Por quem canta Sérgio Onze? Pelo fadista que fez do fado vida, pelo estilista contador de histórias através da imagem, e pela alma que transporta outras matérias-primas emocionais. Três dimensōes unidas numa só no plural deliberado de Nós. A voz possante não contém as fragilidades nem a profundidade limita as preocupaçōes visuais.
Revelação enorme do fado, Sérgio Onze aguardou até aos trinta anos para expressar vinte de casas de fado. Carminho apadrinhou-o. Ricardo Ribeiro e Agir produziram. Conan Osiris, Teresinha Landeiro e Joana Espadinha escreveram e descreveram-no.
A 12 de setembro, Nós é apresentado no Museu do Fado, e a 28 do mesmo mês, Sérgio Onze será uma das vozes do Caixa Alfama. Antes disso, a 15 de agosto, o fado banha-se n’O Sol da Caparica. O destino é o futuro.
Na biografia do Spotify, está escrito que “Sérgio Onze não vem do fado, não carrega um legado ancestral nem antepassados para honrar. O fado foi, por isso, uma decisão”. Como te relacionas com o fado?
Sim, não tenho um histórico no fado. Costumo dizer que o fado me encontrou e decidimos ser amigos. Fui crescendo com o fado, as suas regras e conceitos. E até com algum purismo que me foi passado por alguns fadistas mais velhos que respeito muito até aos dias de hoje. Há essa preocupação de preservar o que o fado é. Procuro sempre encontrar os meus caminhos e potenciar aquilo que ele me dá sem o desvirtuar. Não quero tornar o fado noutra coisa, mas sim poder entregar-lhe aquilo que ele me potencia a fazer. O fado e os fadistas de hoje não são os mesmos de há 50 anos. Era impossível cantar as mesmas coisas. Para mim, a magia do fado é essa. O fado é sempre actual porque se vai transformando. Posso cantar uma melodia com 200 anos com um poema de hoje. A palavra ajuda muito. Estou preso a uma tradição evolutiva. Não sou purista porque o fado evolui naturalmente. Acabo só por gerir a informação que me é dada e perceber até onde posso ir.
Começaste a cantar bastante cedo. A amizade com o fado vem de longe?
Sim, comecei a cantar fado com nove anos. Foi o meu primeiro contacto. Em casa, estava sempre a cantarolar todas as músicas e mais alguma, e na altura os meus pais achavam que tinha algum jeito. Puseram-me numa escola de música. A professora já muito velhota disse-me que poderia ter jeito para cantar fado. Para os meus pais, foi uma grande surpresa. Eles não ouviam fado. Não havia uma tradição familiar nem eu sabia o que era, para ser sincero. A primeira vez que ouvi fado foi nesse momento. Acabei por ganhar a Noite de Fado e foi um bichinho que ficou. Fui cantando em colectividades e casas de fado, sempre acompanhado por eles, mas de forma muito leve. Aos 15, percebo que o fado está a ganhar uma forma maior na minha vida. Aos 17, comecei a cantar em casas de fado. Passou a ser o meu trabalho.
Passou a ser vida?
Passou, bela frase!
O álbum só chega aos 30. Porquê tanto tempo?
Já tinha recebido alguns convites para gravar. Queria muito fazê-lo mas achava que ainda não era a altura certa. Precisava de perceber o que queria dizer às pessoas e de que forma, e isso é um processo. Sentia que fazê-lo antes podia ser um erro. Na verdade, ao gravar voltei a questionar se seria a altura certa. É um processo muito interior e daí o disco chamar-se Nós porque são nós que se vão atando e desatando. A minha vida até aos dias de hoje teria de ser representada dessa forma. Já estava muito mais certo daquilo que queria, muito mais para dizer às pessoas e da forma desejada. O caminho que procurava no disco preocupava-me bastante e antes disso ainda não o tinha encontrado.
Aos 30 sabe-se melhor o que se quer?
Não sei (ri-se). Aos 30, tem-se outra maturidade mas ainda não sei tudo, como é óbvio. Descobrirmo-nos é um caminho infinito. Aos 30 sei coisas que não sabia aos 20 mas até aos 35 saberei essas outras. É ser leve nessa procura.
É possível cantar sem viver as palavras?
Não, não acredito. O fado é uma união perfeita da melodia e das palavras. No meu caso, nasce muito da palavra. É muito importante o que estamos a dizer. Cantar fado é contar uma história. É impossível não viver as palavras. Todas elas têm uma intenção e uma energia diferente. Não se pode dizer amor da mesma forma que se diz ódio. A interpretação é uma das grandes magias que a palavra não tem. Se não partirmos da palavra, associada à melodia e a uma carga emocional, não acontece fado.
Apesar de o Nós ser um álbum de fado, a produção é mais ampla e tem uma objectividade quase pop. Concordas?
