Cinco anos depois de 100% Carisma, o melhor álbum roque de guitarras em português do pós-pandemia, Rodrigo Vaiapraia continua cheio de dúvidas mas o tempo consolidou algumas certezas, como a de viver a arte como um gesto de enaltecimento da beleza e não só como uma bala disparada sobre a multidão.
O novo e fulgurante Alegria Terminal (ed. Maternidade) respira o ar do fim dos tempos sem cessar a respiração. Os ângulos persistem em viver da observação pessoal, como a experiência bilingue de Way Way, a auto-determinação de Eu Quero Eu Vou, o desamor de Kolmi, e a frustração de Ar Com Ar, mas insurgem-se outras camadas como os jogos fonéticos de palavras - eco da concordância português-inglês -, uma cólera embrulhada em metáforas implícitas sobre um galope punk incontido de humor e êxtase. Para não ignorarmos a violência, nem esquecermos a beleza.
Alegria Terminal tem festa de apresentação marcada para 24 de junho em Londres, no The George Tavern e para 24 de julho, em Lisboa, nas Noites de Verão Filho Único. Entretanto, passa ainda este mês no Rock In Ria em Aveiro (a 29), no Texas Bar em Leiria (a 30) e no Festival Impulso, Caldas da Rainha (a 31).
O ponto de partida para o Alegria Terminal foi a ligação entre Portugal e Londres?
Acho que é mais um sentido de continuidade. Há ideias, palavras e versos em que já estava a trabalhar antes do 100% Carisma. Sim, há uma mudança na minha vida mas já faço música há bastantes anos. [O Alegria Terminal] vem de um desencanto, não necessariamente com a música, mas com o estado das coisas e a dificuldade de organização e resistência de alguns movimentos, de escala local e maior - o não conseguirem dar resposta. Também vem de eu querer definir os meus parâmetros ao fazer música. O estar mais velho, querer continuar a fazer isto e questionar quais são as minhas intençōes. Dei por mim aborrecido comigo mesmo, a pensar se era só isto que tinha para dizer. Nos últimos anos, experimentei várias coisas, desde música experimental a jazz, só para perceber que queria continuar a fazer o que estou a fazer. Claro que ter-me mudado para Glasgow e depois para Londres…aconteceram várias coisas na minha vida mas estou a tentar falar pouco sobre isso e mais da forma como se reflecte na música. Acho que as cançōes falam por si só.
Ainda há uma ideia generalizada de que Portugal tem um atraso cultural para o exterior. Movimentos como o queer estão mais avançados aí?
Não acho que estejam mais avançados. Estão é em pontos diferentes. É como a diferença entre estarmos a conversar há cinco minutos ou há doze horas. O ponto de contacto é diferente, mas no que toca aos problemas institucionais, ao governo e às políticas, estamos numa regressão. É um problema no mundo ocidental em geral.
Facilmente há brechas, geram-se fricçōes interpessoais que fazem com que as pessoas se incompatibilizem, e isso está a acontecer em todo o lado. Acho que há uma questão geracional de falta de técnicas de fazer uma justiça transformativa. Precisamos de um diálogo.
Não defendo que os problemas sejam ignorados mas perde-se força quando há falta de compaixão e reinserção. Sinto só que aqui há mais pessoas, fluxos e sítios. Acontecem mais coisas. Como há mais diversidade de pessoas, isso reflecte-se na música. Há mais música e subgéneros.
Por outro lado, como há muitas, muitas bandas, há uma grande saturação. Só agora é que em Portugal começa a haver tanta oferta. As condiçōes materiais, os cachês e as garantias são muito piores que em Portugal. Se um bar não consegue uma banda, tem quatro disponíveis. Em Portugal, uma banda com dois anos já dá coisas por adquiridas que aqui não há. É muito mais duro.
A incapacidade de as pessoas se organizarem não se deve ao crescimento do individualismo, impulsionado pelo neoliberalismo, e ao desmantelamento de movimentos colectivos, a começar pelo sindical que é estrutural?
Sim, sem dúvida. A maneira como o trabalho está feito leva-te a pensar em ti como indivíduo, casal ou família, e não enquanto parte de uma coisa maior. Recebes mal, dormes mal e a culpa é imputada à pessoa que está a trabalhar ao teu lado, em vez de haver uma articulação entre as pessoas que estão a trabalhar na linha da frente perante quem tem o luxo de não trabalhar de todo e ficar com tudo.
