Pode o velho chavão do segredo bem guardado manter-se dentro de prazo de validade quando a informação está à distância de um toque? Importa desconstruir a tese conveniente de que se escolhe o que se ouve quando o verificado é cada vez mais o oposto. A tirania do império algorítmico deixa pouco espaço a quem não encaixa na verticalidade e até por isso a importância de alguém como Chuquimamani-Condori, anteriormente apresentada como Elysia Crampton, adquire uma dimensão de ruptura com os padrōes ditatoriais. Mesmo os de contraculturalidade confortável como têm vindo a proliferar - um paradoxo.
Aterrado no final de 2023, DJ E pousa em terra de ninguém mas o mesmo não se pode dizer das coordenadas geográficas que o norteiam. Em 2019, Quirquincho Medicine introduziu o nome nativo Chuquimamani-Condori após uma estadia na Bolívia para cuidar da avó. Tratou-se de uma escolha política, robustecida no álbum a apresentar esta quinta-feira, dia 20, no B.Leza. Declaração de independência física e identitária, DJ E é uma trituradora de música fractal, hiperbolizada a partir de estilhaços do legado colonialista espanhol, dos crimes de guerra na América Latina e da tradição andina enquanto património cultural, sufocada pela geoestratégia ocidental.
Chuquimamani-Condori é uma refugiada da normatividade e DJ E um exílio mas também um recreio. Porque apesar de defender a cultura trans com todas as dores de aceitação e débito de reciprocidade, celebra-se a fisicalidade e a potência unificadora de ritmos como a cumbia, o huayno e o caporal. E quando a cilindragem termina em Until I Find You Again, há violinos e acordeōes nas camadas anárquicas transversais a DJ E a sugerir festança e luz.
No topo da anarquia e da ebulição, ressonantes da desorientação pessoal, e da precariedade assumida na cacofonia, há uma celebração catártica da vida. Próxima estação: esperança.
DJ E foi editado no final do ano passado e é apresentado esta quinta-feira no B.Leza com concertos de Tomé, Diana XL e Herlander a anteceder
Álbuns da Semana
This Is Lorelei - Box For Buddy, Box For Star
Box For Buddy, Box For Star parece uma banda diferente de canção em canção. Da caixa de ritmos pop de Perfect Hand para os Magnetic Fields desgovernados de I'm All Fucked Up para a hiperpop tamanho M de Dancing In The Club ou a balada barroca My Boy Limbo, o passageiro muda de carruagem de estação em estação. E no entanto, no centro gravitacional de Nate Amos há um fio condutor de pop e incerteza. Anexo de várias assoalhadas e bem equipado, os This Is Lorelei só ajudam a realçar os Water From Your Eyes como uma das bandas a seguir até à porta do prédio.
The Decemberists - As It Ever Was, So It Will Be Again
Estupendo regresso dos Decemberists, seis anos depois de I'll Be Your Girl. Beach Boys, guitarras picada, algum melodrama e opulência teatral devolvem a Colin Meloy a arte dos grandes feitos a partir das pequenas coisas. E para o grande final, a opus de 19 minutos Joan In The Garden.
Zsela - Big For You
Em entrevista à Fader, Zsela fala em dualidades. E, acrescento, irregularidades. Nada em Big For You é literal. Nem seria suposto vindo de alguém que se dá com o produtor Daniel Aged (Frank Ocean, Rosalía, FKA Twigs, Kelela) como com Gabe Wax (The War On Drugs, Soccer Mommy), como grava com Marc Ribot, Nick Hakim, Casey MQ e Jasper Marsalis. Big For You só podia ser híbrido e exploratório, apesar da educação de Zsela pelos manuais do r&b. Uma bela surpresa vinda de terra de ninguém.
Sam Morton - Daffodils & Dirt
Os papéis de decidir e criar podem conflituar entre si mas no caso de Richard Russell, a liderança da XL, talvez a mais importante independente inglesa dos últimos trinta anos, é alimentada por uma visão artística e não apenas estratégica. Enquanto editor, Russell tem sido exímio a ler os próximos futuros e a trazer o que borbulha nas marginalidades - dos Prodigy a Dizzee Rascal, Burial ou XX. Enquanto inventor da sua obra, junta-se à conceituada actriz Samantha Morton e juntos assinam um disco proprietário de algumas das dualidades da XL: o humano e o digital, o acústico e o electrónico, o experimental e o vagamente familiar. Daffodils & Dirt não é disco para ficar para a história mas está bem apetrechado de pequenas histórias em voz baixa como The Shadow, Greenstone e sobretudo Let's Walk In The Night.
