A política é inseparável de Valete. MC militante, próximo da realidade de bairros sociais periféricos da Grande Lisboa e assumidamente posicionado na esquerda combativa, sempre fez do hip-hop trincheira de ideais.
Rimas como “Traz o teu povo vem combater/Aponta a arma não temos nada a perder/Já faltou mais pa podermos abater/O opressor”, de Serviço Público, ou “5 da matina/Já todos caminham pr'o o mesmo enredo/Porque nos subúrbios/O sol levanta sempre mais cedo/É um povo escravizado nesta sociedade de extremos/Trabalham 2 vezes mais e ganham 2 vezes menos”, de Subúrbios, são o nosso rap das armas.
Só que estas crónicas da luta pela sobrevivência foram escritas em 2006 quando as periferias eram menosprezadas pelo centro dos acontecimentos. Casos como os de Bruno Candé, Cláudia Simōes ou o mais recente de Odair Moniz trouxeram para as televisōes a violência dos filmes americanos, embora há muito se saiba da tensão entre comunidades e autoridades - não estávamos era habituados a vê-las. Importa perguntar: a representação mediática trouxe profundidade ao debate e esclarecimento colectivo? O que andamos a discutir? A pele ou o coração das desigualdades?
Em 2019, o vídeo de BFF criou um enorme alarido em torno de Valete devido às reacçōes de alguns movimentos feministas, de figuras como Sónia Tavares e sobretudo a jornalista Fernanda Câncio que o observaram como uma representação da violência sobre a mulher e não como encenação cinematográfica. Sem sofismas, Valete arrepende-se de ter objectado as reacçōes mas defende a peça visual.
Segunda-parte de uma grande entrevista ao rapper que já este mês terá um novo single. “Mais jazzy”, antecipa.
É possível dormir tranquilo quando se repetem casos como o do Odair Moniz?
Não. O Odair era um amigo. Alguém que conhecia muito bem. Um jovem de quarenta e tal anos. Era amado pela comunidade e adorado por todos. Não havia nenhum indício de perfil violento. Foi uma morte inesperada mas também a tradução do comportamento policial por estas zonas. Nesse aspecto, não surpreendeu. Ao longo dos últimos vinte/trinta anos, esta tem sido a actuação tradicional nas zonas aqui perto - eu sou da Damaia. Muitas vezes, não resulta em assassinatos mas gera agressōes físicas e verbais, e intimidação. É o comportamento tradicional da polícia portuguesa nestas zonas.
A visão que as pessoas destes bairros têm do Estado é a polícia.
Exactamente, é a única. O Estado está completamente ausente. Com muita pena minha. Houve uma altura em que interagi com partidos. Conheci muitas pessoas. Nos partidos em Portugal, existe uma competência incrível. Incrível. Alguns dos melhores advogados, cientistas políticos, arquitectos e sociólogos são militantes de partidos. Se tivéssemos essas pessoas mais perto das comunidades…Imagina uma sede do Bloco de Esquerda ou do PS na Cova da Moura. A diferença que faria com alguns destes gajos que são profissionais de excelência. Por vezes, os problemas nos bairros são tão simples quanto preencher o IRS. Desbloquear um problema nas Finanças. Abrir uma conta bancária. Conseguir uma melhor interacção com o SNS para que uma operação não seja daqui a cinco anos. Os partidos políticos têm recursos para ajudar as pessoas mas estão muito mais importados com a representação parlamentar do que com a representação comunitária que seria muito mais eficiente no dia a dia. O Estado só se faz representar na política.
Achas que isso ajuda a explicar que apesar da visibilidade de problemas como o racismo e a xenofobia, politicamente se esteja percorrer o caminho inverso e a esquerda tradicionalmente defensora destas causas esteja a perder para uma direita cada vez mais radicalizada?
