Sérgio Hydalgo passou boa parte da vida a fazer escolhas. Na ZDB, onde foi programador durante treze anos, na CANTO Discos, fundada após a saída da galeria do Bairro Alto, no festival Ponto D’Orvalho que ajudou a plantar e florir, no B.Leza, onde o podemos encontrar regularmente a ampliar a geografia cultural da sala à beira-Tejo, e no Vale Perdido, festival “aventureiro” de propostas inesperadas sem limites de género, a realizar-se de 13 a 16 de novembro.
O chamariz é o concerto já esgotado de Jessica Pratt no B.Leza no dia 14. Alguém com quem já trabalhou antes de o sol abrir e regressa agora a Portugal, como se de uma primeira vez se tratasse, em todo o esplendor e beleza americana do álbum Here In Pitch.
O cartaz é diversificado e tanto propōe transformadores da música da cidade como Tristany e Nuno Beats, como o palestiniano Dirar Kalash e a argelina Ãssia Ghendir (no Centro Ismaili, situado na Avenida Lusíada, nas Laranjeiras). Estreiam-se em Portugal os Purelink (Sala Lisa), Elena Colombi (Armazém do Grilo) e a Banda Sousa (no ringue de boxe do Cosmos), representantes de Funaná Kotxi Pó, género de música e dança que foi criada pela população camponesa da ilha cabo-verdiana de Santiago no período pós-escravatura do final do século XIX.
O Vale Perdido sintetiza o papel de Sérgio Hydalgo ao longo dos anos: surpreender, estimular, projectar o desconhecido e vislumbrar nas subjectividades minoritárias do hoje as grandes paixōes informadas do amanhã. Numa época de desordenamento da informação e pressão normativa, pode a programação moldar gostos, influenciar comportamentos e opor-se às massificaçōes?
Começaste na ZDB. É aí que começas a construir a relação com uma comunidade?
Cheguei à ZDB através do Má Fama, um programa de rádio e podcast, na rádio universitária do Técnico, que consistia em arquivar a música nacional e internacional dos anos 2005/6/7/8. Conversei com muitos músicos e gravei sessōes, algumas em minha casa e outras na ZDB. Daí nasceu uma relação de proximidade. Quanto entrei, senti que existia uma crise de identidade na música, os programadores tinham saído meses antes, o público estava a diminuir, alguns desses artistas tinham deixado a programação da ZDB para actuar noutros espaços e o que tive de fazer foi reconectar com uma ideia de comunidade mas também expandir isso para um público mais abrangente. Comunidade, sim, de artistas, de músicos, jornalistas e designers que faziam sentido actuar ali. Sim, aceito essa classificação.
Na música que programaste na ZDB e agora no B.Leza ou no [Festival] Vale Perdido, há algum padrão (que não de género)? Houve um momento na tua vida em que te apercebeste que não só gostavas de música como tinhas uma visão crítica? Talvez uma consciência de contrapoder?
Já ouvia muita música antes [da ZDB]. Cresci a ouvir rádio, os painéis da noite da Antena 3, lia os jornais, gostava muito de consumir esse tipo de literatura, de ir a concertos (se bem que na altura havia muito menos), e comecei a fazer a minha própria música. Percebo perfeitamente a questão mas não sei se me consigo identificar assim tanto dessa forma. Se calhar, estou a contradizer-me porque numa ou noutra entrevista, devo ter posto a coisa nesses termos mas sinto que o facto de ter estado na ZDB também me fez de ir encontro ao que é ou era a linha programática da sala e que tinha a sua própria missão. Ao ouvir-me falar agora, se calhar consigo encontrar isso mas agora não me sinto assim tão próximo desse discurso. Interessa-me mais se a música me diz alguma coisa, se é criativa, se não é criativa e não tanto se é marginal ou comercial. Consigo fascinar-me com coisas muito díspares. Não gosto mesmo nada de me limitar estilisticamente ou adjectivar as coisas em balizas tão fixas. Claro que consigo encontrar muitas coisas que me estimulam que se calhar foram ou são vistas como minoritárias mas eu não me cinjo a elas. Tanto posso ir a um concerto para 15 mil pessoas, como ir a um para 30 pessoas e sentir o mesmo entusiasmo. É-me difícil encontrar um fio condutor, sobretudo agora, anos depois de ter saído da ZDB e não ter que responder a uma ideia de programação mais definida - e que ainda assim era muito livre. Não tinha que me reger por música experimental, improvisada ou free jazz. Sentia só que havia um legado para respeitar, auscultando o que se fazia e, através da minha sensibilidade, dar espaço a diferentes manifestaçōes artísticas que não tinham que ser “transgressoras”, “difíceis” ou “experimentais”. Em 2024, é muito difícil ver as coisas assim.
