@Emma Saints
Estudou Direito, foi bailarino e da harmonia entre mente e corpo fez-se manager do amigo João Batista Coelho, com quem viveu a madrugada dos dias úteis de Slow J, e de Papillon, na Sente Isto.
Tomás Martins quis mais. O estudo do meio, a leitura das dificuldades burocráticas nas indústrias criativas, a energia transformadora assumida, e a destreza com a linguagem jurídica levaram-no até à área do publishing. Uma criatura desconhecida para muitos, estrutural a uma carreira se bem trabalhado. Vestiu a pele d’O Criador, canal onde deu consultas grátis regulares sobre direitos e contratos.
Hoje, nasce a to be honest, marca que pretende resolver o problema da opacidade com transparência e clareza. E um sonho que vem de longe: relacionar criatividade e estratégia para potenciar a internacionalização da música portuguesa.
Uma conversa franca sobre questōes estruturais do meio que desmistifica a sobrenaturalidade do artista e permitem observá-lo como um profissional com dificuldades invisíveis.
O termo publishing continua a ser um elefante na sala, mesmo para artistas e indústria. Como traduzi-lo?
A música corre em duas avenidas. Quando ouvimos uma música na rádio, estamos a ouvir uma unidade mas o que está a acontecer é a transmissão de duas realidades paralelas: por um lado, está a correr uma gravação e por outro está a ser transmitida uma obra. O publishing é a avenida focada do lado da ideia, da obra. As editoras funcionam na avenida das gravaçōes e portanto quando uma canção é transmitida na rádio, estão a ser reproduzidas as duas realidades, da gravação e da obra. O publishing é a área de negócio que explora comercialmente as obras. Quando a música era transmitida em pautas, dava origem a livros que teriam de ser publicados para depois serem interpretados por orquestras. O publishing mudou bastante desde então mas essa foi a génese.
Que visão traz a to be honest?
É um projecto multifacetado. Quero transformar o status quo e o publishing em Portugal. O que me fui apercebendo como manager, e ao lidar com muitas pessoas das indústrias criativas, é que existem claros problemas de falta de informação e de compreensão dos direitos dos artistas, quer fossem de direitos de autor, direitos ligados às gravaçōes ou às interpretaçōes. Comecei a perceber que o facto de ter estudado Direito me dava uma certa vantagem na capacidade de descodificar estas realidades, e o quão difícil era para os artistas e para as pessoas ligadas a estas indústrias. A falta de noção do valor da música, e dos direitos dos artistas e criadores, é um problema transversal. A compreensão dessa falha foi, a pouco e pouco, fazendo com que o meu propósito se fosse alinhando. A To Be Honest surge como uma marca que está à procura de trazer honestidade e transparência a todos processos relacionados com os direitos dos artistas e a utilização das suas obras. Há problemas que surgem de baixo para cima e outros de cima para baixo. A falta de informação e de noção do que é a propriedade intelectual, e de que como é que se pode traduzir em fontes de rendimento na estrutura e carreira de um artista, vem de baixo para cima. Leva a pontas soltas na relação dos artistas com os seus catálogos, com os seus colaboradores, e a problemas difíceis de resolver na relação com outras entidades, como as editoras, por não saberem que direitos estão a alienar. Também há muitos problemas na organização e estrutura dos catálogos, o que faz com que depois seja difícil encontrar os stems e os masters, quem são os autores e as divisões. São os problemas sistémicos com que tenho lidado ao longo do tempo. E depois há os problemas de cima para baixo. Há uma fraca representação da “geração digital” nas entidades de gestão colectiva, o que leva a que estas entidades não tenham em consideração os interesses e a protecção desta geração. A To Be Honest pretende resolver estas dificuldades, através de uma administração do catálogo dos artistas, garantindo que não há pontas soltas e que toda a informação está catalogada e inventariada. Sabemos quais são todas as divisōes de direito de autor, que não há ninguém esquecido no processo e que todas as obras estão declaradas nas entidades competentes. Isso tem impacto na distribuição dos dinheiros pelos titulares. A seguir, entramos numa segunda fase. A partir do momento em que uma obra, ou uma música, está devidamente catalogada torna-se muito mais fácil a sincronização em filmes, séries, jogos de vídeo e licenciamento para outros contextos. Para uma música ser sincronizada num filme, é preciso autorização dos donos da música e dos donos do master. Se houver um autor que não autoriza, porque não quer, ou não sabemos quem é, a sincronização não pode avançar. Isto tem gerado uma incapacidade de promover a música nestes contextos. As marcas, agências e produtoras audiovisuais vêem a sincronização como um bicho de sete cabeças. Queremos fazer a ponte entre os titulares dos direitos e as entidades que o gerem; os artistas e a música, e quem a quiser utilizar nas suas campanhas; e depois tentar gerar uma rede criativa entre artistas para se poderem abrir novas avenidas através das estratégias de cada um.
