Pobres dos que fingem não reparar no rap por preconceito de classe, dureza de ouvido ou massa demasiado cinzenta. 2024 foi a melhor apanha em anos. GNX de Kendrick Lamar e Chromakopia de Tyler The Creator jogaram em pressão alta na liga cimeira, Alligator Bites Never Heal desmascarou Doechii, a personagem feminina que Nicki Minaj nunca foi e Cardi B nunca será. Houve mais. Álbuns como Dark Times de Vince Staples, I Lay Down My Life For You de JPEGMafia, shadowbox de Mavi, The Thief Next To Jesus de Ka, Revelator de Elucid, Songs For Sinners and Saints de Killer Mike e o EP Drop 7 de Little Simz, devolveram as razōes certas à causa em volume e intensidade. Ainda estamos na alvorada do ano e a torneira já espirra. Nem sabem o que estão a perder se não derem uma oportunidade a Showbiz!.
Ao ritmo imparável de um disco por ano, a cruzada de Mike tem sido um exercício de introspecção e resistência. Às vezes, o monocromatismo não encaixa na matemática instrumental. É ilógico, sai fora das medidas e ressoa como um Tom Waits no intervalo da faculdade a fumar vape. Sem se distanciar da cenografia lo-fi encardida, o rapper de Brooklyn expōe uma visão ainda mais cinematográfica das vinhetas extraídas do surrealismo, que parecem ecoar num cinema vazio depois da última sessão.
Mike aceita a responsabilidade de um legado em musculação mas há aqui uma descontração renovada, como se aliviasse tanto peso nos ombros. O fluxo mantém-se irregular, deliberadamente desalinhado, uma técnica que já se tornou marca registada e que transforma cada micro-conto num diário de pensamentos soltos, sem grande ordem ou nexo.
É rap sulcado na ortografia, amigo do insano em Span Out, que se atreve a invadir os aposentos de Erykah Badu em Miss U, e atinge o cume do experimentalismo no drum'n'bass camuflado de Zombie pt.2. Em Man In The Mirror, imaginamo-lo no púlpito a pregar sobre instrumental VHS de breakdance. Há um sentido de humor a sair debaixo das pedras e a entreabrir a cortina para Michael Jordan Bonema e Mike se reconhecerem ao espelho.
Mike já não é só um arquitecto de atmosferas. É um contador de histórias de primeira apanha capaz de transformar o guião pessoal em filme de autor para ecrãs verticais e telas amplas.
Showbiz! é apresentado a 28 de março no Lisboa ao Vivo
Recomendaçōes não-algorítmicas
Joana Gama e Luis Fernandes - Strata
Há um manto de nevoeiro cerrado a atravessar Strata que o toque cristalino de Joana Gama insiste em cessar. Dez anos depois de se terem iniciado um diálogo, os passos não voltam. São em frente, sem vontade de chegar onde os esperam. Música com profundo respeito ao silêncio que só o interrompe devido a pulsões mágicas como a de Geode. Não sabemos bem onde estamos mas sabemos que queremos estar por aqui, entre pequenos gotejos e uma espessa névoa. Há uma natureza comum a Joana Gama e Luís Fernandes a fundir-se numa só sem se repisar.
Filipe Sambado - Gémea Analógica
A gémea de Filipe Sambado é desmaquilhada e sem artifícios. Vem como é, em pele e osso, na sua versão mais primitiva apenas para voz e guitarra. Enquanto Três Anos de Escorpião em Touro era hiperproduzido e exorbitante em camadas e texturas, Gémea Analógica remove as gorduras e despe as cançōes até à essência, deixando Filipe Sambado a nu com o seu querer. Na falta de um comício para ser Zeca Afonso, monta-se um sanatório. "Só para ver a merda que fiz".
Eddie Chacon - Lay Low
É impossível resistir a tanto charme, apesar de o brilho de Eddie Chacon reflectir para dentro. De coração quente e copo vazio, lambe as lágrimas de um amor derrotado em Lay Low. Cançōes como Let You Go e Empire são de uma tristeza comovente e deliciosa de auscultar. O desgosto é servido em prato quente, como se os genes de Chacon tivessem sido herdados da Motown, mas em End of the World é o fantasma de Prince a assomar. Enquanto a democracia se vai desintegrando e a espécie se vai cortando nas silvas, Chacon aceita os efeitos retroactivos das bíblias e dá-lhe com a alma.