µ-Ziq - Grush
µ-Ziq é uma pequena loja de discos se comparado com a grande cadeia silenciosa chamada Aphex Twin. E no entanto, a importância do mentor da PlanetMu é irrecusável. Um álbum como Grush não surpreende pela mestria mas a pujança e inspiração são magnéticas. Reprodução de um ambiente quente de estúdio, vive de dinâmicas e quebras, selando clássicos que nunca o serão. O fervor de um novato, o traquejo de um sábio e a personalidade de uma referência.
NxWorries - Why Lawd?
Dois amigos encontram-se no átrio do hotel, no caminho para a piscina. Estão de bermudas e chinelos de praia mas hesitam. O sol não brilha como no sul. Corre uma brisa fresca. Está-se bem na esplanada a beber um café de especialidade com notas de maçã verde. Ainda não é dia de piscina.
Carlos Niño & Friends - Placenta
Placenta flui num grande rio de liberdade chamado vida. Animado pelo nascimento do segundo filho, o quarto episódio da cumplicidade entre Carlos Niño e amigos é um dia a clarear cheio de esperança. Todas as hipóteses estão em aberto. Não há limites estilísticos ou instrumentais. Talvez seja isso o jazz.
Royal Trux - Twin Infinitives (reedição)
Neil "Michael" Hagerty e Jennifer Herrera bebem da poção mágica de Captain Beefheart e adivinham o futuro de algum rock alucinogénico dos anos 90 (Flaming Lips, a linhagem Elephant Six e mais tarde Ariel Pink). O som é caótico e intencionalmente audível mas espantosamente saímos vivos desta espiral de ruído e lasca.
BEEINGS - There Is a Garden
O cunho de supergrupo é para os anafados. Quando se sobe ao nível de Steve Gunn ou Jim White, o que importa é a exploração sónica. A colisão frontal de personalidades é canalizada para uma massa fluída e orgânica com a pulsão eléctrica do rock, a liberdade do jazz e marcas de vanguardas clássicas novaiorquinas.
KRM & KMRU - Disconnect
KRM, isto é Kevin Richard Martin, ou seja The Bug, e Joseph Kamaru (KMRU) apelam à suspensão imediata. Como seria a vida sem electricidade? Disconnect é fantasmagórico e intimidante mas o silêncio sepulcral cumpre uma função: sabotar a insanidade colectiva. A música vem do fundo de um poço, cheio de água purificadora, até vir à superfície resplandescente.
Skee Mask - Resort
Relacionamo-nos com a música por nos levantar questōes ou por nos dar respostas? É como a diferença entre a passividade e a acção. Depende muito se queremos a música para escutar ou decorar os ouvidos, mas a resposta contém um pouco de ambos os estados. Álbuns como Resort ressoam isolamento e fantasia, mas por outro desbravam caminhos a partir de formas instituídas que alimentam a especulação, a pesquisa e o estudo. No final, está a transfiguração de que Skee Mask não se desprende nem abdica. Ainda bem.
James Blake - CMYK 002 EP
James Blake desligou a máquina e renasceu como independente. O EP CMYK 002 é titulado com o nome da sua editora e resume um breve mas intenso período de esvaziamento da gaveta que, segundo o próprio, estaria condenado ao silêncio pelos calendários da indústra. As quatro peças projectam o cientista nas suas experiências em laboratório, muito mais que o psicanalista pop, com direito a uma auto-provocação: Don't Co Write. Isto na semana em que a sociedade Tantrums com Normani é o único desvio à mesmice de Dopamine.
Anna Prior - Almost Love
Nos Metronomy, Anna Prior bate nas peles. A solo, não se desvincula do ritmo mas opera a partir das máquinas. Incitada por Robyn, Honey Dijon, Avalon Merson, Kate Bush, Bjork, Kylie Minogue e Burial, abre a pista com uma pilha de cançōes electrificadas pelo house e respectivas mulheres.
Dub Phizix - Like a Rope EP
O som é Metalheadz clássico e a marca de Dub Phizix reconhecível de olhos vendados. Drum'n'bass seco e montanhoso, seguro por blocos de pedra. Não serve as medidas do TikTok.
Spiritual Jazz 16: Riverside etc.
Desde 2008 sem advertências na ficha, a colecção Spiritual Jazz é um mergulho constante em acervos cruciais para a história. O 16.º episódio revisita a editora Riverside, casa de Cannonball Adderley Sextet, McCoy Tyner, Blue Mitchell e Lee Konitz.
Master Wilburn Burchette - Transcendental Music for Meditation, Opens the Seven Gates of Transcendental Consciousness, Music of the Godhead for Supernatural Meditation, Mind Storm e Guitar Grimoire
Como induzir estados emocionais através da mestria? Atravessando o misticismo instrumental do californiano Master Wilburn Burchette. Música para meditar, transcender, ponderar, observar, raciocinar, alienar e todos os verbos emocionais que possam mexer com a mente. Há psicanalistas mais caros e menos competentes. Reedição fundamental do Numero Group.