Ao centro, está Perry Farrell. Cerra os dentes com a face esgazeada. Encara o público do Pavilhão Leader Bank em Boston como um touro enraivecido. A expressão de desconforto e angústia enquanto Mountain Song perfura o canal auditivo é incorrigível. Quando se vira para Dave Navarro, enquanto este soleniza o ruído no seu canto, a jaula cede. Farrell descarrega toda a fúria no guitarrista. O vulcão sonoro implode. Percebe-se que a cólera canalizada no braço direito não é apenas dirigida a Navarro. É uma auto-catarse, um reconhecimento próprio de impotência e do fracasso da reunião dos Jane’s Addiction originais (Farrell, Navarro, Stephen Perkins e Eric Avery), autores do vudu maléfico de Nothing’s Shocking (1988) e sobretudo Ritual de Lo Habitual (1990) - álbuns-charneira da “nação alternativa” e precedentes quer de um certo excesso permitido nos anos 90, quer da raiva de Rage Against The Machine ou Smashing Pumpkins.
Naquele uppercut falhado está a confissão de um reencontro falhado com tudo para falhar. No ego está o princípio, meio e fim da história. Os dias seguintes contêm tudo o que um reality show pode pedir: Etty Lau Farrell, mulher do vocalista, falou pelo marido logo após o descalabro. Navarro sugeriu o fim da banda. A digressão foi cancelada. Howard Stern desmascarou o novo single, ironicamente titulado de True Love. Farrell pediu desculpas a Navarro e os Jane’s Addiction pediram desculpas às bandas convidadas para as primeiras parte, sobretudo aos “heróis” Love & Rockets para quem abriram em 1987 enquanto disseminavam os primeiros feitiços de surrealidade.
A pergunta não é tanto “onde é que já vimos isto?” mas antes “há quanto tempo não víamos isto?”. A desavença de Farrell com Navarro, a banda, ele mesmo e o mundo é, em si, o regresso a uns anos 90 perigosos e turbulentos. Os Jane’s Addiction sempre foram isso, e por essa razão, todos os casamentos acabaram em divórcio. Expô-lo em público é que nunca poderia resultar em 2024. A proibição foi proibida e o excesso convertido em terapia. Pode parecer que não mas a revolta de Perry Farrell é um acto espontâneo de liberdade, incompatível com os padrōes actuais de leveza. Claro que não é esse o motivo principal da explosão mas uma banda tão perigosa e provocadora não passa no crivo. E nem vale procurar por uma massa de som parecida porque não há. Muito provavelmente, os Jane’s Addiction pereceram. E com eles partiu um som e uma fúria.
Enquanto os Jane’s sucumbiam, a incontinência de Morrissey era respondida por Johnny Marr. “Não ignorei [uma proposta para reunir os Smiths]. Rejeitei-a”. Se as insinuaçōes de Moz estão ao nível da credibilidade e lucidez dos tweets de Kanye West, a reacção de Marr é firme e deixa a garantia de que não haverá reunião dos Smiths. Há quinze anos, tinha sido Morrissey a abandonar o diálogo com o guitarrista para refazer os Smiths, pelo menos por uma noite, após a recepção de uma proposta milionária para encabeçarem Coachella. Moz ainda dizia coisa com coisa e na altura e a rejeição do convite até foi percepcionado como uma vitória da ética sobre a capitalização da nostalgia. Perante as declaraçōes dementes dos últimos anos, não espanta que os papéis se tenham invertido. Defender o património dos Smiths é um acto de bom senso e defesa do bom nome.
Tem-se dito da inevitável reunião dos Oasis que as pazes dos Gallagher vêm abastecer um mercado da saudade cada vez mais robustecido por festivais, que não só capitaliza a nostalgia como age como antítese da novidade e atenua a falta de renovação de nomes catalisadores de multidōes. Ou seja, fortalece a teoria do fim da história, de que tudo na música já foi descoberto e, no caso dos irmãos, de que a música de guitarras é indesmentível enquanto a actualidade pop é opaca, manejada por truques de estúdio e maquilhagem de produtores. A ausência de memória tem destas coisas: os Oasis são transversais e familiares, mas nunca foram unânimes. Nem salvadores de qualquer convento. Pelo contrário, criaram o monstro a alimentar os media ingleses com hormonas mediáticas. Novelas estéreis, rivalidades inconsequentes e não-polémicas nutriram a imagem de rufiōes dos Oasis, quando as cançōes não podiam ser mais reverentes à glória de Beatles, Kinks e The Who.
A tese do vazio de novas referências não tem sentido. De Kendrick Lamar a The Weeknd, Taylor Swift, Billie Eilish, Harry Styles, Dua Lipa, Rosalia, Travis Scott e previsivelmente Chappell Roan, o que não faltam são vozes de alcance planetário com as suas cançōes e declaraçōes públicas - e sim, as redes sociais não só amplificaram o impacto como, pela sua centralidade diária, criaram uma dissociação entre criação artística e declaração pública, como se vivessem em quartos separados da mesma casa. Quando muito, o que há é uma falta de resposta para o público aculturado na genética pop/rock que nem se revê na música do século digital nem acredita no rock actual enquanto organismo vivo e força de juventude - mais ou menos o mesmo que reconhecer as alteraçōes climáticas mas verberar os activistas.
E os Talking Heads que andaram a magicar no caos? A indeferência do processo dos Smiths deixa-os como os últimos moicanos. Serão capazes de resistir à tentação de voltar? Esta semana, foi anunciada a reedição do clássico Talking Heads: 77 com um bombom. Psycho Killer com roupagem folk acústica vestida pelo violino de Arthur Russell. Sabe-se como funciona. Rajadas como reediçōes, catálogos restaurados, contas reactivadas, fotos ou declaraçōes costumam trazer ventos fortes. Será? A agenda dos Talking Heads não tem estado sossegada. Há um ano, a reedição do filme-concerto Stop Making Sense juntou-os pela primeira vez em vinte anos e conteve o azedume de Chris Frantz para com David Byrne. Nessa altura, diziam estar apenas a “saborear o momento” reconhecendo que “os divórcios nunca são fáceis”. Há poucos meses, recebiam a vénia de Miley Cyrus, Paramore e The National em Everyone’s Getting Involved: A Tribute To Talking Heads’ Stop Making Sense. E agora? Parecem estar a testar os próprios limites do coito. O que pesará mais? O livre-arbítrio ou a pressão pública mediada por um cachet astronómico?
Tal como Oasis e Smiths, os Talking Heads transcedem o tempo. Não são dos anos 70 nem dos anos 80. Nem do pós-punk ou do pós-funk. Pertencem a uma história a aguardar por revisitação. Apesar de só terem declarado o óbito em 1991, já se encontravam em hibernação desde 88. E o último concerto dos Talking Heads foi a 6 de fevereiro de1984 na Nova Zelândia. Mais de 40 anos! Se a resposta for afirmativa, talvez seja imprudente esperar mais. Se resistirem, estarão apenas a ser coerentes com o que David Byrne sempre defendeu. Não restam grandes dúvidas que pelo resto da banda, já teriam ressuscitado. Resta saber se a liderança nem sempre aceite com pacifismo de Byrne aceitará destravar a embraiagem mas a independência a da actualidade trouxe-lhes o poder de decidir como bem entendem, sem depender de efeitos retroactivos.