Para se compreender o impacto de Preço Certo, dos 7 aos 77, de Vila Real a Vila Real de Santo António, não é preciso inteligência artificial. Basta ir ao YouTube e ouvir o coração dos portugueses a falar nos comentários: “As pessoas andam tão tristes e amargas com tudo o que se tem passado nos últimos anos, e esta música traz de volta aquela alegria e leveza de uma festa popular portuguesa. É disto que precisamos”. Para que precisamos de pensamento crítico, matemática aplicada e física quântica quando a ciência das emoçōes é tão simples e exacta?
As redes sociais democratizaram a opinião e, sem surpresa, a emoção tomou conta da razão. Essa é a grande diferença entre gosto e conhecimento. Tudo em Preço Certo parece natural. Nada em Preço Certo é um acaso. Para compreender o fenómeno, é preciso dissecá-lo antes de o baile começar.
Com talento e sabedoria, Pedro Mafama fez-se assunto nacional. Chegou, como poucos, numa era de fragmentação acentuada, às cavidades do país. Uniu avós e netos. Litoral e interior. Emancipados e rurais. Doutorados e operários. Os que são da cidade e querem ir para o campo de férias, e os que são do campo e querem vir para a cidade atrás oportunidades. Quem dera a muitos estrategas políticos ter esta capacidade de comunicar com eficácia e transversalidade.
Preço Certo não é apenas uma canção, é uma jogada de mestre, exemplar na forma como criação e comunicação podem ser um gesto só, pensado desde o início. O que representa o concurso de Fernando Mendes? Povo, território, familiaridade e alegria, mesmo quando não se ganha. Que diz a canção? “Esta vida/Já está a sorrir pra mim/Tenho uma filha linda/E o amor que eu sempre pedi”. É como água para o arroz. Nada mas mesmo nada desde o parto criativo até à coreografia, T-shirt justa e cinto Diesel, é coincidência.
Quando o nome de Pedro Mafama começou a circular, há cerca de quatro anos, era visto como alguém ousado, aventureiro, dotado de uma visão contemporânea, conciliador de correntes como a Lisboa dos Buraka Som Sistema e da Príncipe, as técnicas de produção emanadas do hip-hop, e sobretudo uma leitura própria do fado - o seu canal de Soundcloud, ainda visível, é assinado como Novos Fados.
Por Este Rio Abaixo, o álbum de estreia, foi recebido com entusiasmo por progressistas e desconfiança por conservadores. A opinião publicada leu-o como um álbum transformador que, apesar da homenagem assumida a Fausto no título, revertia a corrente para questionar uma história contada desde os livros da primária sobre os Descobrimentos e o processo de descolonização, em que as origens e mandamentos do fado passavam pelas brasas do escrutínio de um bairrista de Alfama.
Eram e continuam a ser narrativas urgentes e necessárias, geradoras de debate e, por isso, polarizadoras. Daí a reação calorosa de uma facção ligada ao academismo, assim como de um círculo consumidor de trap e famílias vizinhas. Mas em ousadia, Estava no Abismo Mas Dei Um Passo em Frente e, em particular, o omnipresente Preço Certo, têm dimensão nacional, quando o passado recente era citadino. Da aclamação de nicho, o longilíneo Mafama deu um passo do tamanho da perna e venceu a prova de montanha.
Mafama está a derrubar fronteiras entre a música pop e a cultura popular (não serão uma só?). Veste a pele incomum de conciliador de rupturas. Alguém que confronta convençōes com sorriso de pai, e um abraço e um beijinho no fim. Nessa coreografia, encontrou um espaço democrático de afectos genuínos ao qual não estamos habituados. Escolheu o momento certo quando, quer globalmente, quer localmente, os ritmos populares de baile passam por um processo de reciclagem, e, fruto do desgaste na vida em cidade, o interior é visto com olhos de paz, tempo, qualidade de vida e sobretudo, honestidade.
Mafama é alguém com um invulgar equilíbrio entre visão artística e estratégica. Não tem medo de expor uma visão artística, nem receio de assumir uma estratégia. Nada em Preço Certo é um acaso. Assim como toda e qualquer semelhança entre os acordes iniciais e os de Despecha, a rumba das férias de verão 2022 de Rosalia, não são coincidência. É redutor, porém, observar o abalo como uma réplica.
A rumba é tão portuguesa como a paella mas Preço Certo está carregado de referências portuguesas, desde o acordeão inicial ao popular Olarilólé Olarilólei, tão típico dos bailes populares, erguida sobre um som de orgão barato. Se um DJ a tocar entre Despecha e Danza Kuduro, de Lucenzo e Don Omar, alguém se choca ou ofende?
O próprio não será, por certo. Preço Certo é horizontal na capacidade de comunicar através da alegria e do ritmo festivo. Encaixa-se num movimento global de modernização de ritmos tradicionais, e numa corrente local de revisão de símbolos atribuídos ao provincianismo, personificada por David Bruno, Conan Osiris ou o José Pinhal Post-Mortem Experience (a sério? porquê?), e que já vem de trás com a recuperação de José Cid e o entusiasmo dos últimos anos pela figura de Toy. Mas enquanto alguns destes se movem entre a sátira e o reconhecimento tardio, Mafama veste a camisola e vive-a com a verdade de quem não é uma marioneta e a consciência da personagem criada - uma extensão de si mesmo. Curiosamente, hoje é alguém que está mais próximo da simpatia gerada por Carlos Paião do que da extravagância de António Variaçōes, quando os precedentes sugeriam outra direcção.
Mafama tem plena consciência da rotação destes eixos, até por participar activamente na mudança, mas o bairrismo é-lhe inato. É alguém que se move entre povo e elite com o mesmo desassombro e sinceridade. O desejo de comunicar é muito maior do a calçada de Alfama onde deu os primeiros passos quando escrevia sobre os canteiros do sepulcro como na brilhante Jazigo. Por isso, a narrativa de felicidade que acompanha Estava no Abismo Mas Dei Um Passo em Frente é sincera mas incompleta para a ambição de uma figura nacional geradora de simpatia, e ainda assim capaz de contribuir para a mudança.
Uma jogada só é de mestre se for vencedora. 9,4 milhōes de visualizaçōes no YouTube e 4,5 milhōes de reproduçōes no Spotify depois, Preço Certo é o single do verão e Pedro Mafama o fenómeno do ano. Há música que define o seu tempo e os últimos anos têm sido de abundância, de The Art of Slowing Down, de Slow J, a Mundo Nobu, de Dino D’Santiago, de 4 de abril, d’A Garota Não, a Casa Guilhermina, de Ana Moura.
E há momentos raros em que a música portuguesa é assunto nacional, sem ser a morte de alguém, desde provocaçōes dos Heróis do Mar, às ondas de choque provocadas por Pedro Abrunhosa e mais tarde pelos Buraka Som Sistema, aos estádios dos GNR, a caricatura da geração recibos verdes pelos Deolinda em Parva que Sou, ou a aterragem de Conan Osiris.
Relevância e impacto nem sempre têm o mesmo peso. Com uma aposta certeira, Pedro Mafama ganhou a grande montra de prémios.
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