A internacionalização é um objectivo assumido. Como?
Um dos grandes objectivos é conseguir a internacionalização desta nova sonoridade portuguesa que estamos a tentar construir. Um dos meus grandes projectos há-de ser conseguir, através do publishing e do licenciamento, e de trabalhar de perto com os artistas, internacionalizar a música que, neste momento, está circunscrita ao nosso país. Do ponto de vista espacial porque parece que só comunicamos para Portugal. Há muitos dogmas associados porque “não nos querem ouvir por causa da língua” ou porque “somos demasiado pequenos”, e as pessoas acabam por construir uma inércia baseada nas suas crenças. E do ponto de vista temporal porque os artistas estão focados na próxima música, as editoras no álbum que acabou de sair, e não há ninguém focado no catálogo dos artistas, em promover esse legado, e em encontrar novos espaços para uma música que saiu há dez anos mas ainda nem toda a gente ouviu ou sabe que existe. O meu objectivo é aproximar estas realidades e garantir que tudo isto mude um pouco o status quo do publishing. Um music publisher é uma figura que a maioria das pessoas nem sabe o que pode fazer, e isso está relacionado com existirem poucos advogados especializados na área da música. Como não existem supervisores musicais do lado das produtoras audiovisuais, dificulta o processo de sincronização porque não há noção do que implica.
O sublinhado na honestidade é um sinal de opacidade nestes processos?
Existe opacidade na organização. Se pensares, somos uma cultura pouco confortável a falar de dinheiro, ou numa mesa de negociaçōes. Somos uma cultura que não compreende o valor da música. Senti a opacidade desde muito cedo. Quando estudava Direito, a minha sensação - e deixou-me irritado, para te ser sincero - foi que a lei vale para todos mas só alguns a compreendem. O curso ajuda-me a falar uma língua que só alguns falam para depois poder traduzir a lei que vale para todos para poder fazer negócio. Claro que isto depois não é assim porque o papel do advogado pode ser muito importante na defesa dos interesses do cliente mas a minha perplexidade era: ‘porque é que está tudo codificado?’. É o código penal, é o código civil…Há uma espécie de cápsula à volta destas realidades e isso torna tudo muito difícil estabelecer uma relação transparente com quem ela serve, que somos todos nós. Na teoria, a informação não está vedada mas na prática se nem todas as pessoas conseguem compreender os conceitos, e se isso não é feito de forma clara, então a transparência é uma palavra bonita mas não concretizada. Na música e na nossa indústria, sinto que existe esta camada de legalização de todos os processos - como existe em tudo. Se um médico falar contigo, ele vai comunicar como se percebesses a linguagem usada. Com áreas muito técnicas, há dificuldade de comunicação. É transversal, não acontece só com a indústria musical, mas a minha sensação é que esta opacidade se estende, e sobretudo na era digital de democratização dos meios de produção e distribuição, o que significa que eu no quarto posso lançar música e essa música dar origem a um produto comercial nos ouvidos de toda a gente. Dei este salto sem nunca compreender como o negócio funciona, como é que a música é um produto e a marca um negócio, e como é que estruturo tudo à volta. Isto gera uma opacidade de processos, tanto de baixo para cima na relação dos músicos uns com os outros, como se estabelece de um ponto de vista vertical. Se um artista não compreende o valor da sua música, e se não tem ao seu lado alguém capaz de decifrar esta linguagem, é muito mais provável vir a assinar um contrato que não lhe é favorável e uma dinâmica de trabalho que não é a pretendida. A democratização e a fraca digitalização geram percepçōes de opacidade. A honestidade significa que falar sobre direitos não tem de estar dissociado da identidade artística.