Fui ver um filme brasileiro [Onda Nova], feito na ditadura militar, e o realizador esteve presente na sessão. A história é sobre uma equipa de futebol feminino em São Paulo com montes de cenas lésbicas. O realizador contou que o filme não foi censurado na altura porque a pessoa responsável pela censura era um bocado burra e a equipa conseguiu enganá-la. Se tivesse saído uns meses mais tarde, não teria passado porque a nova pessoa da censura fazia bem o seu trabalho.
Ele dizia que estava numa posição melhor que as pessoas de agora porque as forças contra as quais se luta agora não têm cara. São invisíveis. Não sabes quem rejeita o financiamento do teu filme. É tudo inacessível. Há micro-agressōes que não sabemos de onde vêm. E o problema é que as pessoas já estão tão habituadas ao horror, tanto na nossa rua como em várias partes do mundo, que já normalizaram a violência.
É a banalização do mal.
Exactamente, a barbárie.
Curiosamente, o Alegria Terminal respira o ar dos tempos mas não soa a álbum de protesto.
Acho que está mais implícito do que explícito. Estou a tentar oferecer outros cenários e outras histórias, sem medo de um sentido de entretenimento dentro da música. Convidar as pessoas a reagir sensorialmente. Pensei em termos de textura.
Aquilo que perguntaste sobre Portugal e Inglaterra não tem tanto a ver com geografia mas mais com língua e linguagem. O desafio foi pensar como é que vamos tocar nestes bares, cantar em português e as pessoas não perceberem nada. O disco acabou por ter uma dimensão bilingue por causa disso. Os mexicanos usam isso nos EUA. O espanhol e o inglês coexistem nas vidas delas. Em casa e no trabalho, estão constantemente a mudar. No meu subconsciente, essa alternância também pesou. Mistura-se e confunde-se.
Interessou-me o jogo formal de palavras, mas há várias cançōes que tocam em temas políticos. Vem-me à cabeça a Ulucrudador, que fala de negócios que estão a lucrar connosco. Há uma noção desse cansaço.
Estar em Londres mudou o teu processo de fazer música?
Não faço música nem para portugueses, nem para ingleses. Faço para quem se identifica. Estar aqui trouxe-me confiança enquanto músico. Em Portugal, ganhei confiança enquanto letrista, performer e palhacinho de palco, mas aqui as pessoas elogiam, por exemplo, as linhas de baixo. Como não entendem a letra, prestam atenção à música. Isso fez-me perceber que a música não precisa de tradução. Por exemplo, ouço música em japonês e em árabe.
A palavra como parte do som?
Exactamente, e como instrumento rítmico. Há uma ou outra canção neste disco em que rimo português com inglês para mostrar essa proximidade.
A Way Way foi escolhida para abrir o álbum por essa razão?
Sim. Nós já fomos para estúdio com o alinhamento já escolhido. Faz todo o sentido essa ser a primeira canção porque fala sobre essa crise de 1) porque é que estou a fazer música e 2) como é que a vou articular. Na letra, falo de estar no autocarro a ouvir falar em português e isso, literalmente, aconteceu. É normal em Londres. Há muitos portugueses aqui.
A cena da Way Way é sacudir os ombros e o pó. Só estou a fazer música pela música. É um fim em si, porque a retórica da cantiga é uma arma tem um peso enorme. Se a cantiga é uma arma, é um dano colateral positivo. A canção não é uma arma nem tem de ser. A canção tem um valor intrínseco e qualquer coisa inserida na sociedade vai ter um peso social, mas a meu ver é um efeito secundário.
Enquanto cidadão, tenho mais deveres do que enquanto artista. Enquanto cidadãos, temos de ser mais activos como agentes de mudança e acho que enquanto artistas temos de ser mais livres. A arte é o nosso mundo de fantasia e sonho.
Mudaste-te depois do Brexit?
Sim, já tinha acontecido, mas na última ainda consegui um visto que me permite estar aqui.
Faz parte do teu desencanto actual?
Encontro tanto desencanto em Portugal como aqui. Acho que faz parte da idade. Não sou assim tão velho mas sinto que cheguei ao final dos vintes a tentar perceber o impacto do que queremos fazer.
