O individualismo de Geordie Greep não começa em Blues, lume aceso pelo rock matemático dos Botch com as múltiplas incógnitas dos King Crimson, já decifradas previamente pelos Black Midi. O vento só começa a soprar pelas costas na inesperada salsa de cruzeiro de Terra - congas, trompetes e um inesperado crooner a atravessar o fumo. E quando Holy, Holy supera os primeiros segundos de trovoada, espera-nos uma inesperada jam entre Sinatra, Hendrix e Miles. Isso. Um banquete latino com vestimenta engomada. Fato, laço e chapéu de coco. E então sim o New Sound está a fazer pelo nome.
O “novo” não o é de uma perspectiva histórica - nem recente (os Mars Volta andam há vinte anos nestas terras) e muito menos secular (Evils Ways e toda a era Woodstock de Carlos Santana não era mais nem menos do que isto) - mas no corpo celular de Geordie Greep. É quando todas as partículas - jazz, rock progressivo, salsa - entram em choque que nasce um novo homem. Nos Black Midi, algumas destas águas já corriam como pequenos lençóis subaquáticos mas em New Sound ganham caudal e transbordam.
Uma banda é um compromisso colectivo e implica concessōes. Apesar de ter gravado parte do álbum no Brasil com músicos locais, Geordie Greep responde apenas pela sua palavra. Se o cansaço e o desencontro de personalidades estripou os Black Midi - cada vez mais, as bandas são feitas de relaçōes liquídas, impacientes e efémeras, como todas as outras na vida -, a estamina reacende o vocalista como domador de vulcōes e maestro sonoro. A dose que se perdeu do colectivo é devolvida em dobro com guarnição como na viagem à Broadway de The Magician.
O charme antiquado floresce da catarse organizada de mestres da teoria e prática como Miles Davis. “Música para os ouvidos e não para o cérebro”, defendeu ao Guardian. A civilidade incendiária dos Black Midi vinha de escola (a estatal Brit School). A solo, Geordie Greep solta as esporas após a ruptura abrupta com os companheiros - percebeu-se depois que os dois factos estavam relacionados e a auto-determinação já era o dia seguinte à banda. É uma reviravolta extasiante e indomável de um animal faminto de imprevistos, consumidor de tango, tropicália e da anarquia de Frank Zappa em doses cavalares. A digestão não é apenas uma vénia. O New Sound justifica o nome. Pelo menos, o próprio. Adeus Black Midi! Bem-vindo Geordie Greep!
Recomendaçōes não-algorítmicas
The Smile - Cutouts
Talvez sob o efeito do díptico Kid A/Amnesiac, Cutouts chega menos de nove meses depois de Wall of Eyes. Feito na mesma cama, isto é nas mesmas sessōes do antecessor, talvez seja vítima de um entusiasmo adolescente pressentido à distância em Thom Yorke, Jonny Greenwood e Tom Skinner, mas nem sempre aliado da consistência. Ainda assim, os picos de intensidade sucedem-se. Zero Sum reenvia-nos para os Talking Heads. Eyes & Mouth são os Radiohead em passeio de chapéu de chuva, Don't Get Me Started resgata a tensão de Kid A/Amnesiac e as cordas de Tiptoe são de fotografia cinematográfica. Em The Slip, afrobeat e sintetizadores berlinenses entrelaçam-se. Sem a aragem de A Light for Attracting Attention, continua a valer mais que o xarope dos Radiohead pós-Hail To The Thief. E esvazia mais um bocadinho o regresso da hibernação destes.
Godspeed You! Black Emperor - No Title As of 13 February 2024 28,340 Dead
Não se espera que a montanha dos Godspeed You! Black Emperor se mova. Aguarde-se sim que ela se mantenha imponente e elevada, com relevos de beleza e tragédia. No Title As of 13 February 2024 28,340 Dead foi o número de palestianos mortos declarados pelo Ministério da Saúde de Gaza, quando Israel continua a atacar a região e já alastrou a sua ofensiva ao Líbano. Nas seis longas peças feitas de massa vulcânica, drones e colagens, há tragédia, luto e catarse. Magma expelido por um vulcão.
