Menos com Mau é mais. As deambulaçōes vocais de Zé Menos encontraram casa nos instrumentais sem nome nem morada de Pedro, O Mau, produtor-fantasma com assinatura em Colónia Calúnia e Alma Ata, além de uma marca de água própria.
Para o portuense, autor do singular do Chão no Parque, a disformidade do parceiro foi a oportunidade para soltar uma veia politizada, a meio da ponte entre o rap e a música de protesto. Não por acaso, os versos do desassossego abrem-se com Grândola Vila Morena e tentam tirar o peso das costas para os bolsos quando se sentam na cadeira do psiquiatra (“e sem alternativas vivo, rio, crio”). Se ninguém tivesse avisado, a terapia de Zé Menos e a excentricidade de Pedro, O Mau seriam uma só. Dois estrangeiros em busca de um país.
Como se juntaram?
Isto arrancou com um convite do Pedro no verão de 2020. Depois de lançar o Chão no Parque já tinha havido um props mútuo. A certa altura, o Pedro manifestou a vontade de trabalhar comigo. Fez-me uma proposta um bocado aberta mas tenho ideia que se falou logo de um EP. Ou talvez tenha dito isso para não ser demasiado ambicioso. Para ser muito honesto, na altura estava a tentar perceber como faria uma manutenção de perdas do que foi 2019/2020. Principalmente da pandemia. Ia começar a tocar o disco e rapidamente me apercebi que o tempo de promover o disco e ter oportunidades não seria reposto. Andava bastante seco do processo do disco. Ainda antes de o Pedro entrar em cena, também já tinha a expectativa de gravar um EP que acabou por ser mais lento do que pensava. Consequência da vida porque, durante uns tempos, deixou de ser prioridade. A proposta do Pedro foi bastante especial. Nunca senti grande vontade de colaborar, e não é por ter anti-corpos. Quando estou a acabar uma música, raramente penso numa voz que não a minha. Não é a ordem dos meus pensamentos. O que eu penso sempre é: “o que é que falta a esta música que ainda não tenha feito e que a possa tornar rica?" Se calhar por isso é que tenho tendência a experimentar, quer na voz, quer na produção. O Pedro ofereceu-me uma “segunda casa” de sonoridade em que pudesse continuar a experimentar com a voz. Foi relaxante porque na altura estava muito tenso com o processo criativo, problema que aliás já vinha de trás. Estava muito rigído e cheio de tensão, com demasiada auto-exigência. A proposta pareceu-me fixe para fazer as pazes com o processo, focar-me na voz e na escrita, e tirar o peso da decisão sobre este projecto. Entretanto, a ideia ficou em águas de bacalhau. Passado uns tempos, quando me enviou os primeiros três beats houve um que adorei de morte: o da Arena. Lembro-me de ter pensado que era o tipo de beats que não faço mas adoraria fazer. Principalmente por também curtir cenas fora de forma. Não é uma sensação assim tão comum, pelo menos para mim. Fazes mais quatro ou cinco e temos um disco, e assim foi, embora não tenha ficado estanque na ideia daquele instrumental.
O processo foi à distância?
Sim, excepto numa fase final. Ele mandava-me os beats, uns com bastante estrutura, outros eram tipo loops. Fui escolhendo muito lentamente, porque isto foi tudo muito pouco prioritário tanto para ele, como para mim. Umas ficaram logo praticamente fechadas, outras mais penduradas porque era preciso atacar a produção outra vez. Já tínhamos cinco e no final do ano passado, depois de fechar o disco do Riça e o disco da Malva, dediquei-me a isto. Fui passar um fim de semana a casa do Pedro e estivemos a varrer as músicas todas. Foi a segunda volta da produção. Houve músicas que mudaram e cresceram bastante. Daí ainda apareceu a Contra a Minha Vontade. O texto já estava escrito há alguns meses nas minhas notas. Essa apareceu posteriormente mas o processo foi muito semelhante. Ele mandou-me um instrumental base, eu mandei-lhe a voz e ele fez bastante pós-produção com as vozes.
Como explicas que num processo de alívio de pesos sobre os ombos, o primeiro verso seja Grândola Vila Morena?
