A dias de completar 70 anos (28 de fevereiro), Rui Reininho ainda não conta o tempo a partir do fim. As 20000 Éguas Submarinas encontram-se com as sereias sensuais de Neptuno no porto de Matosinhos e sai um disco novo. Um 45 RPM gravado com a Orquestra Jazz de Matosinhos no Centro de Alto Rendimento Artístico (CARA), casa da OJM.
É uma tríade insuperável. O jazz, o vinil e o vinho. Em todos sentidos: visual, auditivo e no palato. O espectáculo de Reininho com a OMJ foi apresentado na Casa da Música, no Porto, e no Jazz na Real Vinícola, em Matosinhos, em 2021. Casa cheia em ambos os serões para ouvir a submersão jazzística das canções do romance aquático desse ano, o segundo sem o corpo de intervenção da GNR que desde 1981 o escoltou pela psicopátria.
Livre, desassombrado, sorridente, eis o novo Rui Reininho de sempre a falar de amor, de gostar e sentir. Porque “há coisas que prometo a mim e só a mim é que não cumpro”.
Podia fazer uma entrevista só com citaçōes tuas. Joga-se pelo prazer de jogar?
Sim. Neste caso, entro em campo com um ano de atraso. Este disco era para ter saído em 2024. Ter trabalhado com uma instituição que é uma Orquestra obriga a passar por um processo moroso, mas o princípio de prazer é grande, de facto. Fui desafiado pela Orquestra Jazz de Matosinhos a fazer uma versão orquestral do 20.000 Éguas Submarinas. Fizemos um espectáculo na Casa da Música que resultou surpreendentemente bem. Tocámos o disco na íntegra sem interrupçōes e sem palminhas. Lembro-me de ter feito essa referência a meio: ‘se querem bater palmas, é agora’. Na maneira como as pessoas interagem connosco, parece que há sempre uma necessidade de bater palmas. Confesso a minha inveja dos entendidos de música séria - que não gosto de lhe chamar clássica - que sabem que entre os andamentos não se bate palmas e na ópera também não. Embora tenha visto há uns anos no Elixir do Amor, do Donizeti, a aria ser repetida. O pessoal bate imensas palmas e o maestro faz sinal. A aria é a parte orgasmática. Neste disco, as palmas são mais uma carícia do que um orgasmo. A relação com aquela gente toda da orquestra, se por um lado foi um jogo muito prazenteiro, causou-me muito sofrimento e angústia. Especialmente os ensaios. Saía quase com um esgotamento. Não posso falhar um compasso ali. Todo aquele arleking em que salto, venho atrás e vou à frente, com a Orquestra eles estranham, especialmente o maestro, mas aprendi o prazer de ser dirigido. É fantástico para um rebelde sem calças como eu. Acho que eles também tiveram o prazer de jogar este jogo que nós inventamos. Ajudaram imenso. É um sonho para alguém como eu. Não sou um cantor de jazz.
As cançōes apresentadas com a OJM estavam atracadas no porto do 20.000 Éguas Submarinas. Fechou-se um ciclo alquímico iniciado em 77 no disco com a Anar Band?
Sim, sabes que curiosamente fui contactado para recriar esse momento, a propósito de uma tese vinda de Coimbra sobre o grande [Jorge Lima] Barreto. [O disco] fará 50 anos em 2027. Seria engraçado. Tinha 22 anos. Aquilo surpreendentemente não metia uma palavra. Curiosamente, mostrei [a obra de poemas] Sífilis Versus Bílitis ao Jorge. ‘Não sabia que escrevias’, respondeu-me. Ele escrevia bastante. Eu era ghostwriter dele. Trabalhava em traduçōes, mas ele é que tinha as encomendas. Como não era forte em línguas, fiz trabalhos assinados por ele. Aquelas ilegalidades académicas que hoje seriam copy/paste. Ele assinou traduçōes minhas de coisas marxistas em espanhol e francês, especialmente. Agora, é uma questão de subsídios. Houve oportunidade de fazer isso já este ano, mas estas questōes não são de graça. Os académicos acham que é só uma questão de juntar pessoas mas é preciso ensaiar, arranjar um conceito, um [sintetizador analógico] ARP Odyssey para disparar…
Estás cercado por água em canções como a Fartos do Mar e a Aqua Regia. Isto és tu a entrar em estado líquido?
