Só num manicópio os Kneecap podem ser a manchete por defenderem o Hamas e o Hezbollah, quando o genocídio cumulativo é camuflado e normalizado pelas instâncias internacionais. Foi assim que se fez o Holocausto, através da negação e do silêncio. Enquanto isso, o colectivo de rap vadio é atirado para a fogueira por ter defendido uma posição pró-Palestina no festival de Coachella, e está a ser investigado pela unidade de contra-terrorismo do Reino Unido, quer por essas declaraçōes, quer por vídeos de concertos anteriores, onde apelam ao assassinato de membros do Partido Conservador e Unionista do Reino Unido. Exagerado? Provavelmente. Literal? Seguramente que não. Quanto valem palavras de instigação comparadas com as 600 milhōes de libras de vendas de armamento do Reino Unido a Israel em dez anos?
O extermínio de um povo é a mensagem. Os Kneecap são apenas os mensageiros da carnificina. A prova definitiva da barbárie perpetrada por Israel e da cumplicidade da maioria dos governos (Portugal incluído, Espanha é a excepção) está no desvio ostensivo das atençōes da montanha para Maomé. Enquanto morrem 45 crianças em apenas 48 horas na faixa de Gaza, e a Unicef reconhece mais de 50 mil crianças mortas ou feridas desde a explosão do conflito em outubro, os irlandeses naturais de Belfast, apoiantes da reunificação da Irlanda, são as Pussy Riot do momento e já sofrem na pele as consequências da ousadia do manifesto.
Na ressaca de Coachella, Sharon Osbourne apelou à expulsão do grupo dos EUA. No seu país, vários políticos britânicos, incluindo do Partido Trabalhista, situado no meridiano canhoto do espectro ideológico, pediram a Michael Eavis para os retirar do cartaz de Glastonbury. Se o promotor recusasse a presença da banda, estaria a atirar mais gasolina para a fogueira e a compactuar com as pressōes políticas. O grande acontecimento do festival seria então um ruídoso silêncio de conluio. "Os jovens que vão aos nossos concertos conseguem ver além da mentira. Estão ao lado da humanidade e da justiça. E isso enche-nos de esperança", defenderam os Kneecap em comunicado.
As pressōes estão a fazer efeito. Em julho, deveriam actuar no festival TRNSMT, em Glasgow, mas segundo os próprios foram eliminados do cartaz por “questōes de segurança”. Enquanto isso, um grupo de 800 advogados, ex-juízes e académicos enviou uma carta aberta ao governo liderado por Keir Starmer a reivindicar sançōes para Israel. Os Kneecap não são o assunto, mas é confortável atirá-los para o centro do ringue e minar o espaço mediático para desferir pequenos golpes como cancelamentos ou a retirada do filme Kneecap - O Trio de Belfast, por companhias aéreas internacionais como a United Airlines. À arte cabe fazer perguntas. Confrontar poderes para os incomodar. Os Kneecap não têm nenhuma posição a clarificar. Quem tem de mostrar de que lado está são os representantes dos povos que não desejam assistir ao extermínio implacável todos os serōes em canal aberto.
A perseguição política aos irlandeses promove-os a símbolos artísticos da denúncia. Que roupa mais justa pode haver num caso de tão flagrante delito e incapacidade de reacção do que ser-se perigosamente autêntico? Dos Massive Attack a Brian Eno, Pulp, IDLES ou The Pogues, são mais de uma centena os signatários de uma carta aberta solidária para com os Kneecap. Entre os apoiantes está Tom Morello, guitarrista dos Rage Against The Machine e Audioslave, e diretor musical do último concerto de sempre dos Black Sabbath, marcado para a 4 de julho. A reciprocidade tem especial importância pelo facto de Sharon Osbourne, uma das primeiras vozes a erguer-se contra os irlandeses, ser a mulher de Ozzy Osbourne.
Não é caso único. A cantora de R&B Kehlani foi vetada do Slope Day, a celebração anual do fim das aulas na Universidade de Cornell, em Nova Iorque, pelas suas posiçōes a favor da Palestina. “A escolha de Kehlani como cabeça de cartaz deste ano gerou divisão e discórdia”, justificou o reitor Michael I. Kotlikoff. Terá sido um grupo de estudantes da faculdade a iniciar o movimento para impedir o concerto de Kehlani. “Embora qualquer artista tenha o direito, no nosso país, de expressar opiniões odiosas, o Slope Day tem como objetivo unir a comunidade e não dividi-la”, defendeu-se o dirigente máximo da Faculdade. A espiral nem sequer é nova. Em 2022, o rapper inglês Lowkey enfrentou uma campanha para que o seu catálogo fosse removido do Spotify, em grande devido à canção Long Live Palestine.
Enquanto isso, a Eurovisão aceitou a participação de Israel. New Day Will Rise de Yuval Raphael, acabou em segundo, apenas atrás do austríaco JJ, mas se o voto dependesse apenas do público teria vencido. Ou seja, quer a organização, quer a comunidades, conhecidas pela abertura a comunidades como a LGBTQ+, assumiram uma posição perigosamente ambígua perante Israel, desde logo ao aceitar a presença no concurso, quando, por comparação, a Rússia foi banida das competições internacionais e da Eurovisão após a invasão da Ucrânia. Isto após a União Europeia da Radiodifusão (UER), organizadora da Eurovisão, ter ameaçado multar a televisão espanhola caso os comentadores do festival voltassem a falar no número de mortos em Gaza.
O primado de lucidez e coragem de Brian Eno levou-o não só a denunciar a Microsoft, em carta aberta publicada poucos dias após a empresa ter admitido a venda de serviços de inteligência artificial e computação em nuvem ao exército israelita, como a doar o valor que lhe foi pago pela tecnológica pelo som criado para o Windows 95. “Se um som puder significar uma mudança, que seja este”, declarou. Eno, Arca, Fever Ray e os Massive Attack estão entre os signatários de uma carta aberta dirigida ao Sónar para se distanciar da empresa de capital de risco KKR, que não só investe na indústria bélica israelita, como constrói em solo palestiniano, ou seja lucra com a guerra. No ano passado, a empres investiu na Superstruct Entertainment, que tem participapação na Providence Equity Partners, que por sua vez é uma das investidoras do Sónar. Investimentos “cúmplices do genocídio que Israel está a cometer em Gaza” e que já levaram a uma onda de cancelamentos no Sónar Barcelona. Será de festa ou de luta o ambiente do festival catalão, que decorre de 12 a 14 de junho?
A fragmentação de causas tem desorganizado os protestos, tornando-os perecíveis, difusos e inconsequentes. No caso da limpeza étnica em Gaza, há um consenso da comunidade artística e dos povos solidários - porque as correntes nacionalistas defensoras da indiferença perante os que não têm o mesmo chão é cada vez mais forte - que contrasta com a ausência de respostas institucionais. Notícias das últimas horas dizem que Israel aceitou uma proposta dos EUA de tréguas de “60 a 70 dias”. O exemplo recente da Rússia diz-nos que não passa de uma temporada de jogos florais. Se há momentos em que, por medo ou incapacidade estratégica, a arte e os criadores não têm canalizado a sua visibilidade e influência para questionar as forças dominantes, desta vez são o bom exemplo que a política não dá.