Vera Marmelo/Nascentes
O grande problema dos festivais, escrevi-o há um mês no defeso da temporada de verão, está na “dificuldade crescente em criar momentos únicos que a experiência social por si só não resolve”. O artigo A Hipersaturação dos Festivais, publicado na antecâmara do Primavera Sound, onde pela primeira vez não estive em quase dez anos, foi infelizmente confirmado dias depois no Parque da Cidade. A leitura do Miguel Rocha no Playback esmiuça a relação entre os problemas do Primavera Sound e a desconfiança do público melómano, o primeiro na cadeia alimentar de consumo, nos grandes festivais. Ainda é a música a acender o lume mas o cepticismo já não se resolve apenas com o cartaz ou nomes avulsos. Os palcos secundários transformaram-se em bombas de gasolina onde se compra Kit Kat às duas da manhã, e o preço galopante dos bilhetes trava o entusiasmo e dilui a democraticidade.
No fundo, os grandes festivais sofrem dos mesmos problemas de gentrificação das metrópoles. Estão incomportáveis e sufocantes. Reprimem quem os alimentou. É uma das várias fracturas expostas dessa metamorfose nem sempre assumida, à excepção do Rock In Rio, primeiro em parque de diversōes com música e, nas encarnaçōes mais recentes, num gigante algoritmo de sensações, cheio de conteúdos patrocinados, e pequenos motores de busca que transmitem às pessoas um estado duvidoso de autonomia, quando estão entaipadas num supermercado sensorial onde a água natural tem o preço do vinho de reserva. A experiência suspensiva foi substituída por uma realidade aumentada da atomização. Não é inocente que os ideais colectivos tenham sido anulados pela partilha e multiplicação de histórias individuais e auto-centradas.
Tratam-se de grandes acontecimentos de comunicação sem princípio nem término. Nada de novo se pensarmos que o fenómeno da música popular foi absorvido pela cultura do algoritmo e se transformou numa indústria dissimulada de criação de conteúdos, em que a experiência massificada de ouvir passou a ser o inverso de escutar, compreender, relacionar e reflectir. Queremos a música para nos agitar ou para nos dar o que já temos? A pergunta pode e deve ser feita acerca dos grandes festivais. Para que serve a música? Para preencher ecrãs verticais? Servir campanhas de operadoras e cervejeiras? Emparelhar em aplicaçōes de encontros porque vamos ao mesmo concerto e seguimos as mesmas playlists?
É da natureza humana procurar escapes. Por esta ser a macro-realidade não quer dizer que seja a única. Negá-la é querer parar o vento com as mãos mas até o vento sopra noutras direcçōes. Não é por acaso que os grandes festivais foram sedimentados na centralidade e sofrem dos vírus das maiores cidade, como não é aleatório que o GPS da contramão provenha de geografias descentralizadas. A escala menor permite uma relação de proximidade com o território e a comunidade. E até a existência de apoios, em vez de marcas que querem o nome na mesa para poder comer a sopa, faz toda a diferença entre curadoria e programação. Nem sempre é assim, mas os bons exemplos trazem alento e contrariam perdas como a dos Jardins Efémeros em Viseu.
Vera Marmelo/Nascentes
Em Leiria, decorre até domingo, dia 7, o Nascentes. Numa aldeia: a das Fontes, onde nasce o Rio Lis, sob o desejo de conectar artistas e espaços, natureza e criação, rasgo e tradição. “É no diálogo com os habitantes da aldeia das Fontes que vamos conhecendo pequenas histórias e mitos que são carinhosamente guardados na memória coletiva e passados de geração em geração. Uma das muitas histórias é o mito da grota. Segundo os Fontelenses, quando vêm as primeiras chuvas intensas, há um certo dia em que a terra estremece e ouve-se um rugido vindo do solo, cada vez mais intenso, até que rebenta a nascente. É inspirado neste mito que surge a instalação performativa Grota”, explica o texto enviado pela comunicação do festival. O festival é organizado pela CCER Mais com a editora Omnichord e em parceria com os habitantes das Fontes e a Associação Cultural e Recreativa Nascentes do Lis.
O Nascentes permanece comprometido com a “partilha e uma corrente de escuta atenta ao outro”, assevera a organização. Além de concertos como o dos 5ª Punkada, a banda fundada na APCC – Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, “seis passeios sonoros”, orientados por Luís Antero, “convidam à escuta do lugar, através dos sons que dele fazem parte”. Ouvir os campos, as árvores e as flores é relacionarmo-nos com o leito natural de onde vimos e para onde vamos, e entender de uma vez por todas que o chão que pisamos é solo fértil e vital, e portanto, cuidado para não pisarmos as nossas raízes. A olhar para o mar, começa esta sexta, dia 5, o Mar Motto em Faro, com entrada gratuita. Um festival que “celebra o oceano e promove a sua conservação” e promove a prática “em torno das áreas criativas das artes, música e ciência, como elementos unificadores e pedagógicos.”