Sim, estou sempre rodeado. Vivo a 300 metros em linha recta do mar. Tenho aqui um farol em frente. Isto remete para uma outra canção, o Fartos do Mar. O mar às vezes irrita porque é uma carga muito forte e intensa. É um sítio de tempestades. Do outro lado, tenho campos verdíssimos. É um pouco a nossa Irlanda. A Costa da Morte tem temporais constantes. Dar uma volta com o cão à noite é um bocado rude. Somos todos gunas.
Gunas são como divãs?
Como divas!
O mar não te apazigua?
Tem sido, e é um energético fantástico, mas o mar é muito intenso. Um amante insaciável que exige sempre reacção. A partir de Espinho, há uma separação. Torna-se costa brava. Aqui já é Atlântico norte. É muito bonito. Uma das últimas coisas que escrevi foi para a Banda Filarmónica de Matosinhos/Leça, da qual sou presidente. Também escrevi uma coisa chamada Dois Titãs. Há o titã de Leça e o de Matosinhos. São os grandes guindastes. Isto para te enquadrar no local. A Orquestra de Matosinhos já tem uma discografia interessante e internacional.
Sentes-te bem na arte popular e nas vanguardas.
Sim. Há quem pense que são irreconciliáveis, como o pessoal das transvanguardas. Sem ofensa, porque é um realizador fantástico, mas aquela cara de Pedro Costa. Como o moço dos Radiohead, sempre mal-disposto. Aliás, estive a ver coisas antigas e um dos comentários aos meus primeiros aparecimentos, no Rock Rendez-Vous quando substituí o Alexandre [Soares] ao microfone, foi que era muito sorridente e ria. As pessoas estão à espera de um ar tenso. Brutal, como se diz agora. Mas há uns anos descobri que gente que gosto como o John McLaughlin, que cheguei a entrever entre palcos e camarins, são muito abertos, simpáticos e bem-dispostos. Exemplo disso, o muito cá de casa David Jones (David Bowie), que em entrevistas está sempre a rir e a brincar. Não se leva demasiado a sério. Vemos as fotografias e ele está agarrado a Mercurys e McCartneys. Toda a gente dizia que ele era muito bem-disposto com os músicos. Recentemente, li uma coisa sobre a concepção do Blackstar. Ele já doente, e os músicos sem saber como o tratar. Ele levava-lhes uns cafés e uns pastéis. Um new yorker.
Ele morre a rir.
Sim, pelo menos no vídeo. Curiosamente, o Morremos a Rir, do meu [álbum] solo tem a participação do amigo Zé Pedro.
A unanimidade para ti é um embaraço?
Sim, é um embaraço. Posso dizer que é um prazer estar ligado a uma editora como a Omnichord (responsável pela edição de Rui Reininho e Orquestra Jazz de Matosinhos). No ano passado, o espectáculo que mais gostei de ver foi o da Surma, que esteve ligada à Omnichord. Achei muito bom. Recentemente, também fui contactado pelo pessoal dos First Breath After Coma, que é uma das minhas bandas misteriosas preferidas. Acho que Leiria é uma little Gibraltar. É como se tivesses um posto à volta do Castelo em que toda a gente fala inglês. Desde o David Boy Fon-se-ca (faz sotaque inglês).
O Bowie foi um caso de metamorfose constante e frenesim entre personagens e paixōes estéticas. Quando te ouves, tens muitas vozes a falar?
