Foi uma das grandes surpresas da campanha eleitoral. A rapper Eva Rapdiva, com origens sociais nas periferias da Margem Sul (Arrentela) e Margem Norte (Amadora), foi apresentada como candidata a deputada pelo PS. Eva Cruzeiro de certidão, tem formação superior em Ciência Política e Relações Internacionais, além de uma pós-graduação em Gestão Financeira e Direitos Humanos. Mesmo que o partido perca as eleiçōes, como as sondagens apontam, só uma catástrofe podia deixar o 8.ª lugar da lista candidata do PS ao círculo eleitoral de Lisboa fora do Parlamento. Portanto, a escolha foi feita na óptica de a eleger como deputada, sem margem de erro.
Contactada por mail para dar uma entrevista “sobre a relação entre a rapper Eva Rapdiva e a candidata a deputada Eva Cruzeiro”, esta respondeu afirmativamente no próprio dia mas quando se tentou agendar, emudeceu. Até hoje. Enquanto isso, continuou em campanha, como relata diariamente na página de Instagram. Podemos começar pelo princípio. Eva, que já tinha ligaçōes a “pessoas do PS” e apoiara anteriormente o jovem lobo dos rosas Bruno Gonçalves, a quem apelidou de "o jovem mais relevante, competente e inspirador da política portuguesa", foi convidada pelo Secretário-Geral e candidato a Primeiro Ministro, Pedro Nuno Santos, contou no programa Dona da Casa, da Antena 3. Quando questionada se o convite terá partido do alcance das redes sociais próprias (1,5 milhōes de seguidores no Instagram, 310 mil no TikTok e 215 mil no X), não negou a hipótese de aproveitamento da visibilidade, assim como da proximidade com a comunidade afrodescendente, mas tentou desmistificar a ligação ao defender que a maioria dos seguidores não é de origem portuguesa.
Ora, um dos problemas crónicos da política tem sido a incapacidade em comunicar com as geraçōes nascentes, começando desde logo por não as ouvir e, em seguida, infantilizar. Nas últimas campanhas, e nesta de forma ainda mais efervescente, tem havido diversas tentativas de chegar aos os suspeitos do costume, desde os pratos de caracóis e minis de Guilherme Geirinhas com os líderes partidários, ao vólei de Luís Montenegro, os passeios de mota de Pedro Nuno Santos, os ovos da IL, a farinha de granola dos problemas da habitação de Joana Mortágua, para além da cantiga do bandido do Chega a tentar engatar adolescentes no Urban com bebidas minadas. Em todos os casos, há um sacrifício do argumento político para melhor servir o dialecto de cada uma das redes. Apetece perguntar: o adolescente na sala é o receptor ou o emissor?
"Lutamos com leões na cidade safari
Enquanto alguém que gere o povo manda vir um Ferrari
Pra ser sincera o meu problema é só um
Eles deitam picanha, raspamos latas de atum!",
Eva Rapdiva em Um Assobio Meu
Eva refere que a chamada de PNS se deveu às suas “ideias políticas” e a uma visão “diferente da anterior” em que “as pessoas fora da política têm algo a acrescentar”, e defende até que “qualquer pessoa pode fazer política desde que se sinta preparada para tal”. Tudo bem. A “humanização da política” é importante desde que não esvazie as propostas para o país em freestyles de abraços, e em colecçōes de sílabas sem a punchline da prática. Fica a dúvida se o convite foi feito ao sujeito algorítmico de Eva Cruzeiro ou ao objecto político da MC Eva Rapdiva. E se na segunda, o efeito de catanada desferido por versos como os de Assobio Meu é incontestável e corajoso, agravado pelo contexto de uma Angola pouco amistosa da liberdade de expressão, como a própria reconheceu na entrevista à rádio pública (Eva viveu no Lobito e em Luanda), já a primeira mostra-se mais moderada em relação à rapper que um dia confrontou Isabel dos Santos. “Existem mudança que têm de ser feitas de forma progressiva. Não dá para fazer rupturas. Infelizmente, temos que acreditar num processo que demora muito tempo”. E assume, sem sofismas, que “todas as pessoas que estão a lutar por uma causa precisam de sobreviver”.
Filha de dois juristas militantes do PS, diz identificar-se com a democracia interna de um partido com pessoas que pensam de formas muito diferentes” e discutem política de forma “aberta e tranquila”, sem adiantar outros argumentos ideológicos, quer na entrevista a Catarina Marques Rodrigues para a Antena 3, quer nas intervençōes recorrentes na redes sociais. "Vivemos tempos difíceis, marcados por incerteza, desigualdade e ataques cada vez mais frequentes aos nossos direitos fundamentais. Perante isto, não podemos ficar indiferentes. A minha candidatura é, também, um grito de alerta e um apelo à mobilização. Temos de agir! Temos de nos unir! Temos de lutar pelos direitos que já conquistámos, pelos que ainda queremos conquistar e contra tudo o que nos quer silenciar", escreveu na apresentação da candidatura.