Acho que tens razão. Tem muito a ver com o universo que me rodeia. Procurava fazer um disco que fado, e que isso o caracterizasse. Não podia ser de outra forma. Eu sou fadista e queria apresentar-me como tal mas todo o universo que me envolve tem muitas influências, e queria representá-lo no disco. Trazer essas influências todas. Talvez mais pop, como disseste, sem que o fosse. Foi um risco inevitável, porque sou essa pessoa, mas a linha que separa os dois mundos é ténue. Foi um processo muito cuidadoso no sentido de não ser mal interpretado ou de não passar uma mensagem daquilo que não sou. Por isso, a escolha dos produtores foi muito cuidadosa. O Ricardo Ribeiro foi o produtor inicial. Quando ele percebeu a linha que eu estava à procura - quase como se o barco balançasse e o fado tradicional fosse rompido por este vento a soprar de outra direcção -, o Ricardo falou do Agir que eu sabia que já me tinha ouvido e gostava. Mas não fazia sentido ser o Agir a produzir um disco inteiro. A linguagem do Agir não é fadista, apesar de ser um produtor camaleónico. Quando o Ricardo sugeriu que o Agir produzisse alguns temas, fez-me muito sentido. Foi um trabalho a três. Eles funcionaram como um contraponto e [o processo] traduziu bem aquilo que procurava.
Trabalhaste com a Teresinha Landeiro e a Joana Espadinha. Tal como os produtores, uma pessoa do fado e outra da pop.
Lá está. As duas surgiram de forma natural e sem pensar demasiado. A naturalidade dá-me mais certezas. Conheço a Teresinha há anos. Começámos a cantar mais ou menos na mesma altura. Ela conhece muito bem a minha forma de cantar e aquilo que gosto. Além de ser um grande apreciador do cantar dela, também gosto muito do que ela escreve. Quando comecei a preparar o disco, pedi-lhe uma letra e não lhe disse mais nada. Ela escreveu e a entrada no disco foi imediata. A Joana Espadinha vem de um lugar completamente diferente. Também sou stylist, e queria ter essa representação mais visual e contemporâneo no disco. Conheci a Joana Espadinha através desse meio, para trabalhar na imagem do novo disco e no videoclip. Ela nem sabia que eu era fadista. Não costumava misturar as coisas. Na primeira conversa sobre o universo musical dela, acabei por partilhar que era fadista e tínhamos alguém em comum que era a Carminho. Isto porque quando a Carminho me ouviu numa casa de fados, incentivou-me muito a avançar e apoiou-me. Foi de uma grande generosidade e deu-me algumas ideias. A Joana Espadinha tinha escrito algumas cançōes para a Carminho. Nessa conversa, ela disse-me que teria muito gosto em escrever para mim. Eu já era fã dela e tudo isto se alinhou. Quando ela me perguntou sobre que tema gostaria que escrevesse, estava numa fase complicada de ansiedade e de nós na cabeça. Ela entrega-me um tema que diz que amanhã vai ser melhor. Foi perfeito.
O Nós remete para o plural mas também para o desatar de nós.
Sim, desatar e ir atando. Todo este disco foi um nó interior de questōes e dúvidas que vivem em mim. E também das pessoas que se foram agregando e enlaçaram.
O Conan Osiris é um fadista disfarçado?
(ri-se) Há muito fado nele. Não sei se é um fadista disfarçado mas tem uma sensibilidade muito fadista. O Conan surge de forma completamente inesperada. Já tinha os temas seleccionados e o alinhamento do disco quase fechado. Estou a ver um concerto de apresentação do álbum da Rita Vian (que adoro) no Lux, e ela canta um tema do Conan que começa com “Eu já sabia que queria ficar até nascer o dia”. Aquilo fez-me muito sentido, tem muito a ver comigo e depois de ter bebido uns copos, saí de lá a pensar: ‘vou falar com o Conan para ver se ele quer escrever para mim’. Foi um tiro no escuro, eu nem sequer o conhecia. Por acaso, temos um amigo em comum. O Conan já me tinha ouvido cantar, eu nem sabia disso, e a resposta foi imediata. ‘Claro que sim’. Perguntou-me sobre o que gostaria que ele escrevesse e eu pensei que se calhar um tema que fizesse a ponte com o styling era a peça-chave que me faltava. Basicamente, o mote foi: ‘tenho vestido tanta gente que hoje visto-me a mim’. Gostava que o tema se chamasse Sapatos Novos e ele escreveu a Sapatinhos, que é uma forma desconstruída e descontraída sobre encontrar uma maneira leve de viver. Tem essa forma descomplicada de olhar que é o mundo poder estar a cair mas eu vou aparecer de fatinho novo e sapatinhos arranjados. É uma metáfora para momentos mais complicados.
O Sérgio fadista e o Sérgio estilista relacionam-se.