No site, a To Be Honest é apresentada como “um movimento para transformar a indústria musical”. Passa pela exportação ou transcende esse objectivo?
Tem vários ângulos. A exportação é o último nível. A minha ideia é transformarmos os processos, valorizarmos a música e uns aos outros como criativos, valorizarmos o poder de relaçōes bem estabelecidas, a importância da participação e defesa dos interesses junto das entidades competentes, e haver um esforço conjunto para que estes processos melhorem e se tornem mais transparentes. Acredito que as tais profecias auto-realizáveis como o “somos demasiado pequenos”, o “ninguém quer saber de nós”, ou o problema de escala de um artista grande em Portugal continuar a ser desconhecido noutros mercados, podem ser resolvidos com trabalho bem feito e consequente na tentativa de promover a música lá fora, e ajudar a encontrar novos outlets para além daqueles que já estão nos ombros dos artistas, de quem distribui a música para o Spotify, etc.. Tenho essa crença porque a minha ideia é que a produção musical já não fica atrás de outros contextos, mas temos problemas de escala e de pequenez de mentalidade, que nos afastam. Para isso, vamos ter que bater às portas, desbravar mato, e de correr o risco de estarmos desconfortáveis para percebermos se, de facto, não querem saber ou temos aqui alguma coisa. Sempre fomos um país muito importador mas esta dinâmica está a começar a mudar. O que quero fazer com o publishing é o que vejo nos artistas com quem estou a trabalhar: inovar, quebrar barreiras e mudar mentalidades. Se conseguir fazer isso nesta área, à medida que eles fazem isto na música, acredito que um artista português possa construir uma história como Stromae construiu a partir da Bélgica, como a Rosalia a partir de Espanha, como Burna Boy…Só temos o fado como legado exportável mas se tivermos a capacidade de construir uma sonoridade portuguesa contemporânea, e há vários projectos com esse potencial, como o Afro Fado, do Slow J, a música do Richie Campbell e do T-Rex, podemos conseguir. São exemplos paradigmáticos. Devíamos estar a tentar noutros contextos e não entrarmos a perder no balneário. Temos que ir a jogo.
Falavas na questão do fundo de catálogo. Ao ritmo actual, a música já não precisa de ter trinta, vinte ou dez anos para passar à história. Dois anos podem ser uma eternidade. Há uma série de fenómenos recentes, sobretudo no TikTok, de resgate de cançōes de outras eras, apesar da sensação de imprevisibilidade desta rede. Algumas ganharam uma segunda vida, outras nunca tinham sido êxitos. Não me recordo de haver paralelo em Portugal. Estás a pensar em casos similares?
