Foto: Vanessa Rosa
Sem grande alarido, a Biruta está na linha da frente de alguma da música portuguesa mais desafiante e genuína das últimas estações. Álbuns de zé menos, Riça, redoma e Mona Linda não depositam comissões milionárias mas valem ouro. Se pagam contas é outra questão mas sobre a sustentabilidade de uma independente na selva das métricas fala-nos Rui Correia, o obreiro de uma editora que chega a dez redondos anos cheia de vitalidade e sequiosa de desconhecido.
Caso tenham entrado nesta carruagem nos últimos tempos, do catálogo fazem parte álbuns de Keso e David Bruno, quando ainda assinava db, mas este domingo é tempo de olhar em diante, encher o peito e celebrar o aniversário da Biruta no Socorro, no Porto.
A Biruta nasceu há dez anos num contexto de expansão do digital. Em 2024, como é ser uma pequena editora independente num ecossistema tão congestionado?
É sobretudo um acto de amor. Há várias dificuldades em manter uma editora independente, ainda para mais comunicando e vendendo num mercado tão pequeno como é o português.
Começo pelo digital e esse é um problema global: as receitas geradas são muito baixas para artistas que têm dezenas ou até centenas de milhares de streams anualmente. As atualizações nas regras de plataformas para 2024, como no caso do Spotify (falo por exemplo dos 1000 plays anuais por faixa para que possam gerar royalties), a meu ver só prejudicam ainda mais os artistas independentes e prevejo que torne ainda mais difícil o acesso a distribuidoras. Basta pensar: no primeiro ano de lançamento de um álbum é quando há por norma um maior número de streams. Até aí tudo bem. Quando o público perde o interesse nesse disco, muitas faixas deixam de conseguir gerar 1000 plays anuais, por consequência não geram receitas. As distribuidoras têm objetivos definidos, os artistas não cumprindo com x números, facilmente são dispensados. Ou seja, são removidos das plataformas. Podia falar de mais tópicos, mas fico-me por aqui. É urgente criar alternativas digitais que favoreçam uma maior remuneração para os artistas e que fomentem um apoio mais direto dos fãs aos artistas. A verdadeira alternativa continua a ser a venda de edições físicas, merchandise e ir a concertos. É aí que os artistas mais facilmente recebem uma fatia justa pela música que fazem. Há também um trabalho a fazer-se na sociedade em geral: continuamos a não valorizar a cultura. Tem de haver uma maior união no meio, maior sentido de comunidade, maior transparência e regulamentação em aspetos como o agenciamento. Talvez assim possam florescer mais projetos artísticos sustentáveis e sem necessidade de apoios e subsídios.
A editora é sustentável? Gera receitas para pagar salários ou é “apenas” um acto de amor?
Não é sustentável e como referi, sim, é um acto de amor. Amor pela nova música que se faz e que é alimentada por um trabalho full-time, muito foco e boa vontade. Mas com maior capacidade e tempo de trabalho pode vir a tornar-se um projeto sustentável. Conto neste momento com mais 2 elementos na estrutura, a Diana Queirós e o Eduardo Pacheco, que entraram para fortalecer aquilo que a editora pode fazer, seja em termos de propostas editoriais como na circulação de artistas, a nível de booking, por exemplo. Também entraram nisto com muito amor à camisola, porque entendem à partida as dificuldades que existem e como é necessário um esforço contínuo para promover os artistas.
Concordas que para novos e emergentes artistas, está mais difícil sobressair? Os factores exteriores à música ganharam um peso maior? Como pode uma independente dar a volta ao texto?
Sim quanto à primeira questão. Mas porque, primeiro, há cada vez mais projetos interessantes a surgirem. Focando-me em Portugal, de novo, o meio é muito pequeno e não tem capacidade de absorver tanto talento em tão pouco tempo; segundo, porque os meios de promoção musical têm vindo a decair continuamente, por variadas razões. Mas para este tópico convido as pessoas a lerem textos teus, onde encontrarão maior profundidade sobre o tema; terceiro, num contexto de circulação de artistas: somos um país conhecido por ter centenas de festivais anualmente, mas também temos o problema histórico de irem quase sempre tocar os mesmos nomes e ser difícil de furar. Fatores exteriores à música sempre tiveram um grande peso a meu ver. Não vejo que esteja pior. Vivemos num mundo capitalista: em vez de se avaliar a qualidade da música, a importância da mensagem ou o verdadeiro sentido de novidade, a relevância dos artistas é remetida para número de fãs, número de plays e a perpetuação dum "conforto" musical. Com isto querendo dizer que a música que mais se ouve é por norma bastante standardizada e "marketizada" e tudo o que é novo, por exemplo, no sentido estético, é quase sempre rejeitado à nascença por ser um corpo estranho.
