faithfull, circulado num pequeno núcleo, e de sua a raridade o ter feito resistir ao teste do tempo como um objecto raro e disputado, Lookaftering aterra como um pequeno milagre. Rodeada de contemporâneos devotos como Max Richter, um emergente Devendra Banhart e Joanna Newsom e a magia da sua harpa, as cançōes são meigas, transparentes e cristalinas. Música que corre da fonte à nascente com a mesma pureza, sem artifícios nem impaciência. Uma maravilha reavidada com maquetas ainda mais indefesas e um registo de um concerto em 2006. Intemporal à nascença, resiste perene e imutável. Quando Lookaftering nasceu, já tinha muitos anos de vida. O movimento free folk deve-lhe a patente.
JPEGMAFIA - I Lay Down My Life For You Director's Cut
As versōes deluxe trazem quase sempre atrelada uma visão calculista de mercado - duplicar números para subir nas tabelas, ganhar streams e gerar impacto - mas no caso de JPEGMAFIA, os seis meses de separação para o encore de I Lay Down My Life For You, a conversa é outra. Quando o recarregamento é feito com muniçōes como Either on or off the drugs, ALLAH e a proverbial What the hip hop hell is this?, o ataque está justificado.
Lawrence English - Even The Horizon Knows Its Bounds
Todos os caminhos de Even The Horizon Knows Its Bounds vão ter a arquitectura sonora, mas a imaterialidade contínua e vaporosa, é como estar preso num túnel sem contacto com o exterior. A peça foi construída na Galeria de Arte NSW, motivada pelo edifício Naala Badu (ver através da água em dialecto Dharug) e participada por Amby Downs, Chris Abrahams, Chuck Johnson, Claire Rousay, Dean Hurley, Jim O’Rourke, JW Paton, Madeleine Cocolas, Norman Westberg, Stephen Vitiello e Vanessa Tomlinson. O conceito de "lugar" é pensado como um espaço físico de subjectividade. O paralelo com William Basinski é óbvio mas a visão conceptual pertence a Lawrence English.
Eduardo Polonio - Obra electroacústica 1969-1981
Pioneiro da electroacústica espanhola, o apanhado da obra fulcral de Eduardo Polonio percorre desde os primórdios da conspiração anti-franquista, quando Polonio se reunia com John Cage e Steve Reich, até ao livre arbítrio de trabalhar materiais distintos como música concreta, minimalismo, flamenco e música árabe em ambiente laboratorial de experimentação electrónica. A colecção suplanta a museologia e, pela sua importância fundacional e quadro histórico, transmuta-se em vénia à liberdade.
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