Quando Sacrificial Code pousou em 2019, Malone estava a terminar uma tese de mestrado em composição electroacústica no The Royal College of Music, em Estocolmo. Tinha passado os anos anteriores a estudar a forma como som e espaço interagem, tanto no academismo teórico, como na prática ao integrar-se nos subterfúgios musicais da Suécia.
A experiência de horas incontáveis na aprendizagem da afinação de um orgão com o mestre Jan Börjeson, ajudou-a a aperfeiçoar o exercício de escuta e, em particular, a abordar o orgão como expressão musical religiosa dentro de uma igreja. A apreensão de conhecimento técnico metamorfoseou a relação com o instrumento, tornando-o parte do processo criativo.
A liturgia clara e límpida projecta a fé para um infinito inominável. As variaçōes lentas incutem uma dualidade sensorial de defesa e ataque, auto-controlo e libertação, intimidade e grandeza. A repetição é a força magnética que molda o espaço e estabiliza o tempo. A técnica de Sacrificial Code é metódica, rigorosa e concentrada mas, ainda assim, sujeita à subjectividade individual. Há seis anos, a imaterialidade tinha uma representação estética singular, fundamental para a sua dinâmica itinerante, de boca em boca, ou em espaços de profunda conversão, como a Igreja de St. George, em Lisboa, onde apresentou um set electrónico.
Em 2025 esta forma de dilatação, de reincidência paciente que proporciona hinos ou lamentos, de acordo com sua ressonância harmónica ou duração da peça, sujeita-se a motivos renovados. A interrupção da vertigem, o esforço da concentração, a recusa da violência e a reposição da paz. No álbum da afirmação enquanto compositora, agora reforçado por um novo arranjo da peça titular, gravado em 2023 num orgão do Séc. XVI no Konstmuseum, em Malmö, na Suécia, prevaleceu a investigação de “expressões harmónicas apagadas da nossa narrativa musical desde a standardização do temperamento igual no século XVIII”.
Para Kali Malone, a história era a primeira graduação do futuro. The Sacrificial Code ressurge, conserva as suas propriedades mas sente-se rejuvenescido neste novo contexto de tensão entre gravidade dolorosa e consciência de cura. O imaterialismo sonoro é a troca sem requisitar moeda.
Kali Malone estará no Centro Cultural de Belém a 23 de maio, embora para apresentar o álbum Does Spring Hide Its Joy, de 2023, com a violoncelista Lucy Railton, o guitarrista e marido Stephen O’Malley, e as projecçōes de Nika Milano
Álbuns da Semana
Macie Stewart - When The Distance Is Blue
O regresso deliberado de Macie Stewart ao piano não se resume às teclas. Em When The Distance Is Blue, o piano tanto é preparado como serve de folha em branco para arranjos de cordas, como ainda dialoga com recolhas de campo. Em todos os feitios, há uma clareza de pensamento traduzida em atmosferas serenas que induzem uma nostalgia transcendente da memória. Acompanhada por Lia Kohl, Whitney Johnson e Zach Moore, a pianista que já tocou com gente tão distinta como Makaya McCraven, Japanese Breakfast, Jeff Tweed, Alabaster DePlume, Mannequin Pussy e SZA, desenha uma aura espectral e magnética, que se dissolve na Disintegration final.
Puçanga - Ao vivo em Penude de Baixo
O adufe é a nova empatia. É bem intencionado mas já aborrece, excepto se o formigueiro nascer debaixo dos pés, como é o caso desta gravação de Puçanga no Zigurfest, no verão de 2023. Um mergulho total e imersivo na tradição e folclore de Penude, que em primeiro lugar exigiu trabalho de casa. Ao longo de duas semanas, pesquisou e escutou para chegar a conclusōes pessoais sobre as histórias, cantigas e melodias da povoação, com o apoio de um grupo de músicos locais e do Rancho Folclórico de Penude. A grande virtude da assinatura de Puçanga está em não pôr barreiras entre folclore e modernidade electrónica, e também em não deixar que as ferramentas digitais desvirtuem o calor humano do momento. De olhos fechados, somos transportados para o festival de Lamego. Sujidade, ruído e respiraçōes são preservados na gravação com uma fidelidade inquestionável. E quando o texto de apresentação conta que o final "foi acompanhado pela dança das fitas, uma dança milenar pagã que foi sendo preservada pela tradição folclórica", não há como duvidar da verosimilhança. O exercício reconstrutivo é exemplar na transmissão geracional e tecnológica do canto de um povo, mas só é possível devido à preservação dos elementos humanos.
HHY & The Kampala Unit - Turbo Meltdown
Turbo Meltdown destila palco, transmissão de energia, choque eléctrico e confronto de dogmas. Rave afrofuturista desnaturada, metamorfoseia ritmos de tradição digital como o UK Funk, o gqom o kwaito em banquete tribal servido pelo feiticeiro Jonathan Uliel Saldanha e pela cantora e trompetista Florence Nandawula - os metais criam uma atmosfera aterrorizante. Nada em Turbo Meltdown repete as rotinas do pan-africanismo, académico ou físico. A adrenalina visceral remetem-no para uma mutação dos genes dos próprios pares que tanto pode guiar a um tumulto anarca como a uma grande farra debaixo de pingos grossos. O apocalipse é aqui e agora, e nunca nos sentimos tão vivos.
Arvo Pärt - Silentium
Silentium centra-se o segundo movimento do concerto mais famoso de Pärt, Tabula Rasa, interpretada pela orquestra de câmara A Far Cry, de Boston. A metade da velocidade, a peça é arrepiante. O álbum soma interpretaçōes belíssimas de alguma da música mais espantosa do compositor. Transe sem acordar os vizinhos.
João Pais Filipe - Teocalli
É provável que o registo sonoro da peça única de João Pais Filipe não revele todas as virtudes apresentadas em fevereiro do ano passado no Cinema Batalha, no Porto, numa performance que acompanhou a exibição do filme Teocalli e que integrou um programa mais extenso em torno da obra do Colectivo Los Ingrávidos, mas ainda assim é de uma potência ascética e de uma vertigem espiritual que desbloqueia barreiras sensoriais sem extravasar o rigor e respeito que um filme atravessado por "elementos geológicos, naturais, cósmicos, humanos" exige. Uma bomba sensorial.
Guilherme Granado Goat Unity - Ghost Parades
Paulista de cédula, Guilherme Granado transfigura o tropicalismo com uma excentricidade incomum. Em vez de colher da sementeira tradicional fundada no modernismo popular, bebe de outras fontes alcalinas para servir uma poção mágica de origens minerais e gasosas. Há vestígios de dub, ritos ancestrais e misticismos orgânicos mas é inútil querer nomear uma trip marada quando não há um ponto referencial de partida ou uma chegada prevista. Apenas queda livre.
Garoa - Voa
Mais uma para a mesa da Discrepant, neste caso selada pela Sucata Tapes. Radicados em Lisboa, Raphael Soares (bateria, percussão) e Henrique Dias (piano, sintetizador, guitarra e percussão) não disfarçam a afrociberdelia brasileira. E isso traduz-se em texturas amazónicas e ventos nordestinos, com um apuro exótico fluído e cuidado que não deixa Voa bater as asas em direcção a um montra de souvenirs.
Arvo Pärt - fiquei a conhecer numa das trilhas da banda sonora de “A Grande Beleza”. Só Jan Garbarek com “Visible World” tinha-me cativado de igual maneira.