O fenómeno que uso como exemplo é o da Kate Bush com o Running Up That Hill na Stranger Things. É uma canção de 85, que teve o seu impacto na altura, e foi reassociada a uma série contemporânea de culto, com impacto cultural gigante. Ganhou uma nova vida, voltou às tabelas e a ser consumida por uma geração que talvez nem conhecesse a música. É um caso paradigmático de bom trabalho de sincronização. O TikTok é um fenómeno mais desconhecido porque vive muito de conteúdo gerado por utilizadores. Está nas mãos do público e é um bocado difícil trabalhar isso, embora não seja impossível. O meu background é na dança, e há grandes questōes ao nível do licenciamento para se fazer um vídeo e publicar no YouTube. O risco de ser eliminado logo a seguir, depois de [alguém] ter passado horas e horas a desenvolver um conceito é enorme. Ou faço uma música de raiz, ou se estou a dançar sobre uma música já existente o risco é enorme, e não existe uma forma de resolver a não ser que conheça as editoras e os artistas. Na relação entre a música e outras artes, existe um potencial de licenciamento a explorar. O que está nas mãos do público vai continuar a estar, a não ser que se jogue um jogo, que sinceramente não gosto de jogar, de contratar influenciadores para promover a música. O fenómeno da Kate Bush funcionou muito bem porque foi uma sincronização muito bem feita, muito bem pensada, na associação a um momento da série. Não estou à procura de pôr a música em todo o lado, estou à procura de encontrar novas ligaçōes para ganhar novas vidas e acrescentar cultura aos contextos, e para isso tem de ser feito com critério musical e artístico; do que é que preciso nesses contextos para a música criar valor acrescentado.
Na prática, o que pode valer o publishing para um artista?
Gosto de ver em três frentes. A primeira, na relação com um artista, é limpar-lhe a casa. Significa que vou pegar em todas as músicas no Spotify e YouTube, e centralizar toda a informação. Organizar os masters, as divisōes de direito de autor, ver o que está e não está declarado na GDA e SPA, ver se os masters são da editora, se há royalties para produtores e artistas convidados, metadata, letras, stems e tudo o que possas imaginar. Isto é um lado administrativo que ajuda imenso à organização, acesso e administração do catálogo. À medida que a música se transforma em declaraçōes, ou seja que é registada na GDA, SPA, Audiogest, e entidades competentes noutros países, a capacidade de gerar valor através dos direitos aumenta porque as entidades já sabem que é a ti que têm que passar os direitos. Se tens cem músicas, mas só vinte estão declaradas na SPA, podes ser um artista cheio de streaming, público e concertos, mas as entidades não sabem que o dinheiro é para ti e fica lá. Isto é um problema administrativo, e é nesta primeira frente que um publisher musical pode intervir e acrescentar valor. A segunda frente é comercial. A partir do momento em que uma obra não tem pontas soltas, propor uma música a uma agência criativa ou a uma produtora audiovisual já não é um tiro no escuro porque conheço o processo, levo eficiência e transparência. Posso garantir que este processo é fluído e uma sincronização pode avançar. Não estou simplesmente a apresentar uma proposta porque há um gajo que tem 1% ou 5%, e eu não sei onde é que ele anda. Dar segurança na promoção da música noutros contextos é outro valor acrescentado. Em terceiro lugar, um publishing bem feito aproxima criadores uns dos outros. Estou a falar com o Slow J, a tentar perceber que tipo de sonoridade procura, a trabalhar com outros produtores e artistas, e a perceber o que eles procuram, para criar ambientes colaborativos. Estou a falar com produtores lá fora, e a trabalhar essas relaçōes para aproximar e criar.
Lá fora, esta questão, pelo menos nos mercados centrais, está muito mais avançada.
