Semana um pouco diferente no rescaldo de álbuns porque não há um mas vários em destaque. Quase todos bastante exploratórios (Los Thuthanaka, more eaze e claire rousay, Lucy Liou, Memória de Peixe, Barananu e Radar Keroxen Vol. 5), radicais (YHWH Nailgun, Gyedu-Blay Ambolley e Imperial Triumphant) ou densos (Lonnie Holley, Vijay Iyer e Wadada Leo Smith). Não se deixem impressionar pela ausência de nomes sonantes, é uma grande apanha.
Los Thuthanaka - Los Thuthanaka
Têm nome de banda rancheira e não recusam os fundamentos da música de baile mas importa explicar que Los Thuthanaka são Chuquimamani-Condori e o irmão Joshua Chuquimia Crampton, autores respectivamente dos delirantes DJ E (2023) e Estrella por Estrella (2024). Sem surpresa, há um pouco de ambos no igualmente avariado Los Thuthanaka. Homenagem à figura mitológica da cultura inca, Chuqui Chinchay, que encarnava ambos os géneros feminino e masculino, a extroversão distorce a cumbia e disforma o rock psicadélico de tez latina como uma transmissão pirata num rádio estragado. A emissão vai para o ar em Parrandita mas a psicanálise da dupla transcende formas, convençōes e frequências. Não deve haver música mais mirabolante a ser produzida no planeta nesta altura. E no entanto, ela está cheia de
more eaze e claire rousay - no floor
O elo entre more eaze e claire rousay é emocional e é a partir da cumplicidade entre ambas que no floor cai do céu como uma peça imaterial de pós-americana, fundos pastorais e blues estelares, sem limites físicos a bloquear movimentos. Na atmosfera escapista, há detalhes de glitch e reminiscências do pós-rock mas no floor é um acto de mútuo consentimento em que more e claire rousay se fundem num só corpo a sondar fugas não experimentadas anteriormente. Magnífico.
Lucy Liyou - Every Video Without Your Face, Every Sound Without Your Name
Não é mas podia ser uma segunda volta de Luminescent Creatures, o reino de coral de Ichiko Aoba. Porque tanto esse notável exercício sobre a naturalidade, o silêncio e a diluição como Every Video Without Your Face, Every Sound Without Your Name emergem de uma profunda admiração pela grande beleza das coisas simples. Enquanto Aoba apazigua a violência do real, Lucy Liou contém a turbulência do fim assumido de uma relação e da disfunção familiar enfrentada por ser trans, mas há muitos fios a uni-las. O som como vocabulário, o romantismo sussurrado e o virtuosismo da vulnerabilidade. Peça transparente de colagem ambiental, Every Video Without Your Face, Every Sound Without Your Name revela-se uma caixa negra pop mergulhada a grande profundidade.
YHWH Nailgun - 45 Pounds
O ritmo torpedeia 45 Pounds. Em vinte minutos de socos e cabeçadas, o álbum dos YHWH Nailgun é animal feroz a soltar-se da jaula sem se perder em violência gratuita. Pelo contrário, questiona os limites do ruído na zona cinzenta do pós-punk, permeado por ruídos bestiais e sons de anjos em desespero. Uma sova de desmoronamento.
Memória de Peixe - III
Novo regresso, nova formação dos Memória de Peixe. As guitarras voadoras de Miguel Nicolau têm agora como companheiros de aventura Pedro Melo Alves (bateria) e Filipe Louro (baixo), e a matemática sónica desloca-se para geografias quiméricas e atmosferas oníricas. O climax de álbuns anteriores não se auto-destrói nos preliminares mas os prazeres de III reinventam-se na liberdade do improviso, na fluidez do jazz e na exploração da imaterialidade espacial. Uma breve interrupção na marcha atroz.
Lonnie Holley - Tonky
A densidade de Tonky é fulgurante. Há história refeita em What’s Going On e A Change Is Gonna Come, reforços para todas as posiçōes como a harpista Mary Lattimore, a poetisa Angel Bat Dawid, o profeta Saul Williams, o filósofo Alabaster DePlume, os rappers Billy Woods e Open Mike Eagle, e a escritora de cançōes Jesca Hoop a multplicar as hipóteses de um álbum dirigido pelo agente eléctrico Jacknifee Lee. A gravidade de Lonnie Holley, exímio a contar histórias, é o guia espiritual de um manifesto militante de fé e esperança, que se entrega à metamorfose como demanda política de mudança de rumo.
Vijay Iyer e Wadada Leo Smith - Defiant Life
Há um espaço imenso no diálogo entre a arquitectura textural de Vijay Iyer e o trompete educado de Wadada Leo Smith. Os dois operam sobre vocabulário próprio e erguem uma muralha invisível de resistência a crueldade e à destruição em que a ordem telepática dos instrumentos é uma mensagem de coexistência, respeito pelo outro e liberdade colectiva.
Barananu - Funghi
Há um sólido disco de jazz a acontecer em Funghi, quando em Miguel, a quinta peça, acontece uma viragem. E se antes estamos em terra firme, descolamos em busca do sol posto dos Roxy Music que há nos Sensible Soccers e o álbum de estreia dos portuenses atinge o climax, que há-de ter em Ode Metro o cigarro pós-sexo. Boa aposta da Jazzego.
Gyedu-Blay Ambolley - Simigwa (reedição)
Clássico imediato e irresistível, o álbum de estreia de Gyedu-Blay Ambolley, em 1975, mesclou highlife com a efervescência de James Brown, de quem bebeu as noçōes ritmicas, a relação com os sopros e o papel activo da percussão, e técnicas avançadas de rap. Há um antes e um depois de Simigwa na música pan-africana.
A atmosfera cavernosa do quinto volume da série coligida por Gonçalo F. Cardoso para a Discrepant nasceu debaixo dos pés. Um depósito abandonado de gasolina, junto ao porto de Santa Cruz, em Tenerife, serviu de chão ao fumo denso extraído da performance resumida em disco. Quatro produtores (o próprio Gonçalo, Eduardo Briganty, Afgan e Resonance) conspiram uma unidade sonora nebulosa e desconfortável, apenas interrompida por subtis fios melódicos.
Imperial Triumphant - Goldstar
As bandas de metal não podem ser cultas?! Os Imperial Triumphant são fascinados por Art Deco e Stanley Kubrick, alimentam-se de saber jazzístico, batuques afro-latinos e ritmos de maracatu, como os Sepultura em Roots, e conhecem as técnicas de captação sonora no terreno. Goldstar convoca todos estes materiais para moldar uma massa de som titânica e devastadora. O vocabulário técnico, conceptual e vanguardista faz imaginar os King Crimson em estúdio com Dave Lombardo (um dos convidados) mas Goldstar encena uma outra corrosão. A de um tsunami destruidor da democracia como a conhecemos até aqui. A pintar nus da violência, são de facto imperiais.
Como gosto de ler coisas com ausência de nomes sonantes! E também gosto de ouvir. Mas por aqui habitam nomes referenciados que me dizem bastante, em particular Alabaster de Plume. Bela lista.