Sim, sim. Aliás, em março tenho uma consulta de psiquiatria mas é por outras razōes. É para aceder a um tratamento. Pertenço aquela escola pós-freudiana. Sou um pouco céptico. Conheci uma psicóloga e uma psiquiatra, e elas disseram-me que tinha de fazer o meu ramadinho. ‘Isto não pode ser de maneira nenhuma misturado com álcool’. As pessoas duvidam da minha capacidade. Com o cigarro, foi assim. A certa altura, disse: ‘este é o meu último cigarro’. Não é que estivesse a arder no pelotão de fuzilamento, mas também foi assim com os copofones e as bebidas brancas. Nunca mais. Tenho essa força mas as pessoas duvidam. Meto na cabeça, pode custar angústia e insónia, mas faz-se esse percurso. Depois, tem que se ir ao balão e está tudo a zero. ‘Sôtor, eu disse-lhe que ia fazer e fiz’. Isto para dizer que há coisas que prometo a mim e só a mim é que não cumpro. Agora, o que prometo às outras pessoas é garantido.
Resolve-se com chá e café?
Com chá, sim. Café não, leva aos vícios todos. A aguardente, puxa-se o cigarro…Comigo, não dá. E depois tenho uma irritação muito grande com o pessoal do café. São os verdadeiros drogádos nacionais. Conheço muita gente que largou a heroa, as cocas, o pastilhame…agora tomar café, não conseguem. Não entendo aquela coisa do eu se não tomo café de manhã, não consigo funcionar. A senhora é uma drogáda. E depois é o desprezo com que se é olhado. Chego ao balcão. (imita som de uma máquina de café) ‘É café? Não’. Viram-me costas para atender os do café. Uma máfia do café.
Tenho esse problema com a cerveja. Como não gosto, sou cevado-excluído.
Sim, se não és o pessoal das minis não pertences ao convívio.
Estive num concerto dos GNR no final de 2023 em Almada e há muito tempo que não vos via tão vivos em palco. Concordas?
É surpreendente estarmos a fazer tantos espectáculos. Passámos dos 40. 44 no outro ano e 46 este. Parece um jogo de andebol muito renhido. A certa altura, percebi que não podia levar isto com ar cansado. Depois, com outros convites, com Palmas (Jorge Palma) e Éguas fazia mais de 70 por ano. Estou muito velhinho. A certa altura, entrei em velocidade de cruzeiro. Sei que os meus capangas gostam de fazer aquilo. O Tóli tem aquela cara cerrada - o moço mais embirrento do rock nacional - mas é o mais simpático e divertido na intimidade. Funcionamos como os Irmãos Marx. Há o mudo, o Grouxo…Essencialmente, é um momento de comédia. Para recriar aquelas cançōes vezes sem conta, é preciso encará-las de novo. Senão, é como aquelas peças de teatro como A Ratoeira que esteve 30 ou 40 anos na West End. Se não for levado com jovialidade, torna-se insuportável. Só há mais silêncio nas viagens. É a única coisa que me cansa muito. E não temos as estradas antigas. Antes, para irmos a Bragança despedíamo-nos da família. Não sei se foi em Lagos ou Lagoa, mas chegámos à hora do espectáculo. Punha lápis a correr assim à Placebo…Íamos ao Triângulo das Bermudas, como chamava aquela zona de Viseu, e era só gajos de kispo a olhar para nós. ‘São todos paneleiros de certeza’. Aquela coisa muito agressiva. Depois, começaram os polos universitários. Apareceram as moças, menos violência e menos mosh entre finalistas.
Os futebolistas dizem que o mais difícil não é o jogo, é a recuperação.
É, exactamente! O mais difícil é recuperar. Em tudo, até no amorrrrrrrrr.
A Pronúncia da Norte foi uma banda sonora inevitável das exéquias de Pinto da Costa. Nas reacçōes à morte, e salvo algumas excepçōes, a contradição é camuflada, como se fosse possível desinfectá-la com Sonasol.