Altamente. Vês um livro de indústria musical de 1990 e eles dizem-te: uma equipa à volta de um artista tem de ter cinco pessoas. Tem que haver um manager, e às vezes um day-to-day manager e um business manager, um advogado especializado, um publisher, e uma editora ou distribuidora. Em Portugal, há muito poucos advogados especializados. Os publishers contam-se pelos dedos, e por vezes têm uma posição passiva. Isso aliado a uma falta de organização e de informação dos próprios artistas leva a que a esta profissão também não se tenha desenvolvido. Torna-se causa e consequência, ou seja perdem-se muitas oportunidades por esta profissão não estar devidamente desenvolvida. Estou a transformar-me de um gestor de direitos para um publisher no verdadeiro sentido da palavra. Para uma editora comprar os masters, ou ficar dona das gravaçōes, tem de pagar adiantamentos aos artistas. Se não estiver nessa posição, o que uma editora faz é um negócio de distribuição. Corres o risco, assumes os custos, pagas os vídeos e a editora distribui no mercado. O que estou a tentar fazer é começar como um gestor de catálogo do lado dos direitos das obras. A intenção é, com o tempo, conseguir fazer um trabalho real de publishing com esta dinâmica, e depois com a capacidade de estabelecer relaçōes com os artistas, pôr-lhes adiantamentos na mão. Conseguir valorizá-los, o que pode dar origem a contratos de publishing per se.
Estudaste Direito na Católica. Foste manager-amigo do Slow J e entretanto especializaste-te nesta área. Queimaste muitas pestanas sozinho?
Primeiro amigo, depois manager e será sempre assim. Pá, como manager também foi assim. Também é uma área sem desenvolvimento académico ou pontes abertas. A nossa mentalidade - o João na música, e eu na ajuda que lhe tentava dar -, sempre foi muito do it yourself. Se ninguém nos diz, vamos descobrir como se faz. Cometi muitos erros, aprendi com a minha experiência, mas sim, mesmo nesta área do publishing estou a aprender e a especializar-me todos os dias. A génese desta ideia começa quando ainda estou na Faculdade de Direito. O Criador é um segundo nível disto. Fui-me especializando em todas as áreas que estão à volta do crescimento de um artista, mais especificamente do Slow J e do Papillon. Fiz essa faculdade de vida com eles. Cheguei a um ponto em que percebi que estava muito dependente destes poucos artistas e o meu propósito é mais estrutural. Quero criar impacto duradouro nas geraçōes futuras. O Criador surge nesse contexto. Tenho esta informação e estou a ver montes de pessoas aos papéis. Vou só partilhá-la, e o feedback foi: existem estes problemas transversais. O artista pode ter imenso sucesso ou estar no anonimato, estar aqui há vinte anos ou há dias, e as dificuldades são as mesmas. Isso foi ajudando na especialização deste caminho. A gestão de direitos é o confluir da minha experiência e das áreas de interesse numa marca, num negócio e num cultural statement.
Passar por primeiras experiências em simultâneo fez com que pensassem menos nas consequências? Quão importante foi passar por experiências formativas em conjunto?
A experiência, às vezes, gera-te dogmas. Viver a mesma experiência durante vinte anos pode criar a ideia que a verdade vai ser sempre aquela porque sempre a viveste assim. Isso pode criar certos padrōes de como a realidade é e impede de ver como poderia ser. Todas estas experiências virgens, desprovidas de experiência ou conhecimento, ajudaram-nos a ter uma edge no que estávamos a fazer. Tínhamos pessoas à nossa volta a dizer “não era melhor jogar pelo seguro?” e nós sempre tentámos provar que era possível fazer de outra forma. Foi uma energia que esteve lá desde que comecei a fazer management e o João também tem muito essa energia. Sempre me inspirou a ser assim. Levo isso para a minha vida, e a minha personalidade também é de querer mudar as coisas. De um pensamento crítico de pensar “e se fosse diferente” ou “e se fosse melhor”. Só tens isso quando assumes que as coisas não são como são. Uma experiência muito homogénea pode gerar inércia. Às vezes, pode ser uma desvantagem mas, na maior parte das vezes, o início dos meus projectos é altamente ingénuo. A minha proposta tão assumidamente transformadora, de mudar o status quo e rebentar coisas, também é motivada pela ingenuidade e pelo desconhecimento. A experiência e o conhecimento ajudam-me a fazer as coisas de forma sustentada mas tento não perder essa energia revolucionária.