Esse alívio foi apenas para o meu processo criativo. Não nas ideias mas na tomada de decisōes como a escolha dos instrumentais. Naquela altura, estava “queimado” no processo. Não estava a ser saudável. No balanço do disco anterior, uma das coisas que quis trazer para a escrita foi o ser uma pessoa politizada. Sempre conversei sobre isso com os meus pais, falo de política com os amigos na mesa do café, sou assim como cidadão e isso não estava a transparecer. Não me apeteceria tornar isso em algo que não fosse orgânico mas fazia sentido que entrasse nos assuntos sobre os quais escrevo. E torná-lo poético - “bonito” de uma forma lata. A tensão está lá porque foram anos pesados e o processo foi muito a conta-gotas. A Arena foi a primeira [letra escrita] no rescaldo das Presidenciais de 2021 e depois as outras foram surgindo. O disco está pela ordem da escrita. A borratado e a quadrado azul, T Vermelho foram escritas no final de 2021, numa fase muito complicada em que me sentia deprimido e recuperava de coisas que nunca tinha resolvido muito bem nos anos anteriores. Isso está lá e essas músicas são pesadas mas por outro lado, e isso foi um reflexo da vida e da fase de recuperação por que estava a passar, fiz um esforço consciente de falar destas coisas, de assuntos mais pesados mas posso tentar apontar para cima. Daí o refrão “e sem alternativas vivo, rio, crio”.
Deixar um fio de esperança no fim.
Acho que sim. Em retrospectiva, acho mesmo que foi o reflexo de mudar o pensamento mais pessimista, muito catastrófico…
Tinha a palavra desalento escrita.
Pois. Mesmo a corpo que gira não soa muito alegre na minha cabeça - também não é uma preocupação - mas sou eu a dizer que quero ser mais leve e estou a esforçar-me. Só gostava de não me preocupar tanto com o corpo e com o peso dos movimentos sociais, mas não é uma música feliz.
Não tem de ser.
Não! E cansa-me um bocado essa dualidade de uma música ser feliz ou triste. Adoro escrever só para pensar. Há uma alergia da sociedades a cenas que não são para cima. (trauteia I’m so happy de Pharrell Williams)
Mesmo as questōes desconfortáveis estão a ser tratadas de forma suave.
Ya, completamente! Há um compromisso meio estranho de se falar de saúde mental, que é muito bom, mas continua a ser desconfortável falar de cenas pesadas.
Raramente se diz que a saúde financeira pode ser determinante na saúde mental. E quase sempre se observa como uma questão individual e não como um problema social.
Sim, é verdade. Mesmo as pessoas que conseguem pagar consultas regulares de psicoterapia, de duas em duas ou três em três semanas, preferiam pagar menos. O acesso está muito dificuldado.
O desconforto que manifestas parte de uma perspectiva individual e subjectiva mas dirige-se a um desassossego colectivo.
Fico contente que interpretes dessa forma porque tem sido uma das questōes em que mais penso nos últimos anos. Comecei a ficar alérgico a escrever na primeira pessoa. Algumas das coisas que tenho gostado mais de ouvir, ou na poesia, nem sequer partem de um discurso directo do “eu”. Mesmo não conseguindo quebrar essa ligação ao “eu”, tento explicá-las ou transmitir uma imagem que seja fidedigna. Quer na música, quer em conversas pessoais, acho que sou bom a dar imagens às coisas. Lembro-me desde puto de presenciar conversas entre pessoas, em que uma pessoa diz uma coisa e a outra interpreta mal e começa a falar por cima. Essa cena de ser o tradutor capaz de descodificar aquilo que as pessoas não conseguem dizer é uma questão de sensibilidade comunicativa. Acho que traz mais para aquilo que escrevo do que reparo.
A observação e o pensamento colectivo relacionam-se com o teres trabalhado com outra pessoa.
Sim, e que não é um processo fácil para mim mas é engraçado porque tenho uma visão muito relaxada do gosto musical. Na geração dos nosso pais, ou se era dos U2 ou dos Scorpions, tipo claque de uma banda só. Era tribal. Muita coisa desse tempo já se perdeu mas continua a haver uma espécie de insensibilidade entre pessoas mais novas e mais velhas para se gostar da música, sem ter de gostar da pessoa, ou o contrário. É nas zonas cinzentas que quase sempre está o sumo e eu tenho muito essa postura enquanto público. Tenho referências que, no limite, são discos que nem gosto assim tanto de ouvir. Foram discos ou artistas que, ao ouvir, me transmitiram certo tipo de ideias em que nunca tinha pensado. É mais a riqueza do raciocínio daquela pessoa do que ouvir aquela pessoa. Trabalhar com outros, ainda para mais com alguém como o Pedro que também tem uma visão artística muito vincada, só poderia acontecer por nos termos encontrado rapidamente e esteticamente. Ou os beats que ele me queria enviar faziam sentido, ou ficavam logo pelo caminho. Houve umas discussōes muito pequenas em casa dele. Uns pormenores que não desgostava mas eram mais desafiantes, ou fora de forma, mas que rapidamente percebi que eram uma assinatura. A expressão até é dele. “Isto é uma assinatura”. Não tenho que adorar tudo, é uma questão democrática. É o trabalho de outra pessoa e felizmente não somos uma banda, que poderia trazer outras questōes identitárias. Foi um encontro feliz, se não nem valia a pena.