As causas têm sido debatidas, na minha opinião de forma muito frágil e estéril. O debate sobre o racismo em Portugal está muito atrasado, se comparares com países como Inglaterra, EUA ou o Brasil. A maior parte dos portugueses tem urticária em ouvir conceitos como racismo institucional ou racismo sistémico. Nega a existência. A partir daí, não consegues fazer um debate. Não diria que as pessoas estão sensibilizadas. O que vejo na rua, no dia a dia, de Uber ou de táxi, é uma inclinação para uma coisa mais preconceituosa e xenófoba. “Foda-se, se houvesse um partido que mandasse estes gajos para a terra deles isto ficava bem melhor”.
Não te parece que há um problema de comunicação, ou seja que se debatem estes temas, sobretudo nas redes sociais, de forma superficial, e que ainda é incómodo lidar com o lado desconfortável?
Exactamente. Eu vivo na Damaia e há escolas aqui que têm 90% de negros. Isto é um apartheid! Há escolas na Linha de Sintra com 90% de negros. Os pais brancos daquelas zonas não pōe os filhos naquelas escolas porque têm muitos pretos! Portugal tem um apartheid escolar na Linha de Sintra e noutras zonas.
A segregação começa cedo.
Logo aí, e as pessoas não querem lidar com isso.
É um problema político.
É, claro. As pessoas que sentem urticária com o racismo institucional têm de saber destes fenómenos, mas eu não posso desresponsabilizar o pai que vive na Damaia e vai pôr o filho na escola ao Saldanha. Como se calhar tenho mais empatia, até consigo perceber porque para mim, o racismo não é uma escolha. O conceito de homem negro já está impregnado de racismo na sociedade. Ele é oferecido aos cidadãos e os cidadãos não podem escolher. As pessoas interiorizam o homem negro como uma pessoa incivilizada e violenta. Imagino que seja difícil para alguém como tu que, acredito, tenha outra elevação, vir aqui para a Damaia à noite e não sentir medo se vir quatro negros a vir na tua direcção. Foste bombardeado com aquilo que o cinema, a publicidade e os livros de história te mostraram. Tens razão, as pessoas não querem lidar com o desconforto da questão. Os americanos têm um conceito que se chama Affirmative Actions que tem a ver com sistemas de quotas. Não há vontade de falar sobre isso. O que acontece mais é um homem angolano, moçambicano ou guineense ligar para alugar uma casa, quem está a alugar, perceber o sotaque e dizer que já está alugada. É o pão nosso de cada dia, e o gajo que diz que não é racista é quem faz isso.
E se falarmos do elevador social, de acesso a oportunidades…
Esquece. Coisas tão simples como os próprios bancos terem muita dificuldade em aceitar empréstimos a negros e ciganos. Não tenho dados para o sustentar mas é da minha sensibilidade. Nestas zonas, as pessoas estão com muita dificuldade em conseguir empréstimos bancários.
Voltando a ti, cinco anos depois do BFF o tempo serenou a polémica? Deixou mais claro o papel assumido por ti de “realizador”? Chegaste a comparar-te ao Scorsese.
(pausa) A falha foi minha. Faço parte de um movimento contra-cultural. O hip-hop tem especificidades que só quem ouve há muito tempo conhece. O hip-hop tem um departamento de storytelling que dificilmente vais encontrar noutros géneros musicais. Posso contar-te uma história de comprar uma lata de atum num supermercado e isto ser storytelling. Dificilmente tens isto noutro género. É natural que quem ouça pouco rap não entenda. “Mas o que é que este gajo está a fazer?! Está a contar a história de um gajo que vê a mulher dele a trair e entra em casa com uma arma? O que é isto?!”. Nós temos esta coisa do rap cinematográfico. Quem não conhece, não entende. O meu pai morreu em 2016. Essa polémica foi em 2019. Ele era muito bom analista. Se estivesse vivo, diria: “desliga o telemóvel 48 horas e depois volta”. 80% cento do que aconteceu não teria acontecido.
Quando dizes que o erro foi teu, falas da canção (e do vídeo, fulcral para a encenação do teatro), ou com a bola de neve gerada pelas reacçōes?
