Comparaçōes tendem a ser injustas e odiosas, mas se há alguém no espectro europeu da mesma altura de Kendrick Lamar, o patriarca contra natura do século digital do hip-hop, é Little Simz. Ela é destemida como uma felina, veloz e ágil como uma atleta, e autêntica como uma amiga. Emana cultura de rua, conhecimento académico, ancestralidade e progresso.
De resto, "Simbi" é um dos rostos do desconforto e oposição ao cerrar de fronteiras arrastado por políticas ultra-conservadoras e unionistas. E por contraste com uma certa afirmação masculinizada do rap feminino americano, nunca se coíbiu de se expressar como mulher, expor fragilidades emocionais e rejeitar uma imagem objectificada. Força vulnerável, eloquência, destreza verbal e uma sensibilidade avançada para deitar o texto na cama certa elevaram-na ao topo de uma montanha que seis álbuns singulares, digressōes constantes e a participação activa no colectivo Sault nunca deixaram interromper a escalada. E agora Lotus?
Quando os dias no calendário empurravam para uma volta de consagração, a auto-confiança perdeu-se e é chegado o álbum da desilusão pessoal. Nos últimos meses, Little Simz envolveu-se num imbróglio judicial com Inflo, cérebro prático de toda a amplitude musical, cúmplice nos Sault e marido de Cleo Sol, uma das vozes desse colectivo que deixou cair a máscara sem se destituir de uma magia enigmática. O motivo: um empréstimo sem retorno de cerca de dois milhōes de euros, relacionado com o até agora concerto único do grupo, em dezembro de 2023 em Londres (um segundo acaba de ser anunciado no festival All Points East, na capital inglesa a 15 de agosto).
Perdeu-se um produtor, ganhou-se um inimigo. Lotus não poupa nas tiradas. “You talk about god when you have a god complex, when I think you’re the one who needs saving…”, dispara na explícita Thief. “We went for 100 down to nought, and yes it is all your fault … your name wasn’t popping until I worked with you”, recarrega. E a estocada final não deixa dúvidas sobre o alvo a abater. “This person I’ve known my whole life, coming like the devil in disguise. My jaw was on the floor, my eyes have never been so wide …”.
Em álbuns anteriores, a caneta manifestava-se a partir da tensão entre reflexão e observação. Sometimes I Might Be Introvert era o teatro da sua consciência, Lotus é o quarto escuro onde é preciso bater à porta antes de entrar. Simz volta-se para dentro no refluxo da desilusão. Enquanto setas como Point and Kill ou Gorilla catalisavam a inquietação para um revolta pessoal plasmada em energia colectiva, a traição aflui em desânimo e a uma plasticidade sonora mais coesa, mas a flor não murcha.
A ausência de Inflo é omnipresente. Se a abertura em Thief tem ímpeto new wave, Flood convoca o tribalismo reconhecível do livro de estilo, e Young resgata as narrativas sarcásticas de Mike Skinner, há um punhado de cançōes em Lotus da melhor tapeçaria dos Sault como Free, Peace, Lion e Enough - caderno de rimas aberto a socar como monólogo de pugilismo, uma secção rítmica electrizante a conduzir nas curvas do funk e afro-beat, como Jaki Liebezeit guiava nos Can, e anjos da guarda como Moses Sumney, Obongjayar e Michael Kiwanuka. E há Blue, um final sem felicidade amparado pelo ombro de Sampha.
Em entrevista ao Guardian, assumia ter-se sentido “perdida” durante o processo. O Lotus ajustas conta sem se tornar insensível, cínica ou frívola. Simz está mais contida, mas não menos feroz. Pugna por respostas individuais para o desencanto. E ainda assim, tem a capacidade de romper com o provável e somar novos ângulos a uma biografia imparável.
Álbuns da Semana
Lifeguard - Ripped and Torn
Aí está um disco de rock com os ossos todos. Punk desfiliado de épocas com nervo, urgência e fibra. Cerebral e físico. Intencional e perigoso. Ainda para mais, não soa a uma generalização pós-punk como vem sendo hábito.
Hayden Pedigo - I'll Be Waving As You Drive Away
Após anos de estrada intensa com Devendra Banhart, Jenny Lewis e Hiss Golden Messengers, Hayden Pedigo trava os motores e volta a entregar-se à solidão. A habilidade técnica de I'll Be Waving As You Drive Away vem despida artifícios. Expressa nudez, integridade e um rascunho de possibilidades. O estudioso de John Fahey, e membro da mesma família musical de Riley Walker, transporta para as seis cordas um vagar de observação, escuta e frustração de mínimos maximizados.
Vanyfox - Melodias e Choros
Última peça de uma trilogia, após Banzelo (2022) e Sonho Azul (2023), Melodias e Choros consagra o labor constante, o toque lento e a batida hipnótica de Vanyfox. Como nos episódios anteriores, o ciclo passa inevitavelmente pela pista mas não se prende à pista e vive sem contra-indicaçōes sob a luz do dia. É uma questão de equilíbrios e contrastes, e o doseador de Vanyfox tanto serve euforia, como despreocupação, reflexão e confronto saudável. O fado (Lento), a cultura hip-hop (Youth Kriminal) e future bass (Free Your Mind) são costelas de Adão de um produtor educado na cultura de festa e superação da Príncipe que tem muito mais para além de champagne em frapé. O Vanyfox é do dia para a noite, e do mundo.