Passaste por um processo de desconstrução?
Sim, mas já a entrar na ZDB. Quando eu chego, deparo-me com uma linha de programação muito bem definida e que podia ter música improvisada, electroacústica, rock desconstruído, noise ou algumas coisas da canção mais específica e acho que quis implodir isso porque achava, continuo a achar e acho ainda mais que existem coisas que não tinham espaço e podiam vir de qualquer campo: do r&b, do rap, da electrónica experimental ou da canção, e isso não era menor. Quando crescemos, tornamo-nos mais abertos. Se nos correr bem (sorri). Pelo menos, é o que acho. Consigo encontrar mais prazer em gostar de mais do que um espectro. Pode ser da música como pode ser de qualquer outra coisa. Há uns dias conversava com o Rodrigo Amarante sobre o Caetano Veloso e como o Caetano é isso. Alguém com uma noção muito rica do que é a música da Bahia, a música tradicional, da bossa-nova e do João Gilberto, mas depois é capaz de dar espaço à Ivete Sangalo ou cantar com pessoas vistas como baixa cultura. É inacreditável como um homem de 82 anos tem essa abertura para arriscar e, por vezes, espalhar-se ao comprido mas não quer estar confinado a uma caixinha adolescente de segurança. Embora também respeite pessoas que têm o seu universo de criação muito definido, mas não me revejo tanto nesse tipo de perspectiva, e tentei sempre, na ZDB, desconstruir a ideia de que era um espaço elitista e que comunicava de uma maneira que só certas pessoas iam perceber, que não era capaz de ser democrático na forma como constrói um alinhamento, ou até em questōes mais pequenas como quem está à porta, como os cartazes são desenhados, ou como falamos com quem não nos entende - e fazê-lo de uma maneira que possa chegar ao outro. Muitas vezes, as pessoas podem achar que não gostam de uma certa proposta mas num outro tipo de contexto, podem mudar de opinião. Recordo-me de, no Vale Perdido, termos feito um concerto com um artista japonês chamado FUJI||||||||||TA, que constrói os próprios instrumentos, e que o termos feito numa igreja, de uma forma diferente do habitual, com uma cenografia própria, acabámos por ter pessoas que nunca tinham ouvido aquela música e afinal adoravam. Podem não ir a um festival de música experimental mas ficaram conquistadas. É muito bonito poder partilhar aquilo que se gosta e encontrar estratégias de chegar às pessoas a quem não se chega normalmente. Estou a lembrar-me das Batukadeiras que são um tesouro. Apresentá-las num contexto museológico, depois de uma palestra, é engraçado mas se pensarmos num contexto que as dignifique, depois de um concerto de uma banda internacional, num espaço diferente do normal, se calhar vamos surpreender as pessoas e fazê-las descobrir música para a qual não estavam predispostas. Isso entusiasma-me muito.
Consigo fascinar-me com coisas muito díspares. Não gosto mesmo nada de me limitar estilisticamente ou adjectivar as coisas em balizas tão fixas. Claro que consigo encontrar muitas coisas que me estimulam que se calhar foram ou são vistas como minoritárias mas eu não me cinjo a elas. Tanto posso ir a um concerto para 15 mil pessoas, como ir a um para 30 pessoas e sentir o mesmo entusiasmo.
Muita da música que programaste ao longo destes anos parte, a meu ver, de uma ideia de surpreender as pessoas. Propor-lhes o que não conhecem ou esperam. Uma boa parte dessa música vem de um lugar desconhecido, através de bandas ou artistas novos ou, pelo menos, novos para o público. A relação com uma premissa de “elite” no princípio da cadeia de partilha não é inevitável?