Com a bola de neve. Faço a música e o vídeo, e tenho que ter sensibilidade que quem não cresceu a ouvir rap não entenda. Há muitas coisas no heavy metal que não entendo. E é natural porque não estou familiarizado. Não devia ter agido como se toda a gente tivesse de estar a par das idiossincrasias do nosso género. Devia ter sido mais empático. Explicar que em certos contextos, vestimos a pele de realizador. Estamos a fazer uma música cinematográfica.
Assumir o papel de narrador.
Exactamente. Ponto. As pessoas não sabiam nem tinham de saber mas é engraçado porque aquela história é verídica. Passou-se com um amigo meu que está preso. Narrei uma história que vivi muito de perto. A falha foi minha e depois houve um atrito com a Fernanda Câncio. Há coisas que fazem parte da minha luta, da minha missão, e não posso estar a desgastar-me num combate com a Fernanda Câncio. Ela nunca será minha inimiga. Isso não pode voltar a acontecer. Podemos ter divergências, que serão sempre superficiais, porque é uma mulher de esquerda. Não me posso confrontar publicamente com uma mulher de esquerda, que defende causas iguais às minhas. É um erro grave, e a esquerda comete esse erro muitas vezes.
Há coisas que fazem parte da minha luta, da minha missão, e não posso estar a desgastar-me num combate com a Fernanda Câncio. Ela nunca será minha inimiga. Isso não pode voltar a acontecer. Podemos ter divergências, que serão sempre superficiais, porque é uma mulher de esquerda. Não me posso confrontar publicamente com uma mulher de esquerda, que defende causas iguais às minhas. É um erro grave, e a esquerda comete esse erro muitas vezes.
Isso não se deve a uma cultura individualista em que os egos atomizam as causas?
Sem dúvida! Eu não sou mais importante que a causa. Não posso. O que é que a causa ganha com a exposição pública do combate entre o Valete e a Fernanda Câncio? Zero! Zero!! Foi uma falha minha. Não culpo a Fernanda Câncio porque ela não ouve hip-hop nem tem que entender. Eu apareço pouco e quando apareço estou a confrontar-me com a Fernanda Câncio. É um erro. Ela não é um alvo.
A tua música dobrou o cabo da juventude, e falo especificamente do Educação Visual (2002) e do Serviço Público (2006). Não ficou presa ao seu tempo e consegue comunicar com quem não viveu esse período. A percepção de alguém que consome esses álbuns em diferido é muito distinta de quem a viveu ou é precisamente o que defendias já naquela altura que faz a música resistir ao desgaste do tempo?
Sim, creio que são duas questōes. A actualidade da mensagem e a escassez daquele registo. Infelizmente, o hip-hop nacional tem uma estranha escassez de música militante com adesão popular, tendo em conta que somos uma comunidade emigrante gigante. Haverá algumas coisas, mas são muito underground. Portugal é um dos países mais pobres da Europa e esta questão da crise imobiliária está a sufocar as pessoas. É muito estranho as pessoas não aderirem à música militante. Mesmo no rap, há poucos álbuns históricos com esse registo. O Serviço Público também envelheceu bem por isso. Por isso é que há tantos jovens a aderir. Obviamente, é um álbum com momentos que precisavam de ser mais polidos. Era muito virgem e tinha muita informação de esquerda. Estava muito preocupado em debitar aquilo naquela altura. Se calhar o público não sente mas eu sinto. Não haveria melhor contexto do que o actual para aparecer um novo rapper de intervenção, bem posicionado e com um grande discurso.
Alguém como A Garota Não mas em rap.
Exactamente. E o sucesso d’A Garota Não também tem a ver com isso. Ela surgiu na hora certa. Estamos a viver um momento em que as pessoas estão muito alienadas e acredito que A Garota Não é um fenómeno do mundo alternativo. Não sei se vai fazer a transição para uma artista muito popular mas acho que, se acontecesse, poderíamos criar uma coisa muito bonita capaz de transformar socialmente. Tem que ser com artistas como ela.
