Valerá a pena insistir nas tradicionais retrospectivas de final do ano quando as narrativas tendem a ser individualizadas e a reflectir pontos de vista particulares e cada vez menos assentes num chão comum? Quando uma nova rede social vem dispersar ainda mais informação, o exercício de organizar a informação ainda é útil para alguém? Ou será apenas um dos últimos respaldos de um jornalismo musical asfixiado pela descapitalização do sector e também ele resignado às consequências do algoritmo?
É justamente para tentar dar alguma ordem ao caos que as listas de final de ano ainda fazem sentido. Talvez hoje, enquanto forma de resistência ao individualismo, mais do que no passado quando a imprensa (e os leitores) encaravam os balanços com uma visão absolutista. Qualquer escolha reflecte subjectividade, mas, como no cinema, o importante não é o final do filme. É o contar da história e há uma grande diferença entre seguir os acontecimentos diariamente através de diferentes fontes (imprensa, plataformas, redes sociais, indústria, contactos pessoais), sem critérios de género ou hierarquias de visibilidade, ou lidar apenas com micro-fragmentos previamente filtrados. Esta é uma das épocas do calendário em que o jornalismo musical ainda pode fazer a diferença, realçando a importância de objectos para além da agenda ou impacto, ou resgatando música da invisibilidade. Porque não tenhamos dúvidas que os factores exteriores à criação, sobretudo as conexōes digitais, têm um peso cada vez maior. Sonhar ainda é grátis mas a democratização é um almoço a preço de esplanada lisboeta. Nem tudo o que pode ser chega a aparecer.
2023 foi morno por fora, não por omissão de estímulos semanais, mas por falta de álbuns transformadores, indiciadores de novas madrugadas, ou de clássicos instantâneos com poderes magnéticos. Nos últimos anos, não faltam exemplos de Ghosteen e Carnage de Nick Cave, a Multitude de Stromae, de Rough and Rowdy Ways, de Bob Dylan a Sometimes I Might Be Introvert, de Little Simz, de El Mal Querer de Rosalia a Dragon New Warm Mountain I Believe in You, dos Big Thief. As listas deste ano das publicaçōes especializadas espelham-no.
O contraste não podia ser maior com Portugal. 2023 foi, por outro lado, quente por dentro e, contrariou, de forma ávida e gloriosa o primeiro parágrafo. Talvez não tenha havido um ou dois álbuns esmagadores como 2 de abril d’A Garota Não, Casa Guilhermina de Ana Moura, Mundu Nôbu de Dino D’Santiago ou The Art of Slowing Down de Slow J - Afro Fado, de Slow J é provavelmente o mais consensual entre público, pelo menos assim sugerem os números de streaming - mas, por outro lado, o todo falou mais alto que as partes. A música perdeu a vergonha de ser portuguesa e é inquestionavelmente uma das telas do país, no seu realismo e utopia. Na luta e no amor, porque quem combate fá-lo com o coração. No corpo e no cérebro - será possível dissociá-los?
Os balanços mistos, como algumas publicaçōes já fazem, são legítimos mas deixam inevitavelmente de fora, música que precisa de ser resgatada da espuma e reavivada para poder perdurar no tempo. É uma questão de dimensão do país e não de complexo de inferioridade. Através da música portuguesa, vemo-nos ao espelho enquanto povo e país. Um balanço de 2023 serve, antes de mais, para nos lembrarmos do quão rica, plural e robusta foi a música criada ao longo dos últimos meses. Não por acaso, uma parcela generosa das escolhas expōe um diálogo entre a memória e a contemporaneidade, de diferentes formas e ângulos. Mas outros como Slow J, não só examinam o que é isso de ser português no mundo, se conectam a uma assumida reforma cultural para a qual João Coelho também contribuiu decisivamente ao elevar a barra, a partir do novo hip-hop. Afro e Fado, mais do que gavetas musicais, são códigos culturais de afirmação colectiva. E até por involuntária rebeldia, verificarmos que o “eu empoderado” da última década é cada vez mais um nós plural, identitário e até extensivo ao território. Precisamos.
Dez melhores álbuns portugueses de 2023 (sem ordem)
Eu.clides - Declive
Filipe Sambado - Três Anos de Escorpião em Touro
Glockenwise - Gótico Português
Malva - vens ou ficas?
Mão Morta + Pedro Sousa - Tricot
Marlene Ribeiro - Toquei no Sol
Nídia - 95 Mindjeres
Prétu - xei di kor
Riça - Diabos M'Elevem
Slow J - Afro Fado
E ainda…
Amaura - Subespécie
Ana Lua Caiano - Se Dançar é Só Depois (EP)
Azar Azar - Cosmic Drops
Carminho - Portuguesa
Conjunto Corona - ESTILVS MISTICVS
DJ Danifox - Ansiedade
Expresso Transatlântico - Ressaca Bailada
Luca Argel - Sabina
Peculiar - Lágrimas de Pérola (EP)
Pedro Mafama - Estava no Abismo mas Dei um Passo em Frente
Pedro Ricardo - Soprem Bons Ventos
Real Guns - Davids
Rita Vian - Sensoreal
Serpente - Cornos
Sónia Trópicos - Singela (EP)
Stereossauro - Tristana
Scúru Fitchádu - Nez Txada Skúru Dentu Skina Na Braku Fundu
Tó Trips - Popular Jaguar
Tota - Tota