Exactamente, este é o tema mais autobiográfico do disco. Junta os meus dois mundos num só. Algo que ainda não tinha conseguido de forma tão literal. Ele leu-me muito bem e ao que eu procurava.
A Rita Vian e o Conan Osiris não são fadistas mas têm fado. Ambos têm, tal como a Carminho, uma imagem singular. Há um padrão comum a todos, que também se liga a ti, de lavar a cara do fado.
Sim, alguns destes nomes não são fadistas, ou pelo menos não tradicionais, mas os caminhos acabam por se ligar ao fado. As fronteiras são muito ténues. O que acho é que temos artistas cada vez mais completos e que pensam no todo. É o meu caso. Não consigo ver as coisas de forma singular. Para mim, é um todo. A música reflecte a imagem, as fotos, os vídeos…Há uns anos, não havia tanto essa preocupação, ou pelo menos não havia tantas pessoas que se posicionassem dessa forma. O fado mais tradicional ainda continua a ser conservador. Aos poucos, abre-se porque há pessoas que dão forma a essa mudança mas ainda há muitas limitaçōes enraizadas. Conheço algumas casas de fado em que as fadistas ainda são obrigadas a apresentar-se de xaile e de saia. Acho que não faz nenhum sentido nos tempos em que vivemos uma mulher ainda ter de estar de saia. Como dizia no início, nós somos outras pessoas. Os fadistas de há 50 anos não são os mesmos de agora e é impossível representarem os mesmos valores. Como qualquer estilo musical urbano, representa a sociedade e os tempos em que vivemos. Qual é o sentido de nos apresentarmos como há 50 anos? A meu ver, tem de ser uma representação dos dias de hoje ou dos dias de amanhã.
Conheço algumas casas de fado em que as fadistas ainda são obrigadas a apresentar-se de xaile e de saia. Acho que não faz nenhum sentido nos tempos em que vivemos uma mulher ainda ter de estar de saia
És do Seixal. Há Margem Sul no teu fado?
Nunca me tinham feito essa pergunta (ri-se). Acho que sim. É inevitável não haver porque todo o meu percurso foi feito aqui. O ser da Margem Sul é um espírito. Não cresci num bairro típico como Alfama, a Mouraria ou Chelas como a Sara [Correia], que conheço desde sempre, mas foi uma ferramenta que me ajudou a estar num meio que não é fácil. Ainda há muitos estereótipos.
De onde vem o Onze do Sérgio?
A explicação é básica. Faço anos a 11 de novembro (11/11). Usava o meu nome Sérgio da Silva para o fado e Sérgio Onze para o styling. No momento de gravar o disco, a Carminho foi uma alavanca. Era e sou um fã enorme dela mas nunca tinha tido a possibilidade de a conhecer. Era até estranho porque ela frequenta muito o meio fadista e nunca nos tínhamos cruzado. Os meus colegas, por exemplo, conheciam-na. Ao mesmo tempo, era um alívio porque se um dia a conhecesse, ia passar mal. Uma sexta-feira na casa de fados onde canto, a Bela, a Carminho estava a jantar. Começo a cantar um bocadinho nervoso, a Carminho ouve, gosta muito e no final vem falar comigo. Convida-me para um café no dia seguinte, conversamos, ela percebe o que estou a fazer e aconselha-me em algumas decisōes, mas sempre a transmitir-me grande confiança em mim - ela foi uma ajuda preciosa no disco. Tanto que é a Carminho quem se dirige ao Museu do Fado para pedir um apoio para gravar. Não tinha capacidade financeira para o fazer na altura. Ela deu o nome Sérgio Onze ao Museu do Fado. Sérgio da Silva não funcionava tão bem e ela sempre me disse que não entendia esta divisão entre o fadista e o stylist. A Carminho acabou por fazer essa opção por mim e fez todo o sentido. É um número com muita simbologia.
Em 2021, gravaste com o Mike…11.
Que também faz anos no dia 11! Já não me recordo quem usou primeiro o 11 mas até achámos curioso fazermos os dois anos no mesmo dia. Usámos isso a nosso proveito.
O Nós tem vindo a acontecer ao longo dos últimos meses. Não foi instantâneo. O que é que está previsto para os próximos tempos?
Espero que continue a ser dessa forma. Tenho muito material na gaveta para sair. O próximo vídeo deve sair no início de setembro. É um vídeo gravado há quatro anos, que agora foi reaproveitado. Já tinha feito algumas experiências sozinho em estúdio, só para perceber como funcionava, porque nunca tinha passado por essa processo. Na altura, ia sair um single isolado que agora foi reaproveitado para o disco, com uma gravação nova. Acima de tudo, vou trabalhar para que as coisas aconteçam. Estou muito feliz por sentir que consegui alinhar estes mundos, sem desvirtuar nenhum deles, e ser recebido como um fadista que traz alguma frescura.