“Ha, o Vanyfox”. A impressão sonora, é portadora do mesmo sangue de raposa dos príncipes da batida lisboeta DJ Marfox, Nigga Fox e Danifox. Não é preciso ser animal nocturno ou ter recebido um código com a localização secreta de um Boiler Room para já ter ouvido este tag.
Se há marcas sonoras no produtor da região norte de Lisboa, há mais de uma década radicado em Paris, é a transcendência do espírito festivo, tangível em BPMs lentos, requintes melódicos e ambientes pensativos, incomuns em meridianos onde o corpo comanda a vontade.
Melodias e Choros é explícito. Há um ciclo emocional a fluir desde o romance do tarraxo com o fado de Lento, com Ana Moura, à lassidão de Free Your Mind, o descontrolo de Run It Back e a adrenalina de Youth Kriminal. Nem sempre conhecemos os produtores e DJs além da reverberação das colunas e da pedagogia de tutoriais. Eis Paulo Alexandre, a descobrir-se através do ritmo, amor e melodia. Ha, o Vanyox.
O nome Vanyfox vem da linhagem Fox do DJ Marfox?
Exactamente, é uma conexão da geração de pessoas que ouviam a batida de Lisboa. Foi assim que surgiu. O nome não tem nada a ver com o meu (Paulo Alexandre).
Tem algum significado ou é apenas uma questão sonora?
É uma questão sonora, aliás eu já pensava nisso desde muito cedo. Com 12 anos, já sabia que precisava de um nome para não se confundir com a vida real. Queria separar.
Também começaste com o Magalhães como os produtores da Príncipe?
O meu caso ainda é mais drástico. O Magalhães já estava numa fase em que nem conseguia jogar ou navegar. Estava sempre a encravar. Tinha que fazer tudo no computador do meu irmão.
Ele também produzia?
Não, mas isso é engraçado. Ele instalou um programa e quando vi perguntei-me: “como é que ele sabe deste programa?”. A partir daí, comecei a instalar plugins. Até foi melhor porque tinha mais espaço. Depois, o computador acabou por se estragar, mudei de casa…
O programa era o FL Studio?
Sim, se não me engano o 8.
Começaste mesmo muito cedo. Estavas em que ano?
Exacto! Estava no quinto ano. Já tinha algum conhecimento musical antes de entrar na escola por causa do meu irmão e dos meus pais. Sempre houve música em casa. Agora, produção foi nessa altura. Conheci pessoas que ouviam outras músicas. Encontrei alguém que também já estava na produção. Foi aí a semente para entrar nesse mundo.
A Príncipe é a semente de tudo?
São várias as sementes, mas a base no que toca a afro, batida e kuduro vem da Príncipe, do Marfox, do Nigga Fox, e de outros que não faziam parte mas estavam envolvidos na cena. Isso tudo por causa do meu irmão. É por causa dele que faço parte do movimento.
Ele ia às festas?
O meu irmão ouvia e ia às festas do Boddhi Satva e do Mastiksoul. Quando voltava, perguntava-lhe como é que tinha sido. Os eventos, os cenários, os DJs…A música que ele ouvia nas festas tocava em casa.
Vais para França e desenvolves a tua técnica de produção. És descoberto pela Enchufada?
Sim, já tinha participado em compilaçōes com outros artistas mas a Enchufada foi um passo muito importante na minha carreira. Já ouvia o Buraka Som Sistema e o Branko era uma referência. Não tinha hipótese de não aceitar a proposta dele. Fiquei muito contente por ter participado nessa colectânea [Enchufada na Zona Vol. 2].
É aí que percebes que esta pode ser a tua vida?
Boa pergunta. Já pensava nisso desde o liceu. Quando acabei o 12º ano, perguntei-me se queria levar isto de forma profissional. Será que vai valer a pena? Ou será que fazer música é só um hobby quando não tenho nada para fazer? Meti na cabeça que não. Não é só um passatempo. Em 2019, recebi o meu diploma em restauração e decidi fazer isto mais a sério. Isto é mesmo o meu trabalho. Estou na Ilha Reunião por causa da música (sorri). Podia ter continuado os estudos mas a música foi uma forma de me expressar e de sair de ambientes complicados.