A minha resposta epidérmica é não. Se for analítica, por norma gostamos de partilhar aquilo que nos entusiasma e muitas vezes aquilo que nos entusiasma são coisas que ainda não…No meu caso específico, se descobrir algo que mereça espaço e que ainda não o tenha, quero que o maior número de pessoas a conheça. Se essa proposta já tiver reconhecimento, pode haver outro prazer - um concerto com uma produção maior e outro impacto comercial. Consigo ter prazer nos dois. Mostrar algo que ninguém conhece, para que os media possam falar, e o máximo de pessoas possa aparecer. Não tenho essa coisa adolescente de não querer partilhar, ser secreto e ficar entre iluminados. Quero o oposto. Agora, não digo que o meu ego não possa estar envolvido nesse processo mas também me dá prazer trabalhar com alguém com imenso reconhecimento. Sentir a energia de actuar perante centenas de pessoas e ver aquele momento mudar vidas. Do que eu não gosto é de apresentar o artista e não haver público. De sentir que há um desconforto de ambas as partes. O público é sempre importante.
Há uma série de programadores pelo país, nos quais te identifico, que têm olhado para a programação não apenas pelas consequências de bilheteira mas pelo efeito que pode causar no público? Esta ideia de coesão é real? Recordo-me de ler uma entrevista em que mencionavas a existência de um grupo só de programadores.
Sim, desde que saí da ZDB, na altura do COVID, acho que parou mas havia uma série de programadores - lembro-me do Café Oto (Londres) - que partilhavam e tentavam encontrar parceiros para possibilitar que certo tipo de artistas pudessem actuar, porque precisavam de mais concertos. Se eu gosto de provocar as pessoas? Acho que isso vem de um lugar de quem gosta de música quer mostrar a música de que gosta. Acredito que alguma dessa música possa ser disruptiva. E programar é um acto político. Inconscientemente, há escolhas que se fazem que geram mudança ou, pelo menos, levantam questōes. Esta proposta, neste sítio, nesta altura, se é considerada de qualidade ou não; tudo isso pode ser questionado. Todos nós temos um papel social e cultural com impacto político. Nem sempre tudo é feito de forma tão consciente mas é óbvio que isso é importante. Não estou só a pensar na música mas num contexto. É um homem? Uma mulher? Uma pessoa não-binária? Racializada? É alguém com voz activa? Alguém que precisa mais ou menos de um palco? Que nos vai fazer questionar sobre a sua impertinência? Isso mexe comigo, sim.
Se eu gosto de provocar as pessoas? Acho que isso vem de um lugar de quem gosta de música quer mostrar a música de que gosta. Acredito que alguma dessa música possa ser disruptiva. E programar é um acto político. Inconscientemente, há escolhas que se fazem que geram mudança ou, pelo menos, levantam questōes.
Existe um circuito que permita programar não apenas um concerto no B.Leza mas três ou quatro pelo país?
Sim, acho que desde o início do milénio que se começou a construir de forma muito incipiente o circuito nacional de música moderna, primeiro com concertos de pequena e média dimensão, que depois se desenvolveu muito. Trabalhei com muitos pares, desde a Lovers & Lollypops, ao Centro Cultural Vila Flor, GNRation, Estalagem da Ponta do Sol, Casa da Cultura em Setúbal e, pontualmente, muitos outros como o Serralves em Festa, tentando estabelecer pontes que possibilitassem que os artistas viessem a Portugal. Há uns anos, isso era fulcral porque as viagens eram muito caras e Portugal não fazia parte do circuito. Hoje em dia, sinto que as ligaçōes são mais ténues, provavelmente porque o circuito cresceu tanto, e há tantas salas e programaçōes, que estamos mais afastados do que há uns anos. Eu, para marcar um concerto internacional, tinha sempre, mas sempre, de estabelecer parcerias. Nos meus primeiros anos, não havia um concerto em que não tivesse de encontrar um ou dois parceiros para justificar a vinda de um artista porque a sala era pequena e era muito mais exequível ter duas ou três datas. Hoje em dia é mais fácil, embora dependa da escala. Esse circuito existe e é importantíssimo. Podia era ser mais eficiente.
O aumento dos custos de estar na estrada está a ter implicaçōes, sobretudo nos circuitos pequenos e médios?
Sim, a subida dos custos de andar em digressão afecta particularmente os circuitos pequenos e médios, onde os orçamentos e margens de lucro são menores e mais limitados. Esse aumento nos custos está relacionado a factores como a inflacção, o preço do combustível, transporte, alojamento e alimentação, além de taxas de produção e equipamento. Para bandas ou artistas independentes, e promotores de eventos de menor escala, é mais difícil absorver essas despesas sem repassar os custos aos fãs, seja através de bilhetes mais caros ou da venda de merchandising, o que pode impactar directamente a participação do público.