Muitas vezes, as pessoas pōe um peso desnecessário nos músicos e artistas enquanto agentes de mudança, quando a responsabilização devia ser nelas próprias e nos movimentos em que se organizam. Quem está no palco ou a criar uma obra tem que ser porta-voz, ser moralmente impecável e representar [colectivamente] quando isso não vai mudar de nada. É apenas uma questão de culto da personalidade. As grandes mudanças acontecem nos “bastidores” com pessoas que estão a trabalhar de raiz. Não conhecemos a cara dessas pessoas, estão a trabalhar. Não chamam a atenção para elas.
O desencanto também tem a ver com experienciar coisas e passar por momentos de crise em que não sei o que estou a escrever e a cantar, mas esses momentos só confirmam o meu compromisso com isto. Quando se faz muito anos a mesma coisa, o teu critério aumenta. É um desafio porque retira aquela beleza de estar a fazer uma coisa espontaneamente, sem pensar nas consequências. Saem coisas incríveis nos primeiros concertos e álbuns.
Demorei tanto tempo a fazer este álbum, não só por questōes materiais mas porque tinha várias ideias e reuni só com aquelas que sobreviveram ao fim de tanto tempo. Foi a primeira vez que fiz um disco tipo puzzle. Como se fosse um casting. Nos outros discos, era tipo: ‘Ok, isto representa esta experiência. Esta canção fala disto”. Desta vez, foi mais premeditado.
Há uma linha satírica a atravessar o Alegria Terminal. Não perdermos o humor e a capacidade de nos rirmos de nós mesmos é uma forma de exprimir humanidade em tempos sombrios?
Concordo plenamente, e acrescentava-lhe o sentimento de culpa por estarmos a viver algo bom ou termos comida na mesa. Esse desespero não vai mudar o mundo. Não ajuda em nada, embora possa ser uma reacção legítima. Também há dias em que me sinto assim, mas não nos esquecermos da beleza é uma aprendizagem. É aquilo que na psicologia se chama de dissociar. Pode ser um mecanismo no sentido de te dar uma jangada para chegar ao outro dia.
Neste disco, ouvi coisas da minha adolescência como a Kimya Dawson, dos Moldy Peaches. Ela deu um concerto cá e foi comovente. Como tem problemas de mobilidade, entra no palco de andarilho. O público dela é pessoal da altura, entre os 40 e os 60, e uma camada nova entre os 12 e os 16, porque ela ficou viral no TikTok. É pessoal muito sweet e uma cena muito inclusiva. Há uma letra em que ela diz I got good at feeling bad, and that's why I'm still here, e essa ideia é muito próxima de mim. Entre os discos, faço EPs em casa com músicas que quero que saiam logo e que me trazem paz, em contraste com as que demoram e que guardo para o disco.
Este disco é muito menos produzido do que o 100% Carisma. Não tem colaboraçōes, não tem milhōes de pessoas a fazer coros, nem milhōes de overdubs de guitarra. Só alguns. Enquanto ouvinte, volto sempre à música pop dos anos 60 que é ultra-produzida, muita contagiada pelo wall of sound do Phil Spector. No último disco, isso até estava presente. Não tinha condiçōes para fazer acontecer isso mas fui à procura dessa grandiosidade. Neste, foi o oposto. Despir o som, e em vez de fabricar algo tipo um musical Fantasia 2000, a gravação documenta um momento.
Se fosse [um documento] audiovisual, o outro disco era uma novela e este um documentário. Se bem que o guião não é verídico. O que quero dizer é que não é um disco lo-fi, nem ultraproduzido. Tenta ser o mais natural possível.
Tens uma banda formada só por mulheres (Ana Farinha na bateria, Chica na guitarra e April Marmara no baixo). Ainda é uma afirmação?
Não, são só pessoas com quem gosto de tocar. No disco anterior, quem tocava baixo era um homem. Penso num disco enquanto concepção colectiva. Há a pessoa que grava, a pessoa que mistura, a pessoa que faz a capa, e tens pessoas de todos os géneros. Mulheres, não-binárias…
Cresci a dar-me com raparigas e sempre foi mais fácil abordar determinadas questōes com elas. Não toco com músicos de sessão, toco com amigos. A Ana já está comigo desde 2018, a Chica e a Bia desde 2019/20. Recentemente, dei um concerto com o Fred dos 800 Gondomar, porque a Chica não podia, e funcionou muito bem. Não tenho qualquer problema com isso. Já não é assunto. Estranho era se a banda fosse só de homens. Este grupo funciona bastante bem porque somos todos diferentes, de forma complementar. O importante é que sejam pessoas capazes de tocar alto e com quem se possa ter uma conversa.