Praia Fluvial de Serpins
De Snoop Dogg a Kendrick Lamar e Ghostface Killah, os Badbadnotgood já foram visita da realeza do hip-hop, ou não tivesse sido esse um dos propulsores da sua fundação, mas é em casa que mais se sentem confortáveis a extrapolar os limites. Talvez seja essa a relação mais íntima com o jazz: desobedecer aos protocolos e seguir apenas o instinto. Perder o medo é a forma maior de liberdade.
Comunicado EP a EP, Mid Spiral reúne a trilogia Chaos, Order and Growth como um longo itinerário sem portagens. No ingreme serrano da subida a caminho do Castelo da Lousã, e na subida para as Aldeias de Xisto, onde a chegada ao Talasnal se assemelha a um encontro de Deus após cerca de seis quilómetros no limiar do precipício, o novo dos Badbadbnotgood não serviu apenas de banda sonora portátil. Foi o volante tranquilo de uma viagem da qual pedia apenas os mínimos olímpicos: paz, sossego e algum silêncio. Desacelerar entre curvas, contracurvas e declives temerosos.
Depois de uma digressão mundial, e de sessōes consecutivas de estúdio com Daniel Cesar, Charlotte Day Wilson, reggie, Baby Rose e os Turnstile, em 2023, Al Sow, Chester Hansen e Leland Whitty reencontraram-se no início do ano. Missão: perder peso e reiniciar as turbinas com a inocência das primeiras horas. Os Badbadnotgood não desaprendem nem redesenham o diagrama multidimensional. O factor “novo” já se esfumou na passagem do tempo e nas dezenas de associaçōes e créditos a outras vozes e nomes. Chaos, Order and Growth surge como uma sebenta do vocabulário criado, aperfeiçoado e aumentado, em regime instrumental.
Não se trata de um regime de poupança, muito pelo contrário. Os Badbadnotgood deixam-se contaminar para alastrar. O jazz pentatónico de Playgroup, a salsa de Taco Taco, o easy listening de Setima Regra, os arranjos de metais da soul quente de Isaac Hayes e Al Green em Your Soul & Mine, o impulso emo de Midspiral e o modo de condução automática de Take Me With You são assoalhadas de uma casa grande com jardim, piscina e estúdio para não se perder a vocação laboratorial. Porque, embora os Badbadnotgood, tenham escola técnica no jazz e prática na produção, foi pelo ouvido que tudo começou e em Midspiral reencontramo-nos com uma banda à escuta do mundo, disposta a seguir viagem sem medo das alturas ou vergonha de assentar em chão firme quando o vento pede para ficar em terra.
Mid Spiral pode ser ouvido nas plataformas digitais e será editado em formato físico a 25 de outubro pela XL Recordings
Recomendaçōes não-algorítmicas
Mavi - Shadow Box
Quem vem seguindo os passos de Mavi não se pode surpreender com a sensibilidade entregue em Shadow Box mas ainda assim eis um álbum de rap a contrariar as expectativas, mesmo as dos puristas. As cinquenta sombras de Mavi falam de alcoolismo, vício, excesso e perda. Sem sofismas, como um confessionário religioso em contacto directo com Deus. A grande potência de Shadow Box não está em ser rap de palavra ou lo-fi, mas antes em ser um gesto pessoal de reabilitação e reparação. A grandeza artística de Shadow Box descende da humanidade de Mavi.
Mavi estreia-se em Portugal a 19 de novembro no B.Leza
Ryuichi Sakamoto - Opus
Foi a banda sonora a incitar o magnífico último suspiro de Ryuichi Sakamoto em filme. Opus dignificava a condição frágil do compositor, sem explorar o sofrimento nem o elevar a uma condição divina inatingível. Pelo contrário, observámo-lo a fazer do piano a sua própria extensão humana, bela, imperfeita e sem receio de expor hesitaçōes. O "álbum" não perde propriedades, pelo contrário a ausência de imagem expande o campo imaginativo.
O'Sees - SORCS 80
Dos O'Sees só podemos esperar o imprevisto e intempestivo. Embora o álbum tenha sido eivado em quarteto, não há guitarras em SORCS 80. O punk cavernícola e percussivo é inflamado por alguns sintetizadores à Devo e um saxofone serpenteante à X-Ray Spex capaz de trazer novos tons a John Dwyer e respectiva trupe.
Google Earth (John Vanderslice e James Riotto) - Street View
No extenso portfólio de John Vanderslice, a dupla Google Earth com James Riotto expande o aventureirismo para a electrónica abstracta. Vanderslice e Riotto não se prendem a territórios, criam pontes entre o analógico e o digital para fazer uso pleno da liberdade e da impermanência entre a realidade física e o imaterialismo.
O comovente Tiny Desk de Milton Nascimento e Esperanza Spalding é fabuloso e merece cada segundo dos vinte e dois minutos. Música tradutora de uma bonita história de afectos e cumplicidades, com repertório de luxo e músicos de primeira apanha. Quando se tem Shabaka Hutchings quase incógnito na banda, isso há-de querer dizer algo. E o português brasileiro quase perfeito de Esperanza Spalding?