Nos critérios volumétricos do mainstreaming, A Garota Não fica aquém da matemática. Quando navega em números, é para congratular os 422 milhōes de euros de lucro da Galp. Quando podia ter capitalizado em recibos verdes o ano redondo do 25 de abril, optou por ser solitária resguardando-se das múltiplas solicitaçōes. Por tudo isto, e sobretudo por 2 de abril se ter imposto como clássico absoluto não-instantâneo de música autoral e transparente, com a pujança necessária para confrontar o desespero e sublimar o desencanto, sem cair no maniqueísmo dos jogos de sombras ou da entrega do combate a poderes interessados em contratá-lo para o desarmar, Ferry Gold era a viagem mais aguardada no calendário editorial de 2025.
Não houve segredos neste conto sem fadas. Apenas autenticidade e uma auto-verificação dos factos vividos e observados, que é território biográfico de muitos em zonas desfavorecidas e silenciadas como o bairro 2 de Abril em Setúbal - casa, quintal e rua até aos 26 anos. Da sua península, Cátia Mazari Oliveira arrancou um disco que é história de um país e marco de um tempo. E agora? Sem surpresa, já não nos apanha desprevenidos como há três anos quando num sábado igual aos outros aquelas cançōes de descrença sadia e esperança varrida nos apanharam de pijama e pantufas, e suspenderam as actividades até novos esclareciments. Depois de Zeca, José Mário e Sérgio, só B Fachada foi simultaneamente tão poeta e alquimista musical, mas A Garota fê-lo num contexto mais drástico de inimigos nebulosos, doenças infecciosas. e vírus contagiosos. O contexto é determinante no volume das campaínhas.
Três anos depois dessa luz impura ter nascido como clamor da madrugada, as cantigas de maio sucedem-se a 2 de abril. Abram portas e janelas porque estas cançōes são para ser vividas. Não se acomodam a plataformas, obrigam a vir para a rua. É canto da boca, da terra e do povo e se no episódio anterior, A Garota Não já era voz de coro - 2 de abril era homenagem à luta corajosa e à alegria de ser muito com pouca da sua comunidade - em Ferry Gold a subjectividade individual é absorvida por uma mancha colectiva multiplicada por medos, causas, determinaçōes e ímpetos. Como dizia Mário Cesariny no magistral A Pastelaria, “afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício e cair verticalmente no vício”.
À arte cabe fazer perguntas e transmitir anseios. 2 de abril foi um abalo por espumar bordados habilidosos a fitar a violência das ondas. Ferry Gold podia cair na tentação envenenada de se montar como um comício, mas as cançōes defendem o seu papel não-invertido. A política é a mira mas a arte é o engenho de um álbum encenado como um teatro musical com “textos terceiros”, personagens, segundas vozes, gravaçōes e poesia transmitida. Não é inocente o arranque com A casa de bernarda alba, musicada para a adaptação da peça de Federico Garcia Lorca pelo Teatro Animação de Setúbal, sobre o retrocesso civilizacional vivido pelas mulheres das aldeias espanholas.
Ferry Gold está repleto de lanças politizadas como a instantânea Este País Não É Para Mães, introduzida por um rap domesticado, a homónima Ferry Gold, interpolada pelo desabafo encolerado de Saramago em Privatize-se, o desabamento humano de Fronteiras Invisíveis (“mataram mais um rapaz”) ou o manifesto anti-tourada de Levante-se uma Escola (“que se mate a tradição se a tradição mata sem razão”), mas até quando solta um sonoro “quero é que te fodas meu amor” na pungente Não Inventes, aveluda o insulto. E dos hectares queimados faz um viveiro de plantas.
Ferry Gold traz outros amigos, também. A introdução sedada à Halloween em No Love. O jogo fonético de No Train a Ouvir Coltrane, entre o hip-hop de Sam The Kid e o canto da boca Sérgio Godinho, a sentinela omnipresente de José Afonso, e a graciosidade de Feist. Um disco com fragrância de palco, nota-se em pulsōes, improvisos, reviravoltas, repentes e inversōes de marcha atravessadas por um arco narrativo que respira o ar teimoso dos tempos, como canção sem final, Talvez pudesse ter guardado algumas trovas no bolso mas na fase do namoro tudo se perdoa. Até o excesso de entusiasmo.
É arte em estado de amante com a militância e filiação ideológica na entreajuda. Sozinhos e divididos perante inimigos opacos, somos náufragos em mediterrâneos de aparência e simulação. Estas cançōes não nos salvam da ruína moral com apólice mas têm seguro a favor de terceiros. Não há um Ela e um Nós. Estamos todos no mesmo ferry. O negócio da alma voltou como o prejuízo mais rentável de todos.
Não vou esconder que sou fã da Garota Não e que iria escutar este disco todavia. Mas o teu texto seduz qualquer orelha para que se disponha a guardar um tempo para ouvir este disco na íntegra. Ainda não o ouvi: vai ser como um bom romance ou livro de poesia, com calma, tempo e foco. Um abraço