Tiago Sousa: "Parte do projecto desta música é resgatar um outro tempo que interrompa o tempo do trabalho e do consumo"
O piano até foi o primeiro instrumento nas mãos de Tiago Sousa, mas foi nas bandas de rock de garagem que o conhecemos suado e rasgado. De volta às teclas e ao estudo, guardou a filosofia faz-tu-mesmo do punk, mas agora inscrita em paisagens sonoras de espaço, tempo e ponderaçåo.
O terceiro volume da série Organic Music Tapes descreve a evolução da linguagem do pianista, motivada pelas técnicas de composição do minimalismo americano de Terry Riley, Steve Reich ou Philip Glass. Que nunca é apenas estética mas também ética. “O orgânico, é uma das formas possíveis de edificação do mundo (…) Aquela que deu forma aos rios, aos veios da madeira ou a fibra dos músculos”, exemplifica.
Um álbum admirável, de coerência entre prática e pensamento. “Uma música que tem por ambição abrandar. Estabelecer o seu próprio tempo”, explica. As nuvens e a neblina são o lugar escolhido para reflectir sobre a urgente transformação do modo de vida que pode muito bem ser o regresso à terra de muitas sementes.
Há muitos anos, muitos anos havia os Jesus The Misuntherstood e os Goodbye Toulouse. Como surgiu o piano e porque se fixou nas tuas mãos?
O piano foi, na verdade, o meu primeiro instrumento. Mais tarde é que enveredei pelos caminhos do rock mas aos poucos senti a necessidade de procurar uma voz mais pessoal naquilo que fazia. Procurar imitar menos os ídolos que tinha na altura e encontrar uma linguagem que pudesse expressar as transformações que estava a sentir na altura. Daí ter surgido a ideia de voltar ao piano, e fazê-lo de forma autodidacta. Não procurar um percurso académico mas, através da experimentação, encontrar um cantinho para mim na actual cena musical.
Como é que alguém vindo do faz-tu-mesmo se interessou por música distante dessa cultura?
No que toca aos meus interesses musicais, eles são bastante vastos e fica difícil de delimitar uma prática musical apenas. Mas sempre me senti, ideologicamente, próximo desse espírito faz-tu-mesmo. A minha prática musical é muito do-it-yourself. As edições que faço, esta série agora em cassete, os sítios onde acabo por tocar a maior parte do tempo, que estão ligados ao circuito periférico. Nunca foi, e agora ainda menos, uma música puramente institucional. Embora também encontre possibilidades de mostrar o meu trabalho em contextos mais formais.
Em que consiste a série Organic Music Tapes e que espaço próprio tem este terceiro capítulo?
O orgânico, é uma das formas possíveis de edificação do mundo. Uma que começa quando termina a necessidade de controlo. Aquela que deu forma aos rios, aos veios da madeira ou a fibra dos músculos. Não existiu nenhum engenheiro ou arquitecto que lhes deu forma. A sua eficiência é conseguida paulatinamente. Um sem agir em que nada fica por fazer. Uma repetição incansável e paciente. Ao mesmo tempo irregular e espontânea. Singular e interdependente. O meu desafio tem sido aprender com as demoradas estratégias desses mesmo processos. Com o objectivo de ter uma expressão musical que escapasse à grelha e ao algoritmo. Sem cair no tipo de antagonismo mundo natural vs mundo artificial. A maneira orgânica de fazer as coisas pode moldar o crescimento de uma árvore, uma relação social ou uma peça musical.
Duas das peças são para piano e as outras duas para orgão. O que representa esta distinção?
O órgão eléctrico foi um recurso a que apareceu no segundo volume desta série e, a partir daí, senti que teve um contributo importante para ajudar a consolidar alguns preceitos estéticos relacionados com este tema que vieram consolidar a ideia de som contínuo, inerente ao órgão, e uma possibilidade de exploração sónica obtida com o trabalho feito em cima de loops pré registados que enraizou a ideia de repetição e de stasis. A maneira como utilizo o piano é naturalmente mais fluida do que no trabalho com o órgão. Neste terceiro volume introduzimos o órgão de tubos - gravado numa igreja aqui no Barreiro. Com este instrumento aprofundo as noções acústicas e de ressonância do espaço. As coisas não são assim tão estanques, porque cada uma destas questões encontra forma de se expressar nestes três instrumentos, mas certamente que cada um enfatiza mais umas e menos outras.
O interesse pelas técnicas minimais de composição de Terry Riley, Steve Reich ou Philip Glass surgiu como? Esse gosto relaciona-se com o silêncio?
Tem a ver com uma afinidade de princípios que sinto com a música que surge com esta vaga dita minimalista. A atracção pelos processos graduais, a repetição e a continuidade, o phasing ou a psico-acústica e o interesse por práticas musicais fora do espectro da música dita ocidental. Quando comecei a estudar mais a fundo as obras inaugurais desta linguagem, entendi que havia algo que eu podia aproveitar. Até porque há muito tempo que estava a tentar fazer música com determinados padrões melódicos e harmónicos que não estavam a encaixar nos modelos que tinha para fazer música até aqui e que encontraram um lugar muito natural com esta música. Mas não sou um ortodoxo. No fim do dia, sinto que a minha maneira de trabalhar essas técnicas é muito pessoal e exploratória.
Os padrões repetitivos representam uma busca pela perfeição?
São, na verdade, uma maneira de afirmar precisamente o contrário. A repetição é usada como forma de tornar evidente para o ouvinte, pequenas modificações e variações que, ao ser introduzidas, desafiam a regularidade métrica e um certo polimento linear muito recorrente na música que nos rodeia.
Como associas esse espaço flutuante e nebuloso às preocupações políticas que manifestas?
É uma música enraizada na fluidez e na espontaneidade. Que desafia a lógica do controlo e do individualismo autoral. Uma música que escapa à ditadura do metrónomo, com os seus batimentos indexados aos ponteiros de um relógio. À sua herança utilitária que dita que uma dada música é feita para valsar, uma outra para marchar, aquela para adormecer as crianças ou para acompanhar as horas melancólicas. BPM, batidas por minuto, o movimento marchante da civilização. É uma música para habitar e escutar. É uma música que tem por ambição abrandar. Estabelecer o seu próprio tempo. O tempo capitalista é um tempo segmentado e rápido. Ser soberano do seu tempo é o que é obliterado à massa de dominados. O assalariado representa uma condição infeliz porque não está na posição de reivindicar o que fazer com o seu tempo. As revoltas operárias tentaram interromper este ciclo infernal - o picar o ponto, os ritmos de produção. Existe um projecto político que implica uma autonomia em relação ao tempo mecânico.
As paisagens contemplativas podem ser interpretadas como um espaço de reflexão ou têm outros significados?
A calma contemplativa é um estado de liberdade porque é indiferente à necessidade, por outro lado, o ócio é uma fresta pela qual entra um tempo sem preocupações, à margem da imposição da sobrevivência. O tempo da era industrial é um tempo marcado pela mecanização que degrada a condição humana pela ausência de momentos contemplativos. Parte do projecto desta música é resgatar, para mim e para quem queira partilhar, um outro tempo que interrompa o tempo do trabalho e do consumo.
Organic Music Tapes tem o selo da Discrepant