Nem tudo no mar se entrevê no ciclo de paz e agitação. Há uma sensação reconfortante de diluição no infinito e conexão visceral a transcender estados naturais de purificação e realinhamento entre corpo e entidade. O simples acto de mergulhar translada para algo de profundamente primitivo, como a devolução ao útero maternal. O mar ensina o corpo a ceder, a encontrar equilíbrio pendular, a usar resistência sem rigidez e a entregar o controlo. A dualidade entre imensidão e insignificância é uma obediência pacífica.
Luminescent Creatures de Ichiko Aoba está cheio de propriedades terapêuticas que não se desgastam em jargōes curativos. E, no entanto, um jorro de cançōes sopradas apenas por voz, guitarra e teclados episódicos tinha tudo para se diluir nas banalidades do estado líquido, mas a japonesa atravessa essa fina fronteira entre o vulgar e o sublime com uma pinta descomunal que advém do estudo físico do meio e da rendição franca à sua imponência.
Das cançōes em miniatura do sublime Luminescent Creatures avistam-se corais coloridos e cardumes cintilantes de peixes. Um reino aquático em que se dilui não apenas como gesto de admiração mas se fundir nesse ecossistema misterioso em que a falta de ar é deslumbramento interminável.
Há uma história precedente ao álbum. Inspirada pelas viagens às ilhas Ryukyu do Japão, onde começou a interessar-se pelo fenómeno da bioluminescência - a produção de luz por organismos vivo -, observou a dissecação quase diária de baleias sacrificadas. Atraída pelo gigante, começou as suas expedições de mergulho longe da costa, numa área onde se sabia que as mães fundavam as suas crias. E a partir da transparência oceânica, viu a luz.
As miniaturas segredadas por Luminescent Creatures são límpidas e cristalinas. Uma pequena maravilhada tecida sobre uma simplicidade comovente. Ichiko Aoba tira o máximo partido do mínimo de recursos. Não precisa de mais para transmitir imagens naturais através de melodias flutuantes e de uma atmosfera espectral, como na cinematográfica Sublime Tower. Em Luciferine, as reminiscências com Cherry Blossom Girl, dos Air, têm no Japão um elo geográfico.
O mar também é convocado para dissolver muros psicológicos de betão. Luz e sombra, a beleza cintilante e o pavor dos mares, a potência da água e a escassez da essencialidade, e a sua dependência total - vida ou morte. Ichiko Aoba invoca paradoxos sem os antagonizar num mundo real de fantasia e da introspecção que olha para a presença e importância da água no organismo. A diálise entre sólido e líquido separa o olhar deslumbrado da visão activa sobre ciclos terrestres.
O primeiro grande álbum de 2025 devolve-nos a princípios essenciais: o espírito da paz, as cores exuberantes e o esplendor do belo. Estamos cada vez mais perto de um estado de saturação em que as grandes revoluçōes não se fazem de foguetão, mas no fundo do mar. Não nos podemos separar da Natureza, somos parte dela.
Álbuns da Semana
Panda Bear - Sinister Grift
À segunda canção de Sinister Grift, uma voz portuguesa com marcas adolescentes apanha-nos desprevenidos. "O nosso dever na vida consiste apenas em agir bem, amar bem, tratar bem". É Nadja, filha de Panda Bear e da estilista Fernanda Pereira, de quem se separou entretanto, a apelar à decência e a cuidarmos uns dos outros, como tratamos das begónias. Soa a roga interior de recomeço, servida por melodias pop luminosas dos anos 60, de Brian Wilson à soul das Shirelles. Sinister Grift gravita em torno do fim do amor mas, ao contrário do que pode sugerir o título, não é sombrio nem amargurado. Espelha gratidão, reconhece o intervalo, e manifesta vontade de partida. Quem conhece Noah Lennox sabe que fala de coração desabrigado. Este Panda Bear é e só podia ser o mesmo dos Animal Collective, mas a ligação umbilical ao magnifico Reset, com Peter Kember (Sonic Boom), de 2022 é evidente. Na meia idade, chega a pop directa, desvinculada dos dadaísmas, e estruturada na tradição a aguçar o rejuvenescimento. Tal como pronuncia Nadja pelo pai em Anywhere But Here, "amar é a melhor canção".
Romeu Bairos - Romê das Fürnas
No sotaque micaelense de Romeu Bairos, a âncora de Romê das Fürnas, não se escuta apenas um regionalismo. É o país a esticar os braços às suas identidades territoriais. Ao contrário da costumeira centralista, não são os Açores a voar na SATA, é o arquipélago a falar a sua língua cheia de gente dentro. Bairos, o Sandro G de Rabo de Peixe, não fala apenas por si, é uma voz emissora de contos, personagens e costumes. A mão de B Fachada não é invisível, há uma maneira de costurar a folque reconhecível a milhas de distância mas esta é a história de Romê das Furnas.
Darkside - Nothing
O lado negro nunca precisou da força para transmitir o pensamento. Sempre usou a racionalidade para controlar a tensão até ao momento preciso da explosão silenciosa. A fronteira invisível entre controlo emocional e transcendência física continua a ser a geografia do combo de Nicolas Jaar e Dave Harrington, reforçado pelo baterista Tlacael Esparza, já experimentado dos concertos. Um suplemento de matéria física, mas o corpo dos Darkside continua a ser guiado pela mente.
Mdou Moctar - Tears of Injustice
Nunca precisámos de AI para descodificar o idioma emocional de Mdou Moctar. Sempre foi o que suspeitávamos. Dor, revolta e angústia transmitida por cabos de alto tensão mas enquanto Funeral For Justice, do ano passado, ligava política e riffs por corrente eléctrica, o irmão Tears of Injustice desliga a ficha e devolve as cançōes ao leito acústico. A quebra de energia só acentua o peso e a intenção de Mdou Moctar. Escrever sobre pobreza e exploração colonial para dobrar o cabo da boa esperança com um povo e uma cultura às costas. Se Funeral For Justice era raiva, Tears of Injustice é um muro de lamentaçōes, mas ambos estão unidos pelas cordas da resistência.
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