Na mesma sexta-feira, dois pesos pesados da música portuguesa actual sairam para a rua com álbum. O primeiro no caso de Ivandro, depois de uma maratona de singles milionários, a solo ou em dupla. O terceiro no caso de Dillaz, mais de uma dezena de anos de silenciosa conspiração depois das mixtapes Sagrada Família. Ambos com uma história para contar: a do Trovador romântico gentil, e a d’O Próprio acre e doce. Os dois com convidados de porte, como Slow J e Julinho KSD, no caso de Ivandro, e Plutónio, no caso de Dillaz. Na contagem decrescente para a chegada às plataformas, festas de lançamento com cenografia própria, pensada para o guião particular de cada um, com resultados imediatos.
Para o caso de alguém não ter reparado, um sem número de “actos isolados”, de ou com Ivandro, estão entre os mais ouvidos em Portugal nos últimos cinco anos, desde Essa Saia (de Bispo) a Como tu (de Bárbara Bandeira), Lua, ou já na escada até Trovador, Moça (produzida por Slow J) e Chakras com Julinho KSD, para citar as mais populares. Na prática, a estreia em longa-duração soa ao final de um primeiro capítulo que o levou a ser o mais ouvido no Spotify em Portugal em 2022 e o segundo mais ouvido no ano passado, atrás de T-Rex. Sem álbum. Sinais dos tempos.
Mais antigo e discreto, Dillaz não dá entrevistas. Se queremos conhecê-lo, é através das rimas. Nada mudou, apesar de o single Colãs - uma rumba quente e suada, na esteira de C Tangana - poder sugerir o inverso. Os voos são altos mas a pista de descolagem é sempre a mesma. Há o ir mas é sempre à Madorna que está o voltar, onde o artista Styler pintou um mural gigante de André Chapelas, o ídolo do bairro. "Dillaz para os ouvintes, Chapz para os do bairro, André para os chegados, filho para a mãe", definia o descendente de guitarrista de fado que cresceu na academia do hip hop português a ouvir Dealema e Mind Da Gap. Hoje, é ele a referência.
O Próprio, soube-se esta semana, passou a ser o álbum mais ouvido de sempre em dia de estreia na alfândega portuguesa das plataformas digitais, superando o máximo de Afro Fado de Slow J, no final do ano passado, que, por sua vez, já tinha batido o recorde de Cor D’Água, de T-Rex, de início de 2023, até então na posse de…Slow J com o já distante You Are Forgiven de 2019. Seria interessante ter acesso a estes números para medir o pulso à real expressão da música na vida das pessoas mas não restam dúvidas de que estamos perante democracia em forma de música, se atendermos aos precedentes socioeconómicos e geográficos.
Há uns anos, o que hoje é uma foto de família a cores já era um negativo do submundo. Dillaz e Ivandro são muito diferentes entre si, mas têm algo decisivo em comum. Frequentaram a mesma escola de rua. O primeiro na Madorna, bairro emparedado entre a Parede e S. Domingos de Rana, em Cascais - concelho onde não há só moradias com piscina - e de onde também é natural Piruka. Ivandro, nascido em Benguela, em Angola, mudou-se para Algueirão-Mem Martins com três anos. Foi lá, numa das zonas de maior densidade populacional do país, que fez parte dos Expolitus, colectivo embrionário dos Instinto 26, dos quais faz parte Julinho KSD. Do seu computador pessoal, rebentaram singles como Sentimento Safari, Vivi Good e Hoji en Sá Ta Vivi, que puseram o rap criolo no mapa nacional.
“Seja bem-vindo à sua nova realidade/Vais receber tudo que tu procuraste/Vais perceber aquilo que começaste/Estas são as condições que tu proporcionaste”, declara agora Ivandro em Passado, a segunda canção de Trovador. Não custa acreditar que esta e outras histórias são autobiográficas, mesmo quando embelezadas para escrita. O reconhecimento das dificuldades não é negação do sonho. As utopias são imprescindíveis, quanto mais para quem se embrulha em cobertores para não detonar a conta da electricidade. A música é um dos aquecedores de uma geração que cresceu consciente das dívidas a ambicionar a liquidez. Por isso, os ouvimos tanto falar das conquistas pessoais em nome de famílias de sangue ou de ringue, e de um conforto que desejam ser colectivo de comunidade.
Tanto em Ivandro como Dillaz o chão está debaixo dos pés mas o céu está diante dos olhos. É um “triunfo” inspirador para quem vê neles exemplo de mobilidade social pop (de popularidade) e é um sinal vitalidade de uma indústria que tem sabido potenciar o talento caçado em bruto nas plataformas de streaming - porque uma coisa é ter números, e hoje não é incomum encontrar juniores com hordas de seguidores e milhares de visualizaçōes no YouTube ou no TikTok, outra é filtrar os números e detectar destreza na ponta dos dedos ou magia na ponta da língua.
Há que tirar uma ilação impopular: a este grau, e estamos a falar das duas casas editoriais mais influentes (Sony no caso de Dillaz e Universal no caso de Ivandro, que editou alguns dos primeiros singles ainda na Sony), há elogios para distribuir. Há visão do imediato e do que fica para além do que passa. Há acima de tudo consciência de que os resultados são fruto de uma estratégia e a compreensão de que na complexidade e variabilidade de factores, todos os elos da cadeia são importantes. Qualquer deslize pode ser fatal. Nos últimos anos, a indústria recuperou algum do tempo perdido a renegar esta(s) música(s) rejeitadas pelos padrōes de aceitação do Séc. XX e os frutos estão a ser colhidos.
A indústria continua a ser um intermediário fulcral com poder de influenciar gostos e comportamentos. Quando o trabalho é bem feito, como acontece com estes e outros casos, e têm sido vários nos últimos anos, faz diferença mas tal só é possível porque de um lado há música que fala verdade e do outro há quem precise desses refrōes para colar nos auriculares e ver-se ao telemóvel através das cançōes. Um pouco de memória ajuda a reavivar-nos que a febre da música portuguesa já aconteceu em períodos do pós-25 de abril como o boom do rock, no início dos anos 80, ou no boom da indústria nos anos 90 quando Rui Veloso, GNR, Madredeus, Pedro Abrunhosa e Delfins foram campeões de vendas, os GNR esgotaram Alvalade e as Antas, e manifestaçōes como o Portugal Ao Vivo expunham a música portuguesa como um bem essencial de consumo e debate.
A grande diferença hoje é de escala. Acontece não com um ou dois nomes, mas vários. E de diferentes códigos postais. As salas esgotadas verificam um compromisso com o público que os números nem sempre atestam. A música produzida em Portugal é um retrato da nação. Com todos os seus contrastes e desigualdades, mas também conquistas. E isso nem sequer é um exclusivo dos grandes pontas-de-lança das plataformas. Nem tudo se explica pelas métricas mas elas ajudam a entender algumas coisa. No ano passado, 42% da música ouvida em Portugal no Spotify era portuguesa. Bastante acima da quota de 30% de rádio. Sextas-feiras como a anterior só contribuem para que o número continue a crescer. E, só neste início de ano, álbuns como os de Silly, Cara d’Espelho, Tiago Sousa, Club Makumba, Mura e Stereossauro, Ricardo Toscano e Gabriel Ferrandini, Silveiira, DJ Kolt ou Carolina Miragaia, são o salto em comprimento que a altura nem sempre deixa espreitar. É o país que temos.