No caso do Slow J, de algumas das vozes mais ouvidas da música portuguesa actual, e globalmente com figuras como Billie Eilish, houve um discurso de exaltação do individual. De conseguir maximizar recursos e comunicar do quarto para o mundo. Não te parece que está mais difícil agora, para quem começa, do que há dez anos quando essa postura começou a ser um modelo?
Quando estás a apanhar a crista tecnológica da onda, a posição é mais confortável do que num mercado saturado, dez anos depois de todas as pessoas poderem fazer uso dessa vantagem. Um produtor da BeatStars, há dez ou quinze anos, apanhou o início. Ao teu lado, estavam centenas de pessoas. Hoje, um puto de nove anos cresceu com essa plataforma na ponta dos dedos e fala uma linguagem que tiveste que aprender quando já dispunhas de menos plasticidade cerebral para aprender. E hoje em dia, já competes com milhōes de produtores, alguns deles a fazer o que fazes com mais espaço de crescimento e a não ter que pagar contas ao final do mês. Portanto, a resposta é um nim. Apanhar o início de uma plataforma, de uma tecnologia, de um novo estado de coisas, beneficia quem desbrava esse terreno. Não acho que se torne menos verdade hoje, porque o ponto é a democratização dos factores de produção e de distribuição. A possibilidade está lá, a capacidade de diferenciação é que se foi reduzindo. Agora, em relação à inteligência artificial e à forma como ela pode ser usada por seres humanos e desbravar novos caminhos, acho que se aplica o mesmo. Quem conseguir compreender a tecnologia para a usar ao seu serviço, vai estar em vantagem em relação às pessoas que a contestam. Vamos ter que nos adaptar e se calhar daqui a vinte anos, estamos saturados e vai ter que surgir uma tecnologia nova. Em 2015, com o YouTube a ganhar uma força tremenda, com as plataformas digitais a surgir, e a democratização dos DAWs, isto começou a fazer com que todas as pessoas tivessem acesso barato a fontes de criação e a mecanismos de produção. O Valete fez-me uma pergunta muito parecida no Horizontal 360. A minha resposta a quem estava presente foi com um instrumento de gestão que é a análise SWOT (forças, fraquezas, oportunidades e ameaças). Se estás a lançar uma marca ou produto, se te estás a posicionar num contexto profissional ou não-profissional, tens que perceber quais são as forças e limitaçōes, e no contexto à tua volta quais são as oportunidades e ameaças. Ser um produtor de type beats, numa plataforma saturada, já não é uma oportunidade, é uma ameaça. Hoje, as pessoas procuram autenticidade e sonoridade própria.
Um bom middle man pode ser crucial no êxito de um artista. Como intermediário, achas que esse papel é valorizado?
Trabalhar behind the scenes é trabalhar behind the scenes. Se não estás em palco, não deves ser tratado como tal. Os artistas têm muitas responsabilidades associadas a dar a cara. No caso desta marca, sou eu que dou a cara por ela. Em relação à música, são os artistas a dar o corpo ao manifesto. Não me parece que os middle men devessem ser tratados de outra forma. O que sinto é que um bom médico ou advogado trabalha para que o seu paciente ou cliente precise o menos possível dele. Se o trabalho do intermediário não separar águas, e facilitar os processos, pode criar valor. A razão pela qual acabei nesta área foi por ver potencial até criativo naquilo que posso fazer pelos artistas, pelas suas estratégias, e carreiras, e estar perto dos seus processos. Uma pessoa que trabalha à volta do artista pode fazer uma óptima ponte entre o que é artístico e executivo, e o que é cultural e comercial. Se for bem feito, pode ajudar os artistas a estabelecerem-se, a tornar-se sustentáveis, a construir carreiras, e a não viver de marés. O melhor médico não é o que prescreve medicamentos, mas o que pergunta o que é que andas a comer, se andas a dormir e como é que está a tua cabeça. Acho que o problema que há é de informação. Quando começo a trabalhar com artistas, às vezes tenho que lhes explicar o que é um