Além da citação da Grândola Vila Morena, na Arena, há uma Canção de Embalar que também comunga do Zeca Afonso. No Diabos M’Elevem do Riça, já havia uma atracção muito forte pela música popular portuguesa, em particular pela cultura dos pauliteiros. Concordas que no quatro partos o hip-hop está no processo e não tanto no desfecho?
Tenho pensado bastante nisso. Está a reaparecer uma cultura hip-hop clássica, em que cresci, não necessariamente conservadora, boom-bap, mas é malta que gosta mesmo de rap e não das cenas híbridas em que tenho estado envolvido, a solo, com o Riça e com redoma. Isso deixa-me feliz, porque o pessoal se organiza e há público. Está-me a bater uma cena de diversidade difícil de calcular. Há um certo meio que nós partilhamos, ligado à imprensa cultural, podcasts, discursos e discussōes, mas há outras experiências a acontecer, com ferramentas linguísticas que eu partilho. Pode parecer que nos aproximamos - eu e pessoas dos grupos onde me incluo - mas na verdade preocupamo-nos com coisas muito diferentes, a nível dos discursos, e está tudo bem. Durante algum tempo, tentei perceber porque é que não encaixava em certo tipo de ambientes e circuitos. Porque é que ir tocar a uma certa festa, com um determinado cartaz, me parecia esquisito apesar de poder fazer sentido por uma questão musical. Os anos vão passando, as pessoas afunilam e há muito estes casos em que as pessoas pensam de formas muito diferentes. Sobre a música tradicional e de protesto, penso regularmente sobre isso apesar de ainda não ter chegado a uma conclusão. Eu gosto muito da obra do Zeca e acho que a questão política, com a qual até me identifico, é sobrevalorizada. Fala-se pouco do músico, da voz singular e do compositor. A obra dele é muito rica. Tem coisas experimentais e estranhas. Fala-se pouco dele enquanto referência musical devido à carga politizada. O Zé Mário também passa por isso, apesar haver malta, que com a distância, consegue aliviar esse peso e olhar para aquilo de outra forma, como o JP Simōes. Sempre me identifiquei muito com a linguagem deles, e do Sérgio [Godinho] também. Tens muitas cançōes dele que são ideias incríveis. Há uns tempos, conversava com a minha namorada sobre o refrão “hoje soube-me a pouco, hoje soube-me a pouco”. O ser tão banal e, ao mesmo tempo, ter tanta carga poética, para alguém que cresceu no rap em que se usam demasiadas palavras para tentar descrever o que podia ser descrito com menos palavras, sou louco por esse tipo de cenas!
Vês alguma razão para o desencontro entre essa música de protesto e o rap português?
Tenho alguma dificuldade em perceber. Temos o Xullaji, que é o maior…mas é difícil perceber. Acho que tem a ver com a própria cultura. No rap em que cresci, há pouco mais de dez anos, a forma já trazia o assunto e isso continua a acontecer. Os rappers continuam a dizer a mesma merda, e estou a generalizar. Isso foi o que sempre senti, e continuo a sentir, apesar de já não fazer parte. Sempre me incomodou que o rap fosse pouco espremido, pouco usado. Sempre senti pouca riqueza a nível de assuntos ou de riqueza poética. Em parte, a cultura já trazia temas-tipo como o grande clássico, que sempre me irritou, de músicas sobre rap ou sobre outros rappers. É um discurso tribal. Depois há malta como eu que nunca se sentiu parte, apesar de fazer parte, e que sempre teve mais facilidade em usar ferramentas de diferentes lados, e explorar zonas cinzentas entre linguagens. Também acho que o rap tem alguma dificuldade sem ser poético porque há uma necessidade de dizer muitas coisas. É cultural. Podemos pensar na Grândola Vila Morena. O Zeca diz muito pouca coisa mas aquilo tem muitas imagens. A letra é curta. Quando se diz muita coisa sobre um assunto, deixa de ser poético e passa a ser concreto. Perdes a ligação à metáfora rica e livre. Talvez seja mais fácil escrever coisas poderosas em formato canção com letras curtas, mas a questão é perceber qual a forma que compra melhor a ideia. Gosto de pensar nos melhores veículos para as ideias.
Ficaram com vontade de trabalhar mais vezes?
Acho que sim. Não fiz a pergunta ao Pedro mas penso que sim porque encontrámos uma parceria fixe que pode ter muita coisa para dar. Não será num futuro próximo porque estou a precisar de fazer um disco sozinho. Já tenho a ideia para um álbum que está na gaveta desde 2020. Agora até estou numa posição melhor para a executar. Estou mortinho por começar a fazer esse disco.
quatro partos é apresentado a 5 de julho no Maus Hábitos, no Porto, e a 12 de julho na Casa do Comum, em Lisboa.