Time may change me/But I can't trace time. A profecia de David Bowie na sedimentar Changes, de 1971, explica o monolitismo dos The Cure no milénio. Aclamados por não se revestirem, vimo-los revisitar os clássicos e as passagens secretas dos devotos em loooooongos concertos de três horas, encabeçar festivais, lotar digressōes, receber vénias de contemporâneos e renovar os votos dos fãs, sem esconder a maquilhagem esborratada. É como se a desintegração se tivesse tornado num estado permanente, sem lhes ser caucionado, talvez porque a decadência visual nunca tenha afectado a conservação da natureza das cançōes. Ou ainda porque a sombra se marcou segura da claridade e os fantasmas de Robert Smith são gentis.
Tempo. O factor crucial de Songs Of a Lost World. Uma banda reencontrada na implosão da esperança. Um disco que começa com a frase “This is the end of every song that we sing” não está apenas a prefaciar-se. Dirige-se ao outro com um testamento justificado pelo princípio do ciclo da extinção. Longas avenidas para os dias do fim, de solidão, desalento e renúncia. Haverá tempestade mais propícia para celebrar a desolação e a agonia?
A última imagem é a que fica para a memória, mas no caso dos The Cure, os dois álbuns das últimas duas décadas - os menores The Cure (2004) e 4:13 Dream (2008) - foram apagados da memória colectiva e absolvidos pelo seguidismo fiel. A reintegração dos Cure é a desintegração de sonhos, ideais e utopias. A depressão geral anima-os, o falhanço colectivo da humanidade legitima-os. Nunca foram banda de coração político mas Songs Of a Lost World fala para o coração da democracia enquanto halo da coexistência e compreensão. Se implodirmos a beleza, só vai restar o terror. E apesar da negritude há encanto nesta ruína.
Robert Smith embala-nos em fábulas negras e promessas nobres. And Nothing Is Forever reconhece o fim (“Promise you'll be with me in the end”) como um último sopro ao ouvido antes do precipício. Testemunhos de um isolamento natural e auto-decretado por quem se habitou a fazer das cançōes a luz de presença na névoa e o vínculo de superação do medo.
O momento é perfeito para partilhar da agonia de Smith, permeada pelas longas introduçōes de baixos espessos. Os primeiros segundos de Warsong prometem bonança com uma caixa de ritmos e uma melódica, a pintar como lápis de cor, mas logo o céu descarrega toda a fúria nas quadro cordas de Simon Gallup, enquanto o reforço Reeves Gabrels (cúmplice de David Bowie desde os Tin Machine até ao neoclássico Hours, de há 25 anos) soma propriedades sónicas sem ser planta invasora da simplicidade autóctone.
O baixo é dinâmico mas as cançōes arrastam-se como um corpo febril. Os Cure de sempre caem que nem trovoada na seca de crença e futuros tangíveis. Songs Of a Lost World despede-se ao piano na atmosférica e palaciana The End Song. Para sempre? “It's all gone, it's all gone/Nothing left of all I loved/It all feels wrong”. Soa a última sessão mas Robert Smith já prometeu adiar a reforma até 2029.
Numa época que adora matar a beleza, os Cure voltam a ser espelho de quarto da agonia colectiva. Não prometem terapia barata mas salvam do naufrágio enquanto Songs Of a Lost World se afunda na resignação. Perto de uma hora da sua música mais vital e pertinente desde o clássico Desintegration. E fecha-se um ciclo sem retorno da mortalidade.
Recomendaçōes não-algorítmicas
Mount Eerie - Night Palace
Há de tudo nos 80 minutos de Night Palace. Rock sónico, folk pardacenta, oceanos de ruído, recolhas sonoras, explosōes, contençōes e cançōes faladas. O engenho de Phil Elverum está em dar uma ordem e um sentido a um caos-não-caos que nunca chega a ser uma confusão.
Kokoroko - Get The Message
Na corrida louca do tempo, dois anos correspondem a um século mas a prova da excelência de Could We Be More, bronzeado pelo verão de 2022, está na lembrança desse álbum de diáspora transcendente do afrobeat ser o até agora o mais esfusiante do colectivo Kokoroko. Sem cábulas de motores de busca. Um EP reacende as caldeiras. Vem muito calor de Get The Message. E se Three Piece Suit, a mais canónica das quatro, foi escolhida como single natural de transição, Sweeter Than é amolecida pela Sade de When You're Gone enquanto My Prayer se banha em águas de Copacabana. Deste mundo só vem paz e boas novas.
Gaister - Gaister
A soprano Olivia Salvadori conheceu Coby Sey, importante personagem da subterraneidade londrina, quando orbitavam nos mesmos círculos. Depois de trabalharem juntos numa residência, juntou-se o baterista Akihide Monna (dos Bo Ningen), com quem deram concertos regulares. Gravado na Islândia, Gaister é uma escultura sonora esculpida na base de intuiçōes e interelacionamentos - um diálogo aberto e franco. A conexão do trio tem na voz um centro operático de gravidade. A música flui como uma tela em branco, livre de espartilhos e obrigaçōes, como um corpo mutante a formar-se e expandir-se enquanto a música flui.
Naya Beat Volume 2: South Asian Dance And Electronic Music 1988-1994
Há um circuito paralelo alimentado por investigadores, editoras e lojas que regularmente ressuscita tesouros históricos fora dos eixos tradicionais da indústria. Há duas semanas, a Music From Memory trazia à superfície o fascinante arquivo de techno ambiental japonês em Virtual Dreams II, Ambient Explorations in the House & Techno Age, Japan 1993-1999. Esta semana, é a diáspora do acid house, trip-hop e downtempo ao sul asiático no pino dos 80 para os 90, a partir de cassetes descobertas pelos fundadores da editora Filip Nikolic (Turbotito) e Raghav Mani (Ragz). Da importância de matérias-primas do Ocidente ao parto de uma dialéctica própria, a surpresa é constante com momentos de delírio como X-290, O My Baby e Bass Fire (On and On).
Skee Mask - D
O abecedário de Skee Mask pára na letra D. O quarto fascículo de uma série de recapitulaçōes de material arquivado, iniciada em 2022, reporta onze inéditos produzidos de 2016 a 2020. Arrumar a linguagem de Bryan Müller em gavetas é perder o essencial. A dinâmica, a agilidade e a interpelação do adquirido que o tornam um dos nomes mais distintos e bravos do pelotão electrónica alemã.