Cometo uma inconfidência. Fui lá vê-lo à Igreja das Antas. Conheço o Alexandre [filho] de outras nights e dei-lhe um abraço. Em relação à minha morte, não gostava que fosse assim. Nós fomos condecorados em simultâneo em Vila Nova de Gaia. Quando cheguei, ele já estava. ‘Conhece este senhor? Só de oubido”. Tinha um sentido de humor fantástico. Ficámos lado a lado e ele disse-me: ‘sabe, pensava que quem ia ser condecorado era o meu irmão’. Era o homem a quem chamavam Doutor Morte. Parecia um daqueles médicos das 7 Bolas de Cristal do Tintim. Fui com ele a Manchester ver o Unite a convite do JN. Um resultado desastroso de 4-0. Fizemos uma série de espectáculos dos Dragōes de Ouro. Tinha um espírito que não se encontra nos rivais da capital. Não me vejo a entrar numa BêTêBê ou numa Sporting TêBê. São apartheids. Ele levou todos os artistas. Toda esta cosa nostra do Norte, conheço bem e gosto das subtilezas. Da maneira como se burlam os falsos moralistas. O [Fernando] Póvoas andou comigo no Liceu Alexandre Herculano. Também tive as minhas épocas de ir para a night, para o Gallery e para o Elefante Branco, com o grande Eusébio. Tinha um compagnon de route que me dizia: [imita voz rouca familiar da televisão] “grande, aqui tens gajas a custo zero”. São homens à antiga. Era um festim. É fantástico poder viver estes mundos paralelos.
Foto de Alexandre Delmar
Hoje há menos tolerância para compreender as entrelinhas e ler além da literalidade?
Sim, sim. Ainda recentemente, houve uma insinuação porque disse a palavra “preto”. Um músico ser racista é o maior contrassenso. É impossível na maneira como nos relacionamos com os manos na música, e em parte no desporto. Digo preto, como digo loiro ou loira. Faz parte de localizar a pessoa. Sem moralizar. Cada vez me procuro livrar mais da moral judaico-cristã. Isto voltando ao jazz. Aliás, tenho já uma canção feita, que será uma das próximas, que se chama Putajazz. Gostava de fazer um disco Parental Advisory.
As pessoas viravam a capa do És Muita Linda, dos Ena Pá 2000.
Sim, o meu vizinho Semen Up, dos Presuntos Implicados, tinha um máxi-single que era o Lo Estas Haciendo muy Bien. A capa era um casalinho no carro.
O que é um dia na vida de Rui Reininho?
Coitadinho, estou muito velhinho (ri-se). Levantar, fazer 15/17 flexōes ao abrir a janela. Sempre números ímpares. Falar aqui com o dia. Hoje estava um nevoeiro incrível, agora está sol. (Toca um gongo e depois outro) É a minha sala de chuto. Evitar a limpeza. A casa está muito desordenada mas habituei-me assim. Depois, dar ali uma voltinha. Agora de manhã desligo estes infernos (aponta para o telemóvel) mais ou menos até ao meio-dia. As pessoas pensam que me levantam ao meio-dia mas não. Hoje à tarde, já vou ter uma prova do meu vinil. É engraçado porque é um 45 RPM. Quando tenho ensaios dos GNR, é muito perto em Matosinhos. Vou de bicicleta. Estou quatro, cinco, seis dias sem conduzir. E ouvir uma música à noite. Agora, estou a deitar-me mais tarde à noite outra vez. Tentar ver um filme por dia mas esta coisas dos Primes e da Disney é uma desilusão. Ainda ontem estava desesperado porque não tenho um filme de jeito para ver. Quero lá saber dos Óscares. Vejo a SportTV. Às vezes com paciência para ver os rivais. Não gosto nada do futebol actual, e não é por causa da posição do FêQuêPê. Jogo diariamente com a Sily. Ela está muito sossegada. Chama a cadela, desaparece da câmara e volta acompanhado da fiel amiga. Há bom tempo no canil.
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Que maravilha de entrevista. Não fui sempre fã, outras vezes sim. No entanto sempre o entendi muito bem (tlvz pq sempre lhe vi alguns paralelismos com o meu pai, que se fez crescido nos mesmos circulos do Porto). E qd fala do norte, quando diz como entende a cosa nostra do norte e as suas subtilezas, fala-me ao e do coração.
E até refere o grande Doutor Pinto da Costa (o irmão do que agr morreu), o tal Doutor Morte (pq era uma referência da medicina legal no país), um dos melhores professores que tive o enorme privilégio de ter na academia.
Óptima entrevista