Arte é a escultura do invisível. A história da música insurgente, como o punk, no final dos anos 70, do hip-hop, nos anos 80, ou da cultura rave, nos anos 90, conta-se a partir do que não estava escrito, embora se pressentisse debaixo das pedras. O que é paradoxal na banda rock mais relevante dos últimos anos não é o ter descoberto uma nova cura, mas o ter ressuscitado uma bula rasgada no capitalismo cultural de massas. A música enquanto despertador e toque para a saída.
Quando os Idles se lançaram às feras em Brutalism (2017) e explodiram em Joy as an Act of Resistance (2018), o rock estava alheado dos debates. Não quer dizer que não houvesse bandas eléctricas a problematizar, mas nenhuma servia de farol. No momento certo, a bomba explodiu e se foi o estrondo a acordar o vulcão hibernado, foi a coerência na relação entre a adrenalina musical e o discurso inteligente, esclarecido e necessário o estuque ideológico. Percebeu-se que tocavam em feridas como a xenofobia, o machismo e a injustiça salarial, que incomodavam (Sleaford Mods e Fat White Family), mas também que iam deixar marca (muito diferentes entre si, Fontaines DC, Dry Cleaning e Yard Act vieram depois).
Ferozes em palco, restituíram a fé no rock enquanto espaço de observação, reflexão e exteriorização. À velocidade furiosa do mundo, seis anos podem ser uma eternidade mas antes dos Idles, o rock era um balde de cerveja, uma passa de erva e um refrão para uma operadora. Estava adormecido e anestesiado. Desde os Rage Against The Machine que não se via uma banda assim, mobilizadora e credível, com a pequena grande diferença de os Idles não distribuirem panfletos. Defendem causas e acçōes, não necessariamente partidos - um socialismo igualitário e progressista.
Pouco mais de cinco anos depois de terem estreado em Portugal com casa cheia em duas noites no Hard Club, no Porto, e no antigo LAV, em Marvila, as previsōes estavam certas. O amor venceu. Os Idles conquistaram a presidência dos afectos. De radicais a moderados, Tangk é o álbum de todas as conciliaçōes - que melhor ocasião para vir ao mundo que dois dias após o S. Valentim? Uma geringonça de compreensão do próximo e de inserção do outro. Ou um abraço colectivo por todos os que se foram juntando a esta causa ao longo dos anos e viram nos Idles o ombro amigo que julgavam perdido. O brutalismo está mais delicado.
Talvez Tangk tenha tanto de fundamento como de efeito. Estes Idles são os mesmos, dentro do poço à espera de uma nesga de luz, mas estão diferentes. Não incitam a inércia nem o confirmismo mas estão mais próximos da resolução individual. “Save me from me – I’m found, I’m found, I’m found”, suplica Joe Talbot em Jungle. Provavelmente, a sua percepção nunca tenha sido tão subjectiva e doce como agora.
Em Ultra Mono (2020), os Idles queriam matar a caricatura de banda rock de combate. Em Crawler, do ano seguinte, reclamavam uma inocência reinventada. Cançōes como The Beachland Ballroom expunham o desejo de rasurar apriorismos e voltar à casa de partida. Em Tangk, os extremos tocam-se. De manhã saem para a rua mas à tarde aceitam sentar-se à mesa das negociaçōes. O “fuck the king” no final de Gift Horse não choca com o elogio da amizade de Gratitude. O divórcio, a paternidade e o novo amor de Joe Talbot fazem crescer o campo criativo.
Dos Idles impulsivos restam Gift Horse, Dancer (com uns LCD Soundsystem em fundo no refrão), a vigorosa Hall & Oates e a nervosa Gratitude, muito devedora dos The Fall, irmãs mais novas de Mother, Danny Ndelko ou Mr. Motivator. É na exclusividade de Tangk que se observa o corpo dos Idles em movimento. No eterismo de Idea 01, na hipnose de Pop Pop Pop e Roy, recebida de Pre-Millenium Tension de Tricky, no piano paternal de A Gospel ou na eminência pop de Grace, pedaço irresistível de pop no vídeo manipulado através de inteligência artificial, auxiliado por Chris Martin em pessoa.
Os Idles movem-se da zona de desconforto para se desconfortarem. Vão a jogo com as suas convicçōes. Não repetem o programa porque o seu contexto se alterou. Usam o poder como repto. Tangk talvez não tenha ideias tão brilhantes como as dos seus antecessores mas desafia os limites da atenção ao questionar uma personalidade formada e uma mensagem interiorizada. Não querem ser maiores, querem ser melhores. É por isso que continuam autores da sua narrativa.
Recomendados:
Grandaddy - Blu Wav
Molly Lewis - On The Lips
Ricardo Martins - Distraimento
Adriaan de Roover - Other Rooms
Fred Frith - Guitar Solos Fifty