"A minha entrada na política institucional não representa uma mudança de caminho, mas sim um novo capítulo da mesma luta. Uma luta que sempre travámos juntos com arte, com coragem, com consciência e com o coração. Uma extensão natural de uma caminhada feita de ativismo e compromisso com a justiça social. (...) Esta candidatura é também vossa. É por nós, pelas nossas pessoas, pelas nossas causas e pelo futuro que merecemos construir", continuou. Ficámos sem saber o essencial. Em que substância do projecto político do PS para o futuro de Portugal acredita e que parte do seu discurso foi extraída para receber o convite? Ainda na entrevista a Catarina Marques Rodrigues, Eva defende a necessidade de os políticos esclarecerem a população, mas no seu caso as questōes centrais ficam por responder com a profundidade necessária. Será um efeito da mudança “na forma de falar” como defendeu sobre o seu posicionamento em relação ao activismo?
“O meu objectivo é fazer com que o PS ganhe. Fazer com que a esquerda ganhe”, declarou na Antena 3. A leitura de um PS de (centro) esquerda é questionável. Se na geringonça, o período político mais equilibrado deste século política em Portugal, o contraforte de CDU e BE não só equilibrou a balança política, como preencheu a incapacidade reformista de António Costa (ex: o passe social), o segundo mandato e a maioria absoluta foram um naufrágio de centro-direita. É legítimo que Eva Cruzeiro tenha ambiçōes políticas mas se aceitar vestir a rosa, sem lhe verificar a etiqueta, no mínimo está a desperdiçar uma oportunidade de inverter o marasmo interno e a entregar-se ao sistema que tenta mascarar problemas estruturais. Que medidas sérias propōe o PS para incrementar o “elevador social” e atenuar as desigualdades entre os cada vez mais ricos e os médios cada vez mais pobres?
Eva não é uma futura deputada qualquer. Na legislatura terminal, com apenas um ano de vida, as mulheres foram apenas um terço. Se a representação feminina já é minoritária, a singularidade de uma mulher negra não sendo inédita - em 2019, foram eleitas Joacine Katar Moreira pelo Livre, Beatriz Gomes Dias pelo BE e Romualda Fernandes, pelo PS -, continua a ser um facto. Para ser um fim político em si, não bastará a Eva obedecer à disciplina de voto. Terá de se fazer ouvir contra as desigualdades sistémicas que geram efeitos como a disparidade de salários entre homens e mulheres, ou o acesso diferenciado a cuidados de saúde de quem tem possibilidades. Estará o PS pronto para lidar com as causas de quem foi parece ter sido escolhida pelo seu efeito?
A campanha do PS tem sido como todas as outras. Descolorida, sensaborona e falha de imaginação. PNS foi incapaz de confirmar a firmeza política, prometida enquanto ministro de António Costa, e de afirmar um projecto de futuro para o país. Não podemos só culpar a avareza do Chega e o avanço dos extremos, quando a oposição é tão pobre e não consegue contrariar um quadro político armadilhado, mas também sedento de mudança. E apesar de o eleitorado ser cada vez menos desinformado e atomizado, este era o momento ideal para romper com a mediocridade instalada. A responsabilidade de uma candidata a deputada é incomparavelmente menor do que a de um Secretário-Geral mas quando se pensa em alguém com a lucidez e conhecimento vivido de António Brito Guterres, e na capacidade do sociólogo de intervir no espaço público com uma visão dura dos acontecimentos, servida à temperatura corporal certa, percebe-se melhor porque, para já, estamos a falar de uma oportunidade perdida.
Em circunstâncias distintas, o exemplo de Joacine Katar Moreira é importante. Eleita pelo Livre em 2019, desde cedo se percebeu que o divórcio era iminente. O partido serviu-se da representatividade de Joacine e Joacine serviu-se do partido para ter palco para a sua autodeterminação. O mandato foi desastroso, apesar das atenuantes. Joacine foi permanente afrontada e apelidada de “Lady Gaga” pela bancada do Chega, entre outros mimos, mas não foi capaz de superar prova de montanha e perdeu-se entre conflitos pessoais e um desnorte na agenda política, confundindo a defesa individual dos problemas de uma comunidade com culto da personalidade. No Parlamento, Eva Cruzeiro terá todas as condiçōes para fazer melhor e lutar pelas soluçōes que não expôs nem na campanha, nem nos seus canais, onde, até agora a preocupação com o sujeito mediático esvaziou o objecto político.