Estás em França desde 2014?
Sim, vou a Portugal tocar, trabalhar com outros artistas, ver a família e estar com amigos com quem cresci.
Em França, continuaste a ser português.
Sim, e também angolano. Nunca esqueci as minhas raízes. Apesar de ter nascido em Lisboa, toda a minha vida ouvi a cultura de Angola. A minha mãe punha a tocar música de Angola, do Congo e dos países francófonos. Da língua portuguesa, veio o hip-hop e em parte o fado. Fui descobrindo quem são os artistas portugueses.
A batida está vinculada a uma linguagem festiva mas o Melodias e Choros transmite outros estados de espírito como a nostalgia e a perseverança. É essa a intenção?
É uma jornada introspectiva. Estou sempre a dizer isto mas a música é uma terapia para os meus ouvidos, e pode ser para os de qualquer pessoa. O Melodias e Choros é uma conversa entre emoçōes sobre crescimento mental e espiritual. Tento abraçar diferentes contradiçōes. Sou uma pessoa que faz muitas perguntas sem resposta. Sempre adorei isso enquanto ouvia rap e até hoje isso marca-me. Por exemplo, o que é paz sem dor? Ou o que é uma guerra sem verdade? Expresso gratidão pelas viagens que tenho feito, pela música que me foi introduzida, pelo meu irmão, que tem sido a pessoa mais importante, apesar de sermos quatro.
As feridas a sarar? A luta da tua comunidade?
Exactamente. O mudar de país e ter deixado os meus amigos para trás. Em França, comecei a ter mais consciência da realidade. No final do dia, são poucos os que se vão lembrar de ti. São os teus verdadeiros amigos. O Melodias e Choros é sobre crescimento. Algumas músicas são para dançar e outras para reflectir. Acompanham um ciclo de vida. If you’re alone, let’s be lonely together.
Será um equilíbrio de forças entre corpo e mente? Um contraste entre noite e dia, ruído e silêncio?
Não tinha pensado nisso, mas faz todo o sentido. Uma nova fase de equilíbrio com novos caminhos. Vejo o Melodias e Choros como uma maratona, de continuar e puxar por mim, em vez de estar sempre a olhar para trás. Não gosto de estar sempre a provar coisas a mim mesmo. Já me deixei disso. Hoje sei quem sou. Aprendi muito com os erros e o projecto também é sobre isso. Não gosto muito de falar. Sou uma pessoa que pensa demasiado. Estou sempre à procura de soluçōes. O mais importante é não deixar nada por fazer. Posso levar o meu tempo mas, ao menos, que fique feito.
Choras no club?
(Gargalhada) Não, nunca chorei no club mas já chorei a ver o club a vibrar. Fico com o coração mesmo cheio por ver a reacção de som para som. São momentos bonitos que as pessoas também vão guardar. Não me tornei DJ só por amar a música mas também para ver as pessoas juntar-se em torno da música em clubes e festivais.
Há uma reciprocidade. A música conta a tua história com os outros.
É isso mesmo. Conta a minha história com os outros. Como estou a crescer, vou ter que deixar muita coisa para trás. Reflicto muito sobre o passado e tenho que deixar de ser assim. Não posso estar sempre a pensar no que fiz. Esta música é para partilhar, até mesmo na tristeza.
Habitualmente, vemos o DJ num ambiente de grande euforia colectiva mas há um trabalho invisível até chegar lá. O Mr. Lonely é sobre esse lado solitário do produtor?
Boa pergunta. Estou no hotel sozinho e ainda há poucas horas estava a trabalhar numa música. A criar um novo mundo dentro de outro mundo. O produtor sente-se sozinho, sim. Agora o DJ, é diferente. Antes dos eventos mais importantes, faço sempre uma oração para correr bem e ter os pés na terra. Com o público, sou só eu e o palco. Sou eu que tenho de os fazer dançar. É muito solitário. E a parte mais triste é quando acaba, e toda a gente vai para casa. Fico sozinho no backstage.
A energia do palco torna-se algo maior?