publisher e qual a minha visão. Não lhes vendo sonhos, sou muito claro nas garantias que posso e não posso dar. Não tenho que lhes explicar que relação devem ter com as editoras porque essa avenida já existe. Esta auto-estrada do publishing quase implica uma formação, e eu faço questão de não trabalhar com um artista sem ele saber o que é suposto eu fazer e ter bases para avaliar o meu trabalho, e não ser só mais um intermediário que vai se abastar da fonte do dinheiro. Digo muitas vezes aos artistas: “Estou aqui para te ajudar. Se queres gerir tu os direitos, be my guest”. Isso significa que a missão está a ser cumprida porque o meu papel não é trabalhar com todos os artistas. É mudar a estrutura de forma a que os artistas tenham mais consciência dos seus direitos para que os gajos que vêm a seguir não tenham que ouvir coisas como: “és artista?! Isso não é uma profissão a sério. Qual é o teu plano B?”. Quando começas a entender o mundo da propriedade intelectual, percebes que há formas de rendimento. Há formas de construir um percurso. Uma carreira a viver só de concertos vai ser difícil, porque é muito dependente de uma forma de rendimento. Se tiveres noção das várias fontes e do valor da tua música, quando vais falar com uma editora, e já és dono de gravaçōes, já estás inscrito na Audiogest e já recebes o valor associado à comunicação e execução pública das tuas gravaçōes, não vais assinar um contrato sem conhecimento de causa em que aceitas o primeiro valor que te oferecem. Não é apenas o valor o cultural, é o valor comercial. Se não souberes isto, podes achar que um mau contrato é bom. Se for feito de uma forma em que aproxime mundos, e não que crie uma nova portagem, há um potencial transformador. A minha génese não é ser mais uma pessoa a dizer “vou tentar ir buscar-te mais dinheiro e nem me perguntes como”.
Os artistas do catálogo da To Be Honest reflectem a identidade portuguesa contemporânea e transformadora de que falavas. Quais são os critérios para trabalhares com alguém e como é que alguém pode trabalhar contigo?
Este trabalho implica o desenvolver de uma confiança real, que não é só uma confiança de ter trabalhado como manager do x ou do y, mas uma confiança na visão do que estou a fazer e da forma como estou a tentar fazer. Esse é o primeiro ponto de confluência. Se queres respostas rápidas e mais dinheiro no teu bolso, não estás a vir ao sítio certo. Se queres ser mais valorizado como consequência de um trabalho mais estruturado, e estás preparado para correr essa maratona, então temos um princípio. Do ponto de vista de um catálogo que fui construindo, há vários contextos. A confiança é o primeiro. São pessoas com quem comunico facilmente, de uma forma bastante directa e honesta. E são pessoas que confiam em mim para entrar na equipa deles, para entrar no processo, para ter acesso a informação sensível, e para isso é preciso ter muita confiança de parte a parte. De um ponto de vista muito artístico, estou a tentar mudar mentalidades e procuro artistas que tentem fazer o mesmo. Que me consigam transmitir essa visão e vontade, mesmo sem provas dadas. Claro que neste momento sou uma micro-estrutura. Contrato serviços externos, tenho pessoas que me ajudam, mas ainda é um caminho muito solitário. Para o catálogo poder crescer vou ter que encontrar formas sustentáveis de me desenvolver e manter uma estrutura capaz de manter esta visão, estratégia e forma de olhar para o publishing. Aquilo que tem levado à introdução de novos artistas no catálogo tem a ver com esta realidade artística ousada, quer os mais sonantes, quer os mais desconhecidos, ética de trabalho, vontade de evolução, e chegar a novos sítios. Nos contextos profissionais em que comecei, foi sempre o que procurei e é sempre disso que vou estar à procura com quem trabalhar. Neste momento, estou numa fase em que já sei o que estou a fazer, estudei muitos anos este mercado, tenho um catálogo forte e planos de desenvolvimento. Por isso é que estou a lançar esta marca ao mundo.