Dawn Richard e Spencer Zahn - Quiet in a World Full of Noise
Como pode o silêncio existir num ecossistema tão ruídoso e cacofónico? Dawn Richard e Spencer Zahn cuidam da nossa saúde auditiva com uma visão comum de que a música parte do silêncio e, como tal, deve respeitá-lo. A premissa de Quiet in a World Full of Noise é ética mas o segundo álbum conjunto da dupla transcende a filosofia e é imensamente belo. Zahn encontrou em Richard o par perfeito para pôr em palavras a placidez de Chet Baker, a filosofia de Brian Eno e a suspensão dos Talk Talk. O silêncio não abrevia a intensidade. As paisagens delicadas quebram a funcionalidade da música atmosférica actual.
Aphex Twin - Selected Ambient Works Volume II (Expanded Edition)
O que dizer mais sobre Selected Ambient Works Volume II, além das evidências de obra-maior, tentacular para a música ambiental e electrónica desacelerada? À distância de trinta anos, o paisagismo hoje em voga na cultura de playlists não oferece paz nem leveza. O excerto da entrevista de uma mulher que matou o marido em #22, cedido por um amigo que trabalhava nas limpezas da polícia, diz muito sobre a ambiguidade de Aphex Twin que depois de outra obra-prima, Selected Ambient Works 85–92, fechava aqui um ciclo ligado ao imaterialismo. Embora possa não parecer, Selected Ambient Works Volume II é tenso, tempestuoso e sombrio. Música solitária sem medo de reconhecer o isolacionismo como cláusula inegocivel do abandono. Minimalista, como Brian Eno ou John Cage. Instável e fantasmagórica. Um pesadelo em James Street com três subornos: #19, até agora apenas disponível em vinil, Th1 [Evnslower] e Rhubarb Orc. 19.53 Rev.
Nathan Micay - Industry Season 3 OST
Terceira temporada da série produzida pela HBO e pela BBC, terceira acto de mestria de Nathan Micay. Banda sonora tétrica com de fazer trancar as portas, aterrorizada pelo fantasma de John Carpenter e hipnotizada pelo magnetismo dos Tangerine Dream.
Victoria Monét - Jaguar II: Deluxe
Há um ano, Jaguar II rompeu com a horizontalidade do r&B e pôs-se ao nível de SZA. A versão Deluxe soma-lhe ainda mais líbido, Thundercat, Usher, Bryson Tiller e uma versão de Love Is Stronger Than Pride de Sade. Deluxe é de luxo.
Jibóia - Salar
A unidade móvel de Óscar Silva já tinha arrolado Ricardo Martins e Mestre André para testemunhas da psicadelia estelar e dos feitiços médio-orientais - ingredientes da dialéctica de Jibóia desde os primeiros EP. Em Salar, a incursão por novas babilónias tem mão dos convidados: o violoncelo de Joana Guerra em Selar, o trompete livre de Yaw Tembe em Solar, os arabescos vocais de Ayoub ElAyady em Sitar, o desacorde de Filho da Mãe em Sarar, o digitalismo de Pedro Augusto em Sonar e a flauta de Daiyen Jone em Salir. E em pouco mais de meia-hora, Jibóia pode ser muitas terras sem perder o chão comum.
Chiminyo - NRG 3
“Será a cena inglesa de facto jazz?”. A interrogação serve de premissa para as sessões de improviso do baterista/produtor Chiminyo, e desagua numa linguagem híbrida entre os contratempos do jazz, o linguajar de rua e o drum’n’bass físico. O diálogo instrumental com os convidados Pouya Ehsaei, Maria Chiara Argiró e Sam Warner é vivo, pulsante e provocador (“como devo chamar a esta faixa? Fred Not Again? Parece um bom nome”). Apetece saltar para dentro deste concerto.