Ebo Taylor, Adrian Younge e Ali Shaheed Muhammad - JID022
Se o corpo deixar, a medicina cuidar, o planeta não fritar e o sangue não arrefecer, deve ser divertido chegar aos 89 com a jovialidade de Ebo Taylor. O patriarca do afrobeat é recebido na casa criativa de Adrian Younge e Ali Shaheed Muhammad para um manifesto de prazer, cor e alegria, em que ser quem sempre foi é liberdade e não prisão. Se ainda nos soubermos divertir como miúdos, está aqui uma festa no quintal.
Ambrose Akinmusire - honey from a winter stone
Os primeiros quinze minutos de honey from a winter stone são impressionantes. Em muffled screams, o magnetismo do trompete de Ambrose Akinmusire dialoga com o piano e bateria, como se de uma cena policial se tratasse, enquanto a tensão cresce até o vocalista Kokayi narrar a experiência-limite do condutor da banda. Tanto a palavra como toda a cenografia musical partem do improviso. É música que faz do medo coragem para enfrentar as desigualdades sistémicas do racismo e da incerteza risco para suplantar as dificuldades. Jazz não-literal, acentuado pela gravidade dos sintetizadores de Chiquitamagic em diálogo persistente com a liberdade que lhe permite dar uma volta da erudição ao rap da rua, filmada pelo trompete de Akinmusire.
Geologist & D.S. – A Shaw Deal
Objecto estranho? Sim, para quem não concebe o espaço criativo desprovido de obrigaçōes, mas só o boato de estarmos à escuta de um objecto incomum já é o bastante para causar atracção. Feito o convite, o espaço comunal de Geologist (Animal Collective) e D.S. (Highlife, White Magic) é inclassificável mas longe de ser inóspito. A simbiótica de camadas reunidas de ambos é plena e fascinante. Peça textural de colagem desprovida de linhas, invoca os psicadelismos dos Animal Collective sem se confundir com eles. Não há mimetismos, apenas o mesmo propósito de ser incondicionalmente livre.
Fadi Tabbal - I recognize you from my sketches
Retrato do artista no seu atelier, pode não parecer mas I recognize you from my sketches é um diálogo. Entre quem? Entre o conceituado músico, produtor e sonoplasta libanês e a solidão. Ao longo de dez borrōes instrumentais, circulam guitarras eléctricas, sintetizadores e fitas com samples de origem desconhecida. Tabbal manuseia os materiais como um cubo de Rubik, para espantar os seus fantasmas. Está encontrado o William Basinski dos otomanos.
Jeff Mills - Star Child
O novo Jeff Mills de sempre ainda é inconfundível da amálgama de techno indistinto e speedado. Cerebral significa inteligente, hipnótico quer dizer espiritual e ancestral representa conhecimento. Apesar de Star Child não ter futurismo escrito na testa, Mills ainda é tudo isso que continua a fazer sentido.
Madvillain - Madvillainy Demos
A primeira geração MP3 apoderou-se da maqueta de Madvillainy, ainda em 2002, e pô-la em circular em fóruns. Antes de o ser em 2004, já era um objecto de culto. A versão final do clássico subterrâneo de MF Doom e Madlib contém uma costura mais elaborada e um zelo vocal mais teatralizado. A maqueta é mais simples e destapa um MF Doom ao natural, a rasgar sobre a mestria de Madlib. A simplicidade da gravação e a espontaneidade da simbiose só engrandecem a primeira forma deste material. Depois de terem sido editadas em vinil no Record Store Day do ano passado, as primeiras intençōes ganham merecida vida própria em todos os formatos.
Rüdiger Lorenz - Synrise - Early Tape Recordings 1981-83
Mestre na arte de controlar sintetizadores, construtor de instrumentos e farmacêutico, o alemão Rüdiger Lorenz não tem nome de rua mas uma colecção como Synrise - Early Tape Recordings 1981-83 informa sobre a injustiça histórica. Num mundo pós-Kraftwerk, Cluster e Klaus Schulze, abre-se um portal de magia cósmica e espaço infinito, propiciado por sintetizadores, vocoders e a curiosidade natural de os testar. O carácter lúdico destas gravaçōes sugere um adulto a brincar como criança no parque. O peso arqueológico não se sente no plano de voo. Respira-se um futurismo de ânimo leve iniciado com a genuína intenção de deslizar.
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Que leitura 🙌