Tão triste a notícia da partida de Sara Tavares com apenas 45 anos, como bonitas estão a ser as homenagens. E isso só é possível quando o testemunho deixado é de bondade, carinho e partilha. Sara Tavares chamou a música mas nos últimos anos foram outros a chamar por ela, de Slow J a Dino D’Santiago, Carlão, Branko, Kalaf, Paulo Flores, Moullinex, músicos como Ivo Costa ou João Gomes e produtores como Berlok. A galeria de tributos é muito extensa e vem de quase todos os quadrantes. A morte é apaziguadora, mas a unanimidade e transversalidade não deixam de ser impressionantes na época do eucalipto. Só podia ser alguém especial mas nem sempre foi vista assim.
Nos noticiários, Sara Tavares continuava a ser a voz triunfal da Chuva de Estrelas, quando interpretou One Moment In Time, de Whitney Houston, de Chamar a Música, vencedora do Festival da Canção numa noite de açucena em 1994, e representante portuguesa na Eurovisão, onde obteve um oitavo lugar muito acima da média para a época.
Aos 15 anos, Sara Tavares era uma figura conhecida de Bragança a Sagres, por algo que logo percebeu não ser e de que se foi afastando. Entre as muitas coisas bonitas ditas e escritas, há algumas reflexōes a fazer e que, tal como o legado fundamental na descolonização da música portuguesa, não só ajudam a compreendê-la como podem servir de lição para o futuro. Podia ter seguido o caminho mais curto, rápido e seguro mas optou por fechar essa(s) porta(s) e abrir janelas onde nem paredes havia.
Muito haveria a dizer sobre os concursos - Chuva de Estrelas em 1993 como o The Voice em 2023 - mas podemos começar por aqui. São programas de televisão e não de música. Vivem em função de audiências e não da projecção de talento. E apesar de hoje haver uma indústria montada sobre estes formatos, continua a ser verdade que para cada cem candidatos, se houver um a singrar por ano (Sara Tavares e João Pedro Pais nos anos 90, Diogo Piçarra, Fernando Daniel e Luís Trigacheiro nos últimos dez) já é bastante.
Os concursos de karaoke são um pouco como as startups. Para cada Uber, Glovo ou Spotify bem sucedida, há centenas que ficam pelo caminho. E que se sentem falhadas aos olhos do mercado e dos investidores. Tal como os aspirantes a cantores em relação à indústria, sem que ninguém lhes tenha advertido que nem o resultado nesse(s) concurso(s) é uma calculadora de talento, nem a sua carreira vai ser determinada por uma imitação. Como aliás, demonstram os percursos de alguns antigos concorrentes não-distinguidos como Salvador Sobral ou Ivandro, ou o esquecimento geral de quase todos os vencedores pré-2012, quando Diogo Piçarra venceu o The Voice em pleno apogeu One Direction/Simon Cowell. É facílimo vender uma ilusão, é muito difícil para os candidatos (muitos deles ainda com borbulhas na cara) lidar com a decepção. E muitos acabam por desistir, ao ficar retidos na portagem da via rápida para o êxito.
Mas o que é isso de se ser bem sucedido, podemos questionar a partir do exemplo de Sara Tavares? Se o problema nunca foi a popularidade, então qual foi? Justamente, o desencontro entre percepção pública e vontade própria. Quando se revelou ao país, trouxe Whitney Houston no peito e o exemplo corajoso de figuras como Diana Ross ou Tina Turner que lutaram não só para se fazer ouvir, como por todas as mulheres subrepresentadas, discriminadas e violentadas. Só que todas elas representavam afro-americanismo.
Foi no reencontro com as raízes caboverdianas que Sara Tavares se achou. Calma como uma tempestade. Com doçura no trato e desprendimento do meio. Porque há conquistas individuais que só tempo permite serem colectivas. E ela teve essa intuição precoce, com uma enorme autoconsciência das marcas deixadas pelo passado televisivo, mas também de que essa escolha de risco daria frutos.
O país não se tinha esquecido dela. Em 2005, o Millenium BCP escolheu Bom Feeling, do álbum Balancê, editado pela holandesa World Connection, para uma campanha publicitária. Nessa altura, dividia a sua agenda entre Portugal, onde se movimentava num circuito médio, com alguma antena nas rádios e atenção moderada da imprensa e televisão, e o centro da europa onde era assídua de salas e festivais da chamada World Music. A questão nunca foi de conhecimento mas sim de reconhecimento da sua importância para além da ubiquidade televisiva do início de carreira.
Em Portugal, o espaço da lusofonia habitava entre o exotismo e o preconceito. Entre a partida de consagrados como Cesária Évora ou Bana, o empenho de alguém como Tito Paris, as falsas concepçōes populares sobre Bonga e a chegada de uma nova geração afro-portuguesa, Sara Tavares desempenhou um papel pivot determinante para a chegada de figuras como Mayra Andrade ou, muito mais tarde, de Dino D’Santiago - o álbum Eva, de 2013, esta semana revisitado no Teatro Tivoli BBVA, passou completamente despercebido quando saiu há dez anos.
Sara Tavares não tinha perfil para mudar a indústria por dentro. Não era sequer alguém que se sentisse confortável com as regras do jogo. Demorou a consolidar o seu espaço autoral - algo que só sucedeu do citado Balancé. E desde 2009 que sabia ter um tumor no cérebro, facto que não pode ser dissociado de alguma irregularidade editorial e alheamento mediático, que nunca usou para chamar a atenção. Até por isso, foi de uma coragem enorme na travessia, a escavar o caminho para os outros, quase sempre em voz baixa, mas sem medo de pôr o dedo na ferida quando o tema era a lusofonia ou a desigualdade de género.
Foi sempre a mesma Sara Tavares, em voo atento de andorinha, só que diferente nos últimos anos de vida. Se durante anos lutou por um espaço inexistente, abdicando do protagonismo para, lá está, chamar outra música, agora era o tempo da geração por quem se bateu a reconhecer como obreira de uma utopia tornada possível. Ainda não é um banquete, mas já há comida na mesa. E não por acaso, Paulo Flores chamava-lhe “a mãe desta Lisboa Crioula, que pôs todas as raças a beijar na boca”, em texto publicado no Blitz. Essa música, que abriga culturas, descendências, raízes e ligaçōes, é portuguesa do Portugal que se quer.
A vida tirou-lhe quase tudo o que lhe deu. E ainda assim, Sara deixou-nos a janela do sorriso aberta.
Deixa de complicação,
Deixa de confusão,
Liberta a alma dessa prisão,
Deixa-te guiar pelo coração.
Deixa de complicação
Deixa de confusão
Liberta a alma dessa prisão
Deixa-te guiar pelo coração
Excerto da letra de Bom Feeling