O azul é um símbolo declarativo de esperança. “A recusa em aceitar esta cor como um elemento raro ou extinto na natureza”, defende Mariana Machado da dupla de cineastas Dona Edite, responsável pela curadoria da exposição No fundo, azul, que leva às paredes da Fábrica da Cerveja nomes como Vhils, Confeere, Moradavaga, Só Fachada, Diogo da Cruz, Batida e André Carrilho. Entre outros workshops dialogantes entre arte, causa e território, no dia 19 de julho pelas 18h00 a artista Pitanga e a sociedade civil têm conversa marcada sobre o papel da arte e da educação na conservação do mundo marinho, e para o dia 21 está agendado o workshop Cabeça, coração e estômago - almoço em 3 passos para evitar o desperdício alimentar com Vasco Prudêncio d’ A Venda.
A expansão do país cultural é difícil porque Portugal, ao contrário de Espanha, tem poucas cidades médias com influência política e a força necessária para contrariar o centralismo. Quando ainda por cima há uma ferrovia obsoleta, fruto do desinvestimento generalizado nos transportes públicos e do incentivo ao uso do carro próprio, e uma falta de interesse crónica no interior de quem toma decisōes, todos os factores estruturais se alinham contra a descentralização. É também por isso que a dinamização local é tão importante. Para formar públicos, estimular uma escuta activa e criativa e incentivar a criação de células artísticas locais. Se estas não tiverem a potência necessária para fixar comunidades e travar a fuga para Lisboa e Porto, pelo menos que transmitam as suas próprias realidades, virtudes e tensōes. Portugal é um país pequeno e macrocéfalo mas é maior do que duas áreas metropolitanas.
De 24 a 27 de mês, o Zigur leva até Lamego Yaw Tembe, Norberto Lobo, Riça, bbb hairdryer e DJ Lynce, a exposição Quermesse Lamecense de Ruca Bourbon, a emissão especial Zigur FM conduzida por Catarina Machado (do podcast O Grito e Conchicho) a partir de vários pontos da cidade, o debate Arte e Acessibilidades: uma conversa aberta e um workshop de produção musical dedicado a pessoas com deficiência auditiva e surda, conduzido por Beatriz Romano, uma artista surda do coletivo FreqSix, que demonstrará “as infinitas possibilidades de compor vibrações”. Activo desde 2011, é um festival de cooperação e curadoria. Só dessa forma é possível levar à aresta norte do distrito de Viseu propostas tão marginais e nomes tão subterrâneos. A organização é da Zigur - Associação Cultural, com o apoio do Município de Lamego e da DGArtes.
No final de junho, o Salva a Terra Ecofestival conciliou ecologia, sustentabilidade e diálogo intercultural na aldeia de Salvaterra do Extremo, na mesma Idanha-a-Nova onde acontece o bienal Boom Festival, um caso à parte no panorama português, que, sem surpresa, tem sentido dificuldades em conciliar autenticidade e crescimento à medida que o seu público mudou e a cultura electrónica de dança, ancorada no trance, se massificou e, como tal, banalizou. Na terra mágica de São Miguel, nos Açores, mais precisamente na Praia dos Moinhos, em Porto Formoso, o Azores Burning Summer assume o prefixo Eco Festival para sincronizar a fisicalidade da música de Mayra Andrade, Ferro Gaita, Moullinex ou Adrian Sherwood (cliente habitual, amigo da organização) com acesso equilibrado, reduzido impacto ambiental, cinema, debates, ecodesign, veículos elétricos, land art e ações comunitárias.
Entre outros exemplos de diversidade que arriscam ser sem medo de contrariedades, o pioneiro desta vaga alternativa e não-concorrencial - à partida, um sinal de saúde -, pelo menos na relação com a música é o Bons Sons que este ano volta a uma renovada aldeia de Cem Soldos para celebrar a música portuguesa. Uma aposta impossível quando o festival nasceu em 2006 que o tempo confirmou ser certeira e inspirou tantos outros festivais e cartazes a olhar para dentro, fosse por intenção conceptual, motivos orçamentais ou arbitrariedade de quem programa. A obsessão em chamar festival a tudo não ajuda nada à diferenciação mas ainda é possível criar experiências sinceras. A independência de curadores, programadores e produtores é a liberdade de quem as vive.
Zigurfest