Quando hoje se programa, há uma preocupação maior em dar espaço à representatividade?
Hoje há mais consciência que o trabalho de quem gere uma sala ou teatro, ou quem organiza concertos, tem importância no dar ou não visibilidade a esses artistas. As nossas escolhas têm impacto. E que provavelmente, no início disto tudo, porque é relativamente recente, as escolhas eram mais inconscientes. Lembro-me perfeitamente que quando cheguei à ZDB, a maioria dos músicos eram brancos. A indústria mudou muito e começou a haver uma paridade muito maior de artistas, entre géneros, e depois acabou por se expandir para outro tipo de questōes. Ainda estamos num nível muito inicial. O MeToo e sobretudo o Black Lives Matter levantaram uma série de questōes que eram evidentes mas não eram discutidas. Ou seja, quem tem acesso, quem está no palco e quem organiza. As coisas ainda são anacrónicas e faz sentido forçar a mudança. Isso vai mostrar que a sociedade é mais rica que a projectada na televisão e que com maior equidade e interseccionalidade vamos caminhar no sentido de uma sociedade mais justa. Ainda estamos longe mas é incontornável. É impensável para mim estar a organizar um festival ou um ciclo e não pensar se os nomes programados são representativos da diversidade da sociedade portuguesa e de Lisboa. Não faz sentido para mim programar um alinhamento com cem por cento de homens brancos. Também não o seria musicalmente.
Hoje há mais consciência que o trabalho de quem gere uma sala ou teatro, ou quem organiza concertos, tem importância no dar ou não visibilidade a esses artistas. As nossas escolhas têm impacto. E que provavelmente, no início disto tudo, porque é relativamente recente, as escolhas eram mais inconscientes. Lembro-me perfeitamente que quando cheguei à ZDB, a maioria dos músicos eram brancos.
Ainda estamos no início, como dizes, porque não acontece naturalmente?
Sim, ainda estamos muito mas mesmo muito, muito, muito atrasados e vejo isso diariamente. Sinto que as pessoas são muito pouco curiosas e que o público não sai da sua zona de conforto. O público da ZDB vai à ZDB, o do B.Leza vai às noites de fim de semana do B.Leza, os estrangeiros a residir em Portugal vão a certo tipo de locais, e seria muito mais interessante se as pessoas fossem descobrir outras propostas e ouvir outra música além da que lhes dá segurança. A Príncipe foi uma revolução mas há muitas revoluçōes a fazer-se. Vê-se isso com a música cigana e com outras propostas de pessoas racializadas. Há muito a fazer não só em termos de programação, mas em quem tem esse poder - se pensar em quem dirige um teatro. Por norma, esse poder não é partilhado. No caso do assassinato do Odair [Moniz], quem está a discutir o tema em público são, por norma, pessoas brancas. Estamos a discutir o outro e a dizermos o que achamos sobre o outro. É um pouco estranho.
Trazer propostas de música fora dos eixos anglo-saxónicos é uma das respostas possíveis?
Sim, há tantas coisas incríveis que as pessoas ainda não conhecem que não faz sentido guardá-las só para nós. Temos tanto acesso a informação que só se não formos curiosos é que só vamos ouvir música feita pelos de sempre. Esse entusiasmo faz-nos querer descobrir mais e partilhar mais. Vai acontecer naturalmente e a tendência é encontrar cada vez mais alinhamentos que não sejam exclusivamente anglo-saxónicos e tenham uma abertura cada vez mais a propostas de diferentes origens e de universos musicais rotulados de “baixa cultura”, com uma energia que não se encontra em outro tipo de propostas com mais expressão. Para mim, é o que faz sentido.
Tens trazido algumas figuras com quem construíste uma relação. Estou a lembrar-me da Angel Olsen. O factor humano conta para o programador?
(pausa) Tenho dificuldade em fazer esse distanciamento. Procuro tê-lo e perceber se estou a confundir amizade com qualidade artística, mas espero conseguir fazer essa destrinça. Por isso, é que não costumo programar muitas vezes os mesmos artistas se não acreditar neles. A Angel Olsen é uma das maiores artistas contemporâneas. Fez alguns dos discos de que mais gosto. Claro que é fixe quando conhecemos as pessoas e percebemos que essa pessoa pode ser interessante para conversar. Não sei…Por vezes, há um fascínio pelos artistas de quem gostamos. Se depois continua na vida real, é bonito.