Uma independente dá a volta ao texto, criando um sentido de comunidade, mantendo uma consistência na estética editorial e na ética de trabalho. Com muito esforço e dedicação à mistura.
A primeira edição da Biruta foi um disco de hip-hop dos Ollgoody’s. O hip-hop esteve sempre presente, mas não em exclusividade. Como observas essa relação, tendo em conta álbuns recentes do Riça e das Redoma. Pode considerar-se um meio, no sentido de processo?
A aproximação ao hip-hop aconteceu de uma forma natural. O meu irmão, Edgar, é parte integrante junto com o Hugo Oliveira do projeto Ollgoody's, além de fazer parte dos Conjunto Corona que iniciou também em 2014 e de muitos outros projetos musicais, como o mais recente dele a solo enquanto MONA LINDA. Há um grande amor a este género, tal como há por outros. A partir do lançamento de Ollgoody's isso permitiu abrir um caminho que levou a outras edições que têm o hip-hop como base. Enquanto editora, apostamos na diferenciação e temos tido a felicidade de trabalhar com alguns artistas que criativamente exploram o género hip-hop, extravasam-no ao conseguir juntá-lo com outras texturas e influências. É natural por isso estarmos associados ao hip-hop, mas não sinto que façamos parte do meio. O nosso foco é na identidade dos músicos e a forma como estes conseguem representar-se musicalmente, conseguindo conjugar elementos criativos vindos do hip-hop, do rock, da eletrónica, ou do que seja. O importante é sentir-se que os músicos são genuínos nessa busca criativa.
Todos os nomes ligados à Biruta parecem ter não apenas uma coerência estética mas também ética. Quais são os limites da curadoria?
Fico genuinamente contente por dizeres isso e por saber que há pessoas que sentem isso ao ouvirem o catálogo da Biruta. Isso é muito importante para mim. A curadoria é uma forma de filtrar e conseguir criar uma história. E na Biruta isso pode ser mutável, fruto de gostos pessoais e influenciado claro pelo meio musical em que estamos inseridos. O nosso percurso tem-nos levado para estéticas sonoras com pulsar hip hop, pensando desde o primeiro álbum editado com o Passeio de Ollgoody's, passando pelo David Bruno e o Keso, até a um momento mais recente com os lançamentos de zé menos, redoma ou Riça. Aconteceu de editar estes projetos porque demonstraram uma linguagem musical muito própria, ou seja, a questão de género musical é secundária. O lançamento agora do ben yosei pode representar um novo capítulo da editora que veicule melhor essa ideia de que somos livres de géneros e que escutamos a direção que vários artistas estão a tomar de uma forma genuína. Os casos do Riça e do ben yosei são um excelente caso de fazerem parte de algo maior que está a acontecer: uma nova exploração do cânone tradicional português alinhado com as vivências do presente. Mas definitivamente, muita da música que temos editado tem ido para uma extensão emocional que explora mais a melancolia, a intimidade e a catarse. Deve-se a um gosto pessoal por música que transmite essas emoções. E as editoras de referência para mim sempre carregaram uma estética muito vincada, dando exemplos como a 4AD que é conhecida pela sua corrente mais dreamy.
Falando de ética: fazes-me pensar na forma de trabalho e como promovemos os nossos lançamentos. Damos o maior cuidado possível para conseguir veicular o que cada projeto representa quando é editado. Também tenho tentado ligar os lançamentos que fazemos a causas sociais, como aconteceu com os lançamentos do EP parte das redoma ou com o álbum leonardo de MONA LINDA, em que parte do lucro reverteu para a associação Encontrar+se, que promove a saúde mental e privilegia o acesso a tratamentos nessa área. No pós-pandemia senti que fazia sentido contribuir de alguma forma para essa causa. O meio musical é muito pequeno, mas fazemos parte do mundo. Mesmo que sejamos uma gota no oceano, acho que devemos "dar e receber" por assim dizer e promover causas que são positivas para todos. Enalteço nesse sentido o que a editora Omnichord de Leiria tem feito em projetos para as escolas ou com 5ª Punkada no sentido de conectar a música à sociedade e desenvolver projetos de integração.
A editora teve dois momentos de pausa editorial entre 2016 e 2019, e depois até 2022. Porquê?
