Capa de Remote Echoes dos Duster, banda-relíquia “resgatada” no TikTok
Há alguns anos, um produtor que muito admiro dizia-me que apesar de não se sentir confortável nas redes sociais, faria tudo o que fosse necessário para agradar ao público. “Se as pessoas querem assim, não vou ser eu a dizer o contrário”, comentava resignado sobre o padrão de publicaçōes usado, como selfies de costas para o público em concertos. Confesso que a declaração me chocou, por vir de alguém que subira a montanha contra o vento. Talvez o ingénuo fosse eu. Talvez os papéis da Man Machine dos Kraftwerk se tivessem invertido até para aqueles que haviam imposto uma identidade através do controlo do processo. Talvez a resistência dos Daft Punk à robotização dos capacetes seja, afinal, só uma manchete, mas se isto não são os botōes a tomar conta das mãos, o que é? Human after all?
Nos balanços musicais do ano passado, duas sílabas assoberbaram as reflexōes: Tik Tok. Da perspectiva da indústria, pelo poder de influenciar tendências sem planos estratégicos, e do ponto de vista da imprensa, pela geração de fenómenos improváveis como o ressurgimento do shoegaze, quer através do resgate de soldados perdidos em combate como os Duster ou as Lush, quer por ser o leito maternal de novos ruídosos. Como justificar? Todas as explicações, mesmo as mais sociologicamente robustas como a do Stereogum, apontam para uma aleatoriedade sustentada por desejos eléctricos de romper com a norma. Isto é carvão para as comparações com a era da inocência do MySpace, quando a música valia por si. Com essa enorme diferença: não havia um algoritmo a intermediar as nossas escolhas. Mas é consensual que, de todas as criaturas criadas em laboratório, o TikTok é o mais difícil de domar e dissecar.
Vejamos a previsåo de tendências da rede para 2024. Segundo o What’s Next 2024, a bola de cristal do TikTok, “as estruturas narrativas intrigantes guiam os espectadores além dos primeiros segundos” (1). O relatório aconselha as marcas a ouvir a comunidade para “moldar a identidade e narrativa” (2) e convida as pessoas a “compreender e moldar-se à linguagem da rede social” (3). O TikTok recomenda “a criação de conteúdo alinhado com as necessidades e vontades” (4), embora, em sua defesa, assuma que “não estamos aqui apenas para vender, estamos para rir, ouvir e criar em conjunto”. Com moderação (1) e (2) ou desassombro (3) e (4), o manual de voo aponta sempre para os mesmos ares: subjugar a identidade e formatar o conteúdo. Normalizar, repetir, engordar a bolha até explodir e vir a próxima. Em nome de uma “mudança social positiva e transparente” que soa sempre a uma máscara da Sephora.
O TikTok refere-se explicitamente a marcas mas “marca” em linguagem digital não tem o mesmo significado que na economia. As regras são iguais para todos. Habituem-se. Que a indústria das multinacionais aceite jogar este jogo, é natural. São milhōes em jogo. Ainda assim, a Universal recusou a proposta sobre a concessão de direitos de licenciamento oferecida pela rede e retirou todo o catálogo. O que significa que Slime You Out, o rap falado de Drake, que viaja desde as esperanças renovadas de janeiro até à reconciliação e espírito cristão de dádiva de dezembro, não poderá legendar POVs desconsolados sobre o passado do último fim de semana ou pensativos sobre o futuro da humanidade na próxima semana.
O canadiano tem sido uma cobaia voluntária da inversão de papéis e inserção de estratégias de marketing no processo criativo, como a memeficação do vídeo de Hotline Bling, ou os passos toscos de Toosie Slide, a angariar reforços para um Tik Tok em vulcão no longínquo 2020 de recolher obrigatório. Slime You Out tem um propósito muito claro: descrever acções, acontecimentos e experiências. “April, spring is here and just like a spring, you start to spiral/May brings some warmer days, poolside, gettin' very tan”. A música enquanto etiqueta da experiência individual. Sempre aconteceu. Talvez nunca tanto como agora.
O estatuto do artista inalcançável, apenas observável em palco ou entrevistas, e audível em disco, não passa agora de uma lenda. O que se ganhou em humanização diluiu-se numa pressão tão sôfrega que os artistas, outrora condutores sem passageiros do veículo, são obrigados a ser uma espécie de uber drivers. Não só descem dos aposentos como têm de convidar toda a gente para um refresco. Na melhor das hipóteses, transforma o processo num acto cooperativo mas na esmagadora maioria dos casos, essa forma de operar é apenas uma estratégia agregadora de público. Porque, na génese, está o alcance do grito e não a sua mensagem. There’s leaders and there’s followers, profetizava Kanye West em New Slave. Resta saber quem é seguidor e seguido.
O crescimento exponencial das redes - Facebook, Twitter, Instagram e TikTok, por ordem cronológica - obrigou a uma adaptação constante a moldes e formatos, sob pena de exclusão social. Cada rede tem a sua identidade e o TikTok enquanto portador de especificidades é uma criatura estranha. Fascinante e incompreensível, por isso geradora de dúvidas e resistências. O alastrar da sua influência não pode ser desprezado mas aceitar todas as regras sem as questionar, pela necessidade de estar em todo o lado ao mesmo tempo, é perigoso. Poder não é aquilo que nos é imposto mas sim o que fazemos com ele.
No cronograma do digital, o tudo ser igual para todos é um renascentismo. Lentamente, chega-se à conclusão que as redes, outrora uma brecha na realidade, são hoje uma oportunidade perdida. No final do ano passado, a Wired publicava um belíssimo artigo sobre a desconexão progressiva da primeira geração de utentes das redes sociais. Se decompostos os factores, talvez a resposta ao improvável regresso do shoegaze não resida na subida do caudal de um um rio nostálgico e na atracção pela sua profundidade misteriosa mas no efeito normalizador das águas. O shoegaze de 2024 pode não ter nascido no papel ou em Excel mas tem pouco a acrescentar a 1991, além de matemática. É apenas mímica, amplificada pela arbitrariedade do algoritmo. Isso diz mais sobre a rede e sobre a escravização dos músicos em criadores de conteúdos do que sobre espontaneidade ou contra-cultura.