Nunca mais vamos poder ver a Jessica Pratt num festival como o Vale Perdido?
Acho que nos próximos tempos não. As carreiras são longas e fazem-se de ciclos e contraciclos mas nos próximos tempos não vamos conseguir vê-la no espaço de intimidade do B.Leza [concerto a 14 de novembro]. Quando regressar, acredito que será num contexto de festival, que não sei se é o melhor para ela, e se tivermos sorte numa sala de maior dimensão. Ela merece muito. Pessoalmente, é o meu disco de cançōes do ano. Há uma relação emocional por conhecê-la e ter acompanhado a evolução, mas se me distanciar, consegui ser frio para perceber que é um disco espantoso. Hiper-conciso, com temas de um minuto e meio, com variaçōes melódicas, que pode ter um/dois refrōes e um imaginário muito próprio. É difícil construir um conjunto de cançōes tão sólido e cativante quanto este. Depois há a colaboração com o A$ap Rocky, a entrevista com a Apple Music, os destaques e a crítica da Pitchfork que a garante nos dez melhores do ano. Tudo indica que vai crescer bastante e ela merece o reconhecimento.
O Vale Perdido é apresentado como “a materialização de um desejo de partilha de música livre de constrangimentos formais, assumidamente eclética e aventureira”. Quando há uma sombra invisível tão poderosa como o algoritmo, esse papel de mediação torna-se mais difícil?
Sim, sim. O algoritmo tem muito impacto hoje em dia. As visualizaçōes, o alcance das contas dos artistas acabam por ter um papel muitas vezes castrador. Um 7.7 na Pitchfork é insípido mas um 8.5 pode garantir um ano de concertos. O mesmo se aplica a artistas que consigam aparecer nos destaques de Spotify. Sei que isso é muito importante e não é por acaso que muitos dos festivais de verão partilham os mesmos alinhamentos. O mesmo universo da música experimental vem dos mesmos artistas que vão às mesmas salas e são capa das mesmas revistas com as mesmas críticas. Isso foi algo que no Vale Perdido procurámos desconstruir. Como é que podemos fazer algo que não seja normativo nem de cumprir forçosamente com os pressupostos de outros eventos em que programam os mesmos artistas e se comunica da mesma maneira? Por isso é que o Vale Perdido enquanto entidade completamente independente, nesta sua fase embrionária, se permite apresentar artistas desconhecidos ou pouco conhecidos, com excepção da Jessica Pratt que foi fechada antes do disco sair. Trabalho com ela há dez anos mas o single foi arrebatador. Percebi que este disco era diferente dos outros e vai permitir ao público que não está tão próximo ou predisposto à descoberta de se aproximar. Foi um isco que nós amamos, mas que nos permite arriscar com bandas completamente desconhecidos mas que nós acreditamos. No fundo, [a questão é] como é que conseguimos combater o algoritmo e de não termos os mesmos nomes das mesmas agências, que estão sempre em todo o lado? Muitos deles, são óptimos, já trabalhei com eles e adorei, mas é contra essa repetição que o Vale Perdido surge fundamentalmente.
No fundo, [a questão é] como é que conseguimos combater o algoritmo e de não termos os mesmos nomes das mesmas agências, que estão sempre em todo o lado? Muitos deles, são óptimos, já trabalhei com eles e adorei, mas é contra essa repetição que o Vale Perdido surge fundamentalmente.
Qual é a intenção da CANTO Discos?
A CANTO surge quando estava a sair da ZDB em 2021. Não tinha muitas coisas planeadas. Havia coisas pontuais a fazer mas a Canto surge como uma necessidade de ter uma plataforma que me desse liberdade de editar um disco, programar um concerto ou fazer algo especial. Surge inicialmente como uma plataforma para editar o Gabriel Ferrandini de quem sou amigo, agente e manager. Um disco em preparação ao longo de anos e que senti que queria muito estar associado. Acreditava que mais ninguém podia acarinhar mais do que eu. Daí surge a CANTO e de forma muito espontânea, a editora transforma-se noutra coisa. Começo a programar concertos, a Angel Olsen, a Weyes Blood, o Rodrigo Amarante, coisas mais pequenas na Sala Lisa, ou seja poder trabalhar com duas escalas, uma pequena e outra com uma certa dimensão. Depois recebo o convite do CCB para programar pontualmente coisas e surge o Soundwalk Collective com a Patti Smith, a Kali Malone, a Tirzah…No fundo, é uma plataforma que me permite fazer coisas sem me cingir a um universo. Por norma, já estabeleci uma relação profissional com esses artistas com quem trabalho. Daí também a confiança de poder trazê-los a palcos de maior dimensão, como a Angel Olsen, a Weyes Blood, o David Longstreth (Dirty Projectors), o Rodrigo Amarante e o Gabriel Ferrandini. O facto de termos essa confiança permite-me crescer com eles. Com artistas emergentes, acabo por trabalhar uma primeira vez e estabelecer uma relação que poderá ser de confiança.