Estás atento à inteligência artificial? Posicionas-te de alguma forma?
Estou atento mas não de uma forma super-técnica. Para mim, o desenvolvimento tecnológico é uma inevitabilidade. Qualquer que seja a energia que tenta parar esse desenvolvimento, está a perder. Aquela que a tenta compreender e regular é a que vai conseguir estabelecer uma relação mais saudável. Se há desafios de um ponto de vista machine learning e das fontes utilizadas pela IA para ir buscar informação para criar? Há. Mesmo do ponto de vista teórico, se o prompt é o criador ou o criador é a máquina na cloud. O próprio conceito de autoria é desafiado por esta invenção tecnológica e vai ser muito mais. De um ponto de vista autoral, há muitos desafios naquilo que consideramos ser o conceito de originalidade. O que é original? O que é que cópia e apropriação? Não tenho uma opinião formada. Este debate, na música, já apareceu com os samples. É uma obra nova? A apropriação de uma antiga? Preciso de pedir autorização? A indústria teve que criar novas regras e formas de regular. Já há formas de identificar aquilo que foi samplado e hoje em dia há uma adaptação a essa realidade. Se há música feita a partir de samples não autorizados? Imensa. Se isso é mau? Tenho dúvidas, porque a inspiração, mesmo quando é original, vem de um certo sítio que até ao final dos dias vamos tentar perceber qual é. Até o conceito de autoria não é líquido. Há muitas escolas de direito de autor. Há quem defenda que quem esteve na sala merece receber direitos, mesmo que só estivesse a lavar o chão. Há quem pense que um produtor, como não participou na composição melódica, não merece entrar na autoria da obra. É subjectivo e não há uma regra. Vamos ter que ser nós, com bom senso e capacidade de compreender a realidade de nos adaptarmos de forma saudável, a criar novas regras e dinâmicas que possam servir a todos, e não ultrapassem limites de bom senso. Estamos a viver uma fase muito complexa da humanidade. Há muitos princípios basilares de funcionamento a ser postos em causa por uma máquina como o Chat GPT. Questiona formas de avaliação, juízos de valor e originalidade. Lembro-me de estar no sexto ano e os meus professores estarem preocupados se usávamos a Wikipedia. Agora, o problema é outro. Como é que avalias as pessoas? A IA está a criar novas profissōes, novas formas de olhar para o mundo e para a criatividade. Se vai ser tudo bom? Não, vai criar muitos desafios mas acho que o caminho não é lutar contra a inovação.
A indústria já cometeu esse erro uma vez quando o MP3 explodiu e se posicionou contra a Internet. Só quando o modelo do streaming irrompeu é que aceitou esse modelo de equilíbrio imperfeito.
Sim, e mesmo o streaming coloca imensas questōes que estão a ser objecto de extensão discussão. Há um manto de opacidade que precisa de vir cá para fora. Se chegámos ao óptimo? Não, mas é mais acessível e directo do que no status quo anterior. Isso não quer dizer que tenhamos que lutar como as editoras lutaram contra o Napster. Dez anos depois, tiveram que lidar exactamente com a mesma coisa, de outra forma. É aquela ideia de eu tenho que proteger o que tenho porque as coisas são assim. Acho que é preciso juventude de pensamento para perceber como é que se pode pôr isto ao serviço da humanidade. O YouTube é incrível na monetização do trabalho? Não, a monetização da música é a monetização do conteúdo publicitário. O YouTube é uma montra, mas tornou a música acessível a imensas pessoas sem acesso e sem dinheiro para comprar um álbum. E como é que sabias se o álbum era bom se só conhecias aquela música ouvida em repeat? Temos que lidar com a mudança com atenção, bom senso e respeito pelos direitos das pessoas - nunca irei defender o contrário.