O José Mário Branco, o José Afonso e o Sérgio Godinho são heróis para ela. Curiosamente, no rap há uma relação distante com a história da música portuguesa, ao contrário do que acontece, por exemplo, nos EUA ou no Brasil. Já os rappers afrodescendentes parecem ter menos vergonha de se relacionar com a memória de Angola ou Cabo Verde.
Tens toda a razão, mas não sei se sei falar bem sobre isso. Sou africano e a nossa relação com artistas anteriores a nós é mais pacífica mas não conheci rappers brancos da minha geração que gostassem muito de Zeca Afonso ou Zé Mário Branco. Não me lembro. Muitos vinham do rock e do punk.
Nos últimos anos, os teus momentos mais notados foram dois singles: o BFF e o Rap Consciente. Há dois anos, celebraste vinte anos de carreira com um Coliseu e o mini-álbum Aperitivo. Este mês, vais ter um novo single. Muita gente pergunta por um novo álbum. Isso não acontece há muito tempo porque escolheste comunicar de outra forma nos últimos anos, através de singles, ou porque não tinhas um grupo de cançōes que pudesses agrupar dessa forma?
Sempre quis fazer um álbum só que, Davide, disse no início da conversa que sou a representação do artista português. Eu sou O artista português. Como 90% dos meus rendimentos não vem da música também não consigo dedicar esse tempo à música. Qual é o problema para um gajo como eu? Sou um letrista, um dos últimos do rap português. Um disco de Valete é coisa para levar dois/três anos trancado no estúdio só a escrever e produzir. Vou-te dar o exemplo do Kendrick Lamar e do Nas, gajos que são letristas. O Kendrick lança um disco, está dois anos em digressão, e com os rendimentos da digressão e de outras fontes de receita, pára um ano só para se dedicar ao disco. Eu não consigo gerar dinheiro suficiente na estrada para parar dois ou três anos. Tenho de fazer cançōes enquanto faço outras coisas. O que devia durar dois ou três anos dura seis, sete ou oito. Esse é o meu problema. Entretanto, consegui condiçōes especiais para fazer o disco. Está a acontecer algo muito especial que quero aproveitar: vou fazer um disco jazzy. Está a aparecer uma leva de jovens negros instrumentistas de jazz. Filhos de emigrantes e brancos que cresceram a ouvir hip-hop. Não sou um super-conhecedor de jazz, nem nada que se pareça, mas estou no meio e gosto de saber o que se passa. O jazz português estava muito afastado dos negros. Agora não, e quero aproveitar esse momento. Tenho muitos jovens negros a tocar no meu disco. Para mim, é um momento novo do jazz português.
Uma réplica do que aconteceu no To Pimp a Butterfly, do Kendrick Lamar, do que acontece em Londres e não só.
Exactamente. Está a acontecer em Portugal, também, e espero que possamos ver marcas disso. Estes miúdos têm que fazer discos. Precisam de apoios. Vou tentar ajudar nesse processo com as minhas novas cançōes.
O single que chega em janeiro já tem essa roupagem?
Já. Não é jazz, é hip-hop jazzy. Podes pensar no To Pimp a Butterfly e nos A Tribe Called Quest, com a minha marca, com a marca da africanidade.
Não dás muitos concertos. No último verão, estiveste no Bons Sons. É o tipo de festival que te faz querer aproximar de outros públicos?
Sem qualquer dúvida, e até vai fazer mais sentido com o que apresentar daqui para a frente. A minha música vai ter outro valor. Quero chegar a outros públicos, mais adultos. Sou um rapper, letrista, que posso ter pecado por alguma insuficiência musical em alguns momentos. Vou fazer tudo para evitar que se repita. Estou com muita ajuda de alguns dos melhores músicos e produtores. Recursos humanos tenho. Se falhar, a culpa é minha. Não há desculpa.