Muito maior. O melhor exemplo que posso dar é o do Sónar no ano passado. Quando entrei, já havia pessoas a gritar. Para mim, a energia das pessoas é muito importante e esse set foi um dos mais bonitos. Passei a música da batida para quem já escutava e quem não conhecia.
O +244 (indicativo de Angola) é contaminado pelo funk brasileiro. O cruzamento de ritmos deve-se a ser também um ritmo de rua usado por comunidades pobres para se libertarem das dificuldades?
Também foi por isso. Gosto muito de funk. Tem uma história enorme, que se relaciona com a de Angola. O +244 é um grito pela juventude de Angola e pela diáspora. Eu e a Martha Da'ro conectámo-nos por causa disso. Há mais artistas a fazer coisas diferentes aí fora. O importante é estarmos unidos. É interessante porque queria puxar ainda mais pelo lado percussivo, mas acabou por ficar uma versão mais natural. Tens a moamba e o funge. O funk é um tempero. Um piri-piri (ri-se).
Remisturaste a Mázia da Ana Moura.
(sorri) A Mázia, a Mázia…Tenho muito receio das coisas. A Mázia não podia ser brusca. A música é tão bonita que não lhe podia tocar dessa forma. Tinha que honrar a história. Foi assim que nos relacionámos quando estivemos juntos pela primeira vez em estúdio. Foi uma questão de respeito mútuo.
No início da conversa, falavas do conhecimento gradual do fado.
Exactamente, eu via os fadistas na televisão e o nome da Ana Moura estava sempre lá. Fui perceber quem era e desbloqueou-me a mente. Foi muito importante tê-la no projecto. Não só remisturei a Mázia como fizemos o Lento juntos. Fiquei muito contente.
O Lou Phelps tem trabalhado com o Kaytranada e é um dos teus convidados. É um sinal de que a tua música é, de facto, global?
Sim, é um sinal enorme de reconhecimento. Já queria trabalhar com ele há vários anos. Muita gente não sabe mas ele é irmão do Kaytranada. O Lou Phelps é uma referência naquele lado mais swag nos beats. Tem um papel muito importante no projecto. Representa uma celebração da auto-confiança. A ideia [da canção] é libertar a mente. Deixar o ar entrar e respirar primavera. Pode ser o vento de Carcavelos ou de Sesimbra. Abrir a janela.
A Youth Kriminal é sobre erros do passado?
É sobre a energia da juventude. O meu sobrinho faz agora 18 anos e eu já tenho 25. Se a minha geração já é o que é, a dele…Tenho que o fazer parar pensar. Aproveita mas tem calma contigo. Sou o mais novo de quatro irmãos e aprendi muito com o que eles fizeram, sem deixar de ser eu e de cometer os erros naturais da adolescência. A Youth Kriminal é sobre sair com amigos, ir para o club, vestir uma roupa, ter swag, curtir…Isso é bué fixe.
Das reacçōes que vais obtendo, em diferentes países e culturas, quem não vos conhece consegue entender a vossa história apenas com base no ritmo?
Essa pergunta é importante. Acho que um bom ouvinte pode não captar a história, mas pelo menos pode perceber a essência do artista. Para entender plenamente, talvez tenha que pesquisar. Quando ouço alguém, posso também não compreender a história mas vou à procura do catálogo, tento saber de onde vem e o que faz. Acho que muita gente ainda não conhece a minha história. E eu também a escondo (ri-se). Não sou pessoa de ir para as redes sociais publicá-la. Guardo as coisas. A música é a minha forma de me expressar. A música que faço leva-me a sítios onde nunca estive.
Este EP fecha uma trilogia. Porque não um álbum?
Porque um EP é uma coisa rápida. Posso estar uma semana a trabalhar e tenho um projecto. O álbum pode levar uma vida. Requer tempo, quando eu faço muita coisa à pressa. E paciência que é coisa que não tenho. Mas estou a preparar-me para isso. Já tenho mais ou menos na cabeça quem vai entrar, mas ainda vai levar algum tempo. Acho que ainda não é o momento. O Melodias e Choros é o ponto final de uma fase.