Entretanto sais da ZDB.
Sim, ainda na pandemia fiz o ciclo de programação no Teatro Viriato [com a ZDB]. Entretanto, a Patrícia Portela saiu em conflito e eu também abandonei. Estive ligado durante duas ediçōes ao Ponto D’Orvalho, que é um festival de artes e ecologia em Montemor-o-Novo. Gostei muito do desafio de trabalhar não apenas com música mas a intersecção com outras disciplinas artísticas, e em colaboração.
Qual é o teu papel no B.Leza?
Quando a Madalena e a Sofia [Saudade e Silva] me convidaram para trabalhar com elas, a ideia foi e continua a ser ajudar a expandir a programação. O B.Leza tem uma matriz muito fechada, é um espaço que já existe há trinta anos, vocacionado para a música africana, especificamente para o universo lusófono. Não me vejo como programador, vejo-me como alguém que ajuda a estabelecer pontes com outros agentes, colectivos e fazedores. Tento abrir portas, mais do que outra coisa. Claro que poderei encontrar uma linha programática mas sinto que o meu papel é mais esse, de abrir a porta para outra pessoas que precisam de espaço com condiçōes. O B.Leza é uma das melhores salas para se tocar ao vivo. Tem um palco de grande dimensão, um sistema de som óptimo e está muito bem localizado. Presta-se ao concerto. Tem sido uma grande aprendizagem para mim poder experimentar outras músicas noutros contextos.
[No B.Leza] não me vejo como programador, vejo-me como alguém que ajuda a estabelecer pontes com outros agentes, colectivos e fazedores. Tento abrir portas, mais do que outra coisa. Claro que poderei encontrar uma linha programática mas sinto que o meu papel é mais esse, de abrir a porta para outra pessoas que precisam de espaço com condiçōes.
À excepção de Viseu (Teatro Viriato) e do Ponto d’Orvalho, tens programado quase sempre em Lisboa. Na Grande Lisboa, não se está a desaproveitar o potencial das outras cidades?
Passei metade da minha vida na linha de Sintra. É uma das áreas mais populosas de Portugal, ou se calhar da Europa. É uma concentração muito grande de pessoas para a oferta cultura que existe. É um concelho muito jovem e há muita coisa por fazer. Mesmo muita. Há muita gente que vem a Lisboa para estudar, trabalhar, regressa e não tem grande alternativas. Sinto que há um espaço enorme de cimento cultural fora do núcleo histórico que não está a ser aproveitado, não só na Área Metropolitana de Lisboa como no resto do país. Provavelmente, é preciso apoio. Não acredito muito, mas posso estar enganado, numa sala de concertos no Cacém ou na Amadora sem apoio. Acho sim que é preciso tempo para desenvolver uma programação, arriscar e estabelecer uma relação de confiança com o público que é difícil de suportar para um privado que precisa de respostas rápidas. É muito importante o investimento municipal, regional e estatal no desenvolvimento de estruturas de todas as dimensōes. Podem ser locais, de bairro, um estúdio, uma sala de ensaio, espaços para as pessoas poderem colaborar e apresentar os seus projectos, residências artísticas, trabalhar com outras disciplinas, pessoas que não são artistas, jovens, velhos, pessoas que precisam e a cultura é uma ferramenta óptima para dar sentido de pertença. Sempre quis fazer projectos com uma componente educativa, de estabelecer relaçōes entre pessoas de universos diferentes, mas sempre me senti incapaz. Sinto que há muita gente a querer mas faltam meios, embora encontre alguns exemplos pontuais de programação regular fora do centro. As coisas encaminham-se para aí porque Lisboa está a mudar muito. Os preços são incomportáveis e está muito difícil viver na cidade. O caminho passa por sair.