Simples. E está relacionado em parte por a Biruta não ser um projeto sustentável, que até há bem pouco tempo dependeu apenas da minha disponibilidade temporal e financeira. Entre 2016 e 2019 coincidiu com um período em que me foquei a terminar o meu mestrado em Engenharia Eletrotécnica e consequente partida para a Escócia onde vivi cerca de ano e meio. o chão do parque do zé menos foi um disco que saiu quando ainda estava emigrado, mas que foi possível fazê-lo à distância pelo grande empenho e comunicação que existiu entre mim e o Zé para que isto se concretizasse. Ficarei eternamente grato ao Zé por sempre ter mantido a vontade de trabalharmos juntos e de querer editar pela Biruta. Depois voltei a Portugal, ainda em plena pandemia, e durante 1 ano foquei-me num novo projeto: uma loja de discos que abri juntamente com o Fausto Casais, a Music and Riots, uma marca criada por ele e que originalmente surgiu enquanto revista online.
O reconhecimento de nomes como o David Bruno e o Keso, que editaram pela Biruta, representa a editora enquanto rampa de lançamento? Tem outro valor além desse?
Concordo que foram álbuns de maior notoriedade para a Biruta. Os álbuns 4400 OG" do David Bruno (nessa altura dB) e o KSX2016 do Keso tiveram naturalmente um maior impacto, porque já não eram artistas emergentes, a meu ver. Já tinham um público mais sólido e atento, porque já tinham editado outros discos e já existia um "burburinho" em torno deles. Sou-lhes muito grato por nesse momento termos trabalhado juntos. Esses lançamentos possibilitaram que mais pessoas estivessem atentas à editora e por sua vez, que outros artistas se mostrassem interessados em trabalhar connosco. Foi por essa altura que o David Bruno sugeriu ao Kap (agora zé menos) falar comigo para editar o álbum Do Nada Nasce Tudo. Desde daí desenvolveu-se uma grande relação que teve um grande impacto para a editora: o Zé tornou-se uma peça-chave pelos seus lançamentos mas também no seu contributo em estúdio para os projetos das redoma, de MONA LINDA e do Riça. Na verdade até com ben yosei, indiretamente. Fui ouvir o lagrimento depois dele ter partilhado o álbum numa story. O Zé é gajo de bom gosto, bastou essa partilha para eu ir ouvir o ben e em 15 segundos perceber que tínhamos de editar uma versão física do álbum dele e que vai estar agora disponível pela primeira vez no evento dos 10 anos da Biruta na Socorro, dia 4 de fevereiro.
Achas que estamos num momento produtivo da música portuguesa, pensando nas edições mais recentes de Riça, Ben Yosei, Mona Linda e Redoma, ou mais atrás do Chão do Parque do Zé Menos?
Completamente! Vejo artistas emergentes com maturidade criativa e faz-se música muito diversa, sem barreiras entre géneros. Sinto um certo rompimento com o status quo, o que significa mais artistas quererem assumir-se como independentes. Isso é super entusiasmante. O meu desejo é conseguir ter mais condições para poder editar com maior frequência, porque têm surgido projetos muito interessantes.
O que está na folha em branco da Biruta para os próximos anos? Que novidades prometem?
Mais lançamentos são garantidos! A caminho está um novo EP do zé menos totalmente produzido pelo Pedro, o Mau; vamos lançar em breve o primeiro single dum novo registo do projeto Rafeiro, que junta o Stray e o Raez; as redoma estão a trabalhar também num novo registo; e algumas propostas de artistas estão em aberto para editarem pela Biruta. Estamos também a colaborar com mais artistas apenas a nível de distribuição digital e iremos explorar mais o terreno de booking de artistas. Espero também que em próximos anos possamos ter condições de elaborar mais eventos como o que iremos fazer este domingo, juntando artistas da editora ou fora dela, tentando criar um maior sentido de comunidade.
Em que vai consistir a festa de aniversário no Socorro?
A festa de aniversário na Socorro marca um momento específico da editora, é uma fotografia onde teremos 4 concertos com os artistas ativos da Biruta - ben yosei, redoma, Riça e zé menos -, onde os novos elementos da estrutura Biruta aparecem a trabalhar junto comigo e onde pela primeira vez teremos merch da editora à venda com t-shirts e mais algumas surpresas. Um momento para reforçar o talento dos nossos artistas, conviver com o público e mostrar o que a Biruta representa e pode representar para o futuro.