A nostalgia é um país confortável, idealizado e preguiçoso. Como é governado pela memória selectiva, raramente faz perguntas e quando se atreve a ser inconveniente, liga o programa de esquecer. Para quem se relaciona com a música como uma máquina de ginásio, a nostalgia é o equivalente ao sofá. Representa resistência ao progresso, medo da descoberta e temor do novo. É uma espécie de botão de segurança que depōe a exposição ao risco. Um totobola à segunda que resulta em fuga quando o confronto com o real é desordenado e confuso. Relacionamo-nos com a música por nos levantar questōes ou por nos validar respostas? Depende do desporto praticado. A nostalgia é um remate a seis metros da baliza sem guarda-redes, mas ela existe e marca golos. Será um território estanque ou, paradoxalmente, as suas placas tectónicas movem-se?
Em 2004, Unwritten foi o terceiro single do álbum homónimo de Natasha Bedingfield. A canção evocativa da diáspora indiana dos Beatles já viveu várias vidas. Em 2006, foi o maior êxito na rádio americana, chegou ao top 5 da tabela de singles e conquistou uma nomeação para Melhor Performance Pop Vocal Feminina, além de uma outra para Álbum do Ano nos Grammy. Muitas séries e filmes depois, foi ressuscitada na comédia romântica Todos Menos Tu, protagonizada pela namorada da Gen Z Sydney Sweeney. Unwritten disseminou-se no TikTok e vinte anos depois voltou à ribalta. Nos EUA e Reino Unido, já leva duas platinas e subiu ao primeiro lugar das mais ouvidas Spotify.
Em 2002, Murder On The Dancefloor foi o 12º single mais vendido do ano. O maior êxito da carreira de Sophie Ellis-Bextor é uma bombom de disco-house, na esteira de Kylie Minogue, que se manteve activo em rádios e pistas até ser esquecido para lá do Canal da Mancha. Depois de ter sido repescada para uma das cenas centrais do filme Saltburn, de final do ano passado, a paixão ganhou honras de romance. Num ápice, chegou ao segundo lugar do top inglês e nos EUA subiu em flecha nas tabelas. Nos primeiros meses do ano, Murder On The Dancefloor registou 1,5 milhōes de reproduçōes diárias nas plataformas de streaming. É muito sangue a jorrar no piso.
Unwritten e Murder On The Dancefloor renasceram no cinema e propagaram-se nas redes sociais, seguindo uma tradição recente introduzida por Dreams e Running Up That Hill, com a pequena grande diferença para os singles de Fleetwood Mac e Kate Bush que nunca terem beneficiado do prazo infinito de validade destes. Nem Natasha Bedingfield nem Sophie Ellis Bextor alguma vez foram tão populares como agora, nem provavelmente alguma vez esperariam vir a ser as mães mais ouvidas entre os filhos. Será o habitual ciclo de vinte anos de intervalo entre a adolescência e a recordação de verōes azuis a repetir-se, ou o efeito de um vórtice em que a relação com o tempo foi reduzida a dados móveis?
É justo reconhecer que ambas preenchem um espaço radiofónico secado pela Internet. O single de rádio, deliberadamente democrático, abrangente e transversal foi esvaziado pela ligação directa entre artista e seguidor. Para quê intermediários? Nem Hit Me Hard and Soft de Billie Eilish nem The Tortured Poets Department de Taylor Swift trazem singles no bolso e, no entanto, os números estão à vista. Por outro lado, o TikTok está cheio de música anónima com cara de BOT, decorativa de todo e qualquer momento Moleskine. Isto resulta da destituição quase integral de contextos e substituição pelo algoritmo-Deus enquanto entidade superior e mandatória de todas as práticas. A memória é argamassa para a construção de uma narrativa mas neste cenário tudo é uma experiência indistinta. Até o caos precisa de alguma ordem para ser apreciado como tal.
No capitalismo pop, o novo foi sempre o objecto mais apetecível, vendável e reprodutor do momento. Com alguns intervalos na chuva, como a transição para o digital que convidou a indústria a vender a enésina reedição de Dark Side of the Moon ou de Hotel California, que na década de 90 interroperam a volta de consagração de Nirvana, Guns N’Roses e Whitney Houston. Mas ainda assim, o suporte CD era novo e arregalava os olhos dos audiófilos que ouvem som em vez de música. A dissociação dos contextos, incluindo o temporal, e a sobrevalorização da música enquanto estado meramente emocional, faz dela um fluxo contínuo e anárquico em que Unwritten e Murder On The Dancefloor pertencem à mesma ordem de acontecimentos de Charli XCX, Billie Eilish ou Taylor Swift, cumprindo até o papel de as substituir na produção para a cadeia alimentar radiofónica.
No início dos anos 2000, bandas como Strokes, The Hives, Interpol, Black Rebel Motorcycle Club, Radio 4 e até LCD Soundsystem irromperam não apenas como um movimento revivalista do punk e suas descendências mas como uma resposta à pop insuflada e gordurosa de final dos anos 90 - a figura obesa representada na capa de You’ve Come a Long Way Baby de Fatboy Slim é a representação visual definitiva da expansão da cultura Big Mac no espaço da pop. Havia um movimento entre a causa e a consequência. O rock’n’roll sempre consistiu na arte do assalto e, na falta de matérias primas próprias, a reciclagem levava a comida ao prato. Podemos reconhecer em Brat de Charli XCX ou em colectivos como a Griselda processos semelhantes, até na distância temporal de vinte/trinta anos enquanto íman da actualidade, mas o que a perpendicularidade de Unwritten e Murder On The Dancefloor nos diz é outra coisa.
Em tempos de incerteza, os portos seguros ganham firmeza mas não é este o caso. Não tenhamos dúvidas que no consumo algorítmico, ambas são recebidas como música de agora, independentemente de ser conhecida ou não a sua procedência histórica. E de que não serão as últimas a ser reenviadas para o futuro. Veja-se Freed From Desire de (quem?) Gala, desarrumada da gaveta quase trinta anos depois de ser heat de verão. Unwritten e Murder On The Dancefloor reproduzem uma relação com o tempo em que passado, presente e futuro são o mesmo caudal. Podia até ser uma consequência saudável se conduzisse a um pensamento em que a música nova não precisa de ser nova no tempo, e gerar novos descobrimentos sem fardos históricos, mas este comboio apita noutro sentido. A liquidificação histórica conduz a um estado em que a música perde os efeitos reflexivos. Não diz sobre quem fomos ou o que somos. Vintage, retrofuturista ou visionária não serve para nada a não ser criar pequenas cápsulas de clímax temporário. São apenas fenómenos de comunicação, como o